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sexta-feira, 10 de março de 2023

Memórias em torno do Palácio Feu Guião

 


Já sofreu o desastre de 1755, já foi residência nobre, já funcionou como escola (onde Maria Barroso Soares foi aluna) e como centro de dia, já esteve abandonado e em ruínas e, segundo a tradição (não documentada), até terá albergado S. Francisco Xavier aquando da sua vinda a Portugal (1539-1540) para corresponder ao projecto de missionação que D. João III quis incentivar. Hoje, é um condomínio residencial, de reconstrução recente, na zona setubalense da Fonte Nova, e tornou-se assunto de uma monografia que puxa para título a metáfora do ressurgimento, Palácio Feu Guião - A fénix renascida, obra assinada por Rui Canas Gaspar (n. 1948), autor ligado à história local sadina.

O livro, fora do circuito comercial, patrocinado por Constantino Modesto e pela empresa que modernizou o imóvel (SKEP), começa por um relance sobre a história de Setúbal, em jeito de contextualização, recuando até às mais antigas referências ao território, evocando momentos como a chegada de estrangeiros e o seu papel nas trocas comerciais (cerâmica e sal), a construção da muralha, a construção do caminho de ferro e a implantação da indústria conserveira, entre outros, importantes para a história da cidade.

O rápido passeio guiado à biografia setubalense pára no Bairro de Tróino, sítio do Palácio Feu Guião (nome advindo da família dos proprietários que o mantiveram até finais de Oitocentos), para dar conta da antiguidade da zona e relatar a intervenção arqueológica feita antes da reconstrução, acentuando a preocupação pedagógica, uma vez que o património arqueológico é considerado um contributo identitário para ser passado às gerações vindouras. Este capítulo, que se afigura como o início do renascer da fénix, noticia as descobertas feitas pela equipa de arqueólogos - pedaços de cerâmica de diferentes épocas, algumas moedas, estruturas de construções anteriores ao terramoto de 1755.

As memórias da vida do bairro a partir de meados do século passado são trazidas para este livro pelos testemunhos de António Cunha Bento (nascido no Palácio), com infância e juventude passadas na zona de Tróino, lembrando o comércio, os pregões, os passatempos, as pessoas... e também pelos relatos da investigação e da memória do autor (igualmente criado no espaço da Fonte Nova), por onde passam as relações de vizinhança e de proximidade e figuras que alimentaram o pequeno comércio e as relações sociais (o latoeiro Celestino, o alfaiate Raul, a “boleira” Laura, o merceeiro Pedro dos Santos, entre várias outras), num reviver intenso. Assim, a narrativa faz-se de recordações e de vivências, por este livro passando ainda a história do que esteve para ser o Convento da Santíssima Trindade (obra que começou, mas que foi interrompida pelo terramoto setecentista), as marcas da ligação das pessoas à Fonte Nova e a descaracterização da mesma na década de 1980, as histórias e as lutas das mulheres conserveiras (centradas na estátua a Mariana Torres), a origem da quantidade de restaurantes de peixe (cujos antepassados foram as tabernas onde se reuniam pescadores à volta do vinho vindo de Palmela e do peixe trazido pelos descarregadores), a referência aos nomes que marcam a toponímia do bairro.

O final do livro apresenta a “nova vida para a velha casa”, imagens da reconstrução do que foi palácio, assim como pequena biografia do bejense Constantino Modesto (n. 1956), agente da iniciativa desta remodelação, também conhecido por ser o promotor da árvore de Natal em Setúbal em anos recentes.

Este trabalho de Rui Canas Gaspar aproveita bem o pretexto da reconstrução de um imóvel para nos falar com simplicidade da humanização dos espaços e da história que as comunidades vão fazendo no quotidiano.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1028, 2023-03-08, p. 9.


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

N'«O Setubalense» de hoje - Alice Brito e Maria Barroso, dois livros



Duas mulheres, dois livros. Duas mulheres ligadas a Setúbal, duas mulheres conhecidas pelo seu compromisso social e político, duas mulheres que (se) escrevem, em duas boas propostas de leitura.
De Alice Brito saiu já há uns tempos a narrativa de ficção As mulheres da Fonte Nova (Lisboa: Planeta, 2012), um romance que, sem exagero, pelo menos os setubalenses deveriam ler, não só por uma questão de apreço por uma autora local, mas sobretudo pelos vectores de identidade ligados à cidade do Sado que por esta obra ressaltam.
Dispenso-me de contar a história que povoa o livro. Mas chamarei a atenção para essas personagens que são a cidade e as suas gentes, ondulantes, uma e outras, pelos meandros de uma trama de famílias, de política, de grupos sociais, de tomadas de posição. Não há uma única referência ao nome da cidade, mas também não era necessária porque o topónimo Fonte Nova não deixaria enganar… No entanto, todas as referências a sítios ou ruas são facilmente reconhecíveis para os setubalenses. Assim se transforma uma história local(izada) em algo cujo interesse ultrapassa essa fronteira, haja em vista o retrato social apresentado, por exemplo, que não é exclusivo de Setúbal.
De um ponto de vista de informação, o livro de Alice Brito, apesar de ser uma ficção, introduz o leitor no ambiente vivido na cidade conserveira entre os anos 30 e 70 do século passado, caracterizando uma época e dando ideias sobre a intervenção política, sobre o papel da mulher, numa cidade e numa sociedade grávidas de contrastes e de contrariedades.
É uma história bem contada, bem escrita, com imagens muito sugestivas, num jogo assumido entre narradora e personagens, saltando entre o tempo da narrativa (no passado) e o tempo do leitor (no presente), criticando, reflectindo. Uma obra a ler, repito.
Maria Barroso é trazida para esta crónica devido ao projecto que o semanário Sol está a levar a cabo: uma edição em 18 volumes, com publicação semanal, reunindo duas obras – oito fascículos de correspondência, Cartas a Mário Soares (1961-1974), título constituído pelas missivas enviadas por Maria Barroso ao marido durante o seu tempo de prisão, de viagem, de degredo ou de exílio, e dez fascículos memorialísticos, Álbum de memórias, redigidos pelo jornalista Vladimiro Nunes.
A ligação de Maria Barroso a Setúbal vem contada no segundo volume das memórias – na sua infância, entre 1926 e 1935, viveu em Setúbal e episodicamente em Palmela, acompanhando a mãe, professora que foi nestas duas localidades, e o pai, militar em Setúbal, com interrupções várias. Há ainda a ligação de Maria Barroso ao poeta Sebastião da Gama, recordada no quarto volume das memórias, conhecimento e amizade vindos desde a Faculdade de Letras.
Se as biografias são importantes para o leitor se confrontar com trajectos de vida singulares, não menos interessante é o passeio pela correspondência produzida pela imagem que o próprio de si dá, sem intermediários, sem preparação propositada, retrato espontâneo e descomprometido, ainda por cima quando se trata de cartas dirigidas a familiares.
As cartas de Maria Barroso para Mário Soares revelam uma mulher actuante, assumindo todos os compromissos familiares, profissionais e sociais em seu nome e em nome do marido. Por aquelas cartas passam valores, momentos de desabafo, preocupações, considerações sobre a vida e sobre a política, combates à solidão, afecto e preocupação, dádiva, organização e necessidade de lutar e de trabalhar, acompanhamento dos filhos e dos familiares, entendendo o leitor que a intenção de Maria Barroso era a de tornar o mundo familiar presente a Mário Soares, assim impedindo que as interrupções da vida em comum equivalessem a descontinuidades e possibilitando que os projectos em que estavam envolvidos pudessem continuar a ser gizados a dois. São cartas que apaziguam quem as escreve e que pretendem idêntico efeito no destinatário, que se alicerçam na partilha e na comunhão para que o sofrimento das lonjuras seja, pelo menos, esbatido.
Duas possibilidades de leitura de escritas no feminino, uma e outra eivadas de um sentido de intervenção e de responsabilidade cívica, uma e outra devidas a mulheres que se cruza(ra)m com Setúbal em áreas diversas e em tempos vários. Alice Brito e Maria Barroso, uma na ficção e outra no testemunho, são dois bons nomes para leitura nestes tempos de certa desolação e aridez.

domingo, 12 de agosto de 2012

Máximas em mínimas (90)


Infelicidade – “Só as pessoas infelizes é que se perguntam qual o sentido da sua vida.” [Maria Barroso. Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 5). Org.: Vladimiro Nunes. Lisboa: “Sol” / Fundação Pro-Dignitate, 2012, pg. 73 (carta de 09-10-1970)]

Envelhecer – “Estamos a envelhecer e chegam todas as coisas desagradáveis que a passagem do tempo nos traz. Temos de ter paciência e aceitar aquilo que se nos apresenta – por muito desagradável e duro e injusto que seja – com o máximo de coragem. Há um momento da nossa vida em que sentimos que uma etapa nova começa para nós e que qualquer coisa de fresco, de bom, de muito importante se perdeu para sempre.” [Maria Barroso. Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 5). Org.: Vladimiro Nunes. Lisboa: “Sol” / Fundação Pro-Dignitate, 2012, pg. 66 (carta de 23-09-1970)]

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Maria Barroso: "Cartas a Mário Soares" e uma biografia



Aos 87 anos, Maria Barroso resolveu partilhar a narrativa da sua vida com os leitores através da publicação das suas memórias e da correspondência mantida com o marido, Mário Soares, entre 1961 e 1974, num projecto co-editado pelo semanário Sol e pela Fundação Pro-Dignitate. É um conjunto de 18 volumes, publicados a ritmo semanal, em que a epistolografia ocupará 8 deles (Cartas a Mário Soares 1961-1974) e a biografia os restantes (Álbum de memórias). O trabalho foi coordenado pelo jornalista Vladimiro Nunes, que anotou as cartas e redigiu os volumes de cunho biográfico. Até ao momento, foram publicados cinco volumes deste projecto [o próximo sai amanhã, com o jornal Sol], sendo quatro deles da correspondência.
O primeiro volume da biografia ocupa-se sobretudo da história da ascendência de Maria Barroso, incidindo bastante sobre a actividade do pai, militar e republicano, alvo de perseguições e de prisões graças aos compromissos assumidos. O final do volume encontra Maria Barroso na sua infância em Setúbal, aos dezasseis meses (em Setembro de 1927).
Preocupação de Vladimiro Nunes é de contextualizar a narrativa no Portugal da época, com referências adequadas à vida política, cultural e social do país, com indicações cronológicas sobre acontecimentos e sobre outras personalidades que viriam a ser referências para o século XX português e que viriam a cruzar-se também com o percurso de Maria Barroso e de Mário Soares em muitos casos. Para a elaboração deste trajecto biográfico, Vladimiro Nunes teve como fontes a própria Maria Barroso, um vasto leque de amigos e de familiares da biografada e o arquivo de família, assim se justificando o título, que alia a capacidade da memória e a característica antológica dos eventos, das histórias e das personagens que fazem uma vida.
Quanto aos quatro volumes de correspondência já publicados, o leitor entra nos tempos de ausência de Mário Soares relativamente à família, fosse por estadias longas no estrangeiro, fosse pelos tempos de cárcere ou de desterro. As cartas de Maria Barroso para o marido são um ritual diário nesses tempos de ausência, muito próximas da escrita diarística, relatando o acontecido naquele dia, com considerações a propósito, por onde passam os registos da vida do Colégio Moderno (sobre os professores, sobre a gestão e organização, sobre as inscrições, sobre as obras, sobre as colónias de férias), o acompanhamento dos filhos João e Isabel (nos estudos, nas relações sociais, na educação), o cuidado prestado a familiares (sobretudo ao sogro, João Soares, na vigilância da sua saúde, no acompanhamento, na gestão das relações familiares), a gestão do património familiar (acompanhamento das obras na casa de Nafarros, da actividade no escritório de advocacia de Mário Soares e manutenção da casa de Cortes), as relações sociais (manutenção das amizades e presenças em eventos, muitas vezes em representação do casal ou do marido), a preocupação em minimizar os efeitos do afastamento (fazendo chegar à prisão livros, refeições por si confeccionadas, marcando presença nos escassos tempos de visita), as emoções (provas de afecto, considerações sobre a vida do casal, incentivo contra a solidão e a humilhação do estatuto de preso), a vida cultural em que estava envolvida (leituras, filmagens, sessões de poesia e de teatro).
Percebe o leitor que a intenção de Maria Barroso era a de tornar o mundo familiar presente a Mário Soares, assim impedindo que as interrupções da vida em comum equivalessem a descontinuidades e possibilitando que os projectos em que estavam envolvidos pudessem continuar a ser gizados a dois.
As cartas de Maria Barroso assumem também essa perspectiva de luta contra a solidão, passeando pelos relatos do quotidiano, mas demonstrando ainda as angústias e as dúvidas de quem não quer vacilar, de quem quer ser presente e vencer a distância, muitas vezes confessando o exercício de aprendizagem que aqueles afastamentos lhe proporcionam à medida que cresce a admiração pela forma como o marido enfrenta a adversidade da perseguição política.
No fundo, estas cartas são o retrato, a fixação do tempo comum possível naquelas circunstâncias, uma prova de cumplicidade efectiva na forma de fazer a vida com sentido, sempre com horizontes de esperança, muitas vezes matizados com as cores das plantas do jardim ou com os tons do dia, a evocarem momentos passados ou recortados por alusões a versos e à memória. São cartas que apaziguam quem as escreve e que pretendem idêntico efeito no destinatário, que se alicerçam na partilha e na comunhão para que o sofrimento das lonjuras seja, pelo menos, esbatido. Um belo documento humano e cultural, um bom testemunho de sinceridade e do que pode ser a vida de pessoas que caminham na mesma direcção!

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Homem (e mulher) – “Chego a pensar se de facto os homens merecem tanta ternura, tanta dedicação como aquela que algumas mulheres sabem dar. Afinal de nada serve a amizade, a dedicação, a profunda ternura de anos e anos lado a lado. A mulher chega a certa altura e está velha, gasta e já não serve – há que substituí-la por outra mais jovem, mais válida. Esta confusão, esta inversão de valores ou nos conduzem a uma atitude cínica e egoísta ou nos levam ao desespero. Sinto-me verdadeiramente atordoada com tudo isto!” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 2) – a propósito do divórcio previsto de um casal amigo, em carta de 19-08-1966]
Esperança – “A esperança é a mais linda flor que eu conheço mas a terra dela é o coração dos homens.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 3) – em carta de 29-02-1968]
Olhar em frente – “O voltarmo-nos excessivamente para dentro de nós próprios é que nos conduz muitas vezes a situações de angústia e de nervosismo. Se olharmos para a frente, para o que é jovem e espontâneo, por muito duro que seja o que nos rodeia, por muito violenta e injusta que seja a realidade que tenta esmagar-nos, há sempre maneira de encontrarmos dentro de nós a força e a coragem de seguirmos o nosso caminho, que é o caminho da dignidade e da compreensão humana.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 11-06-1968]
Palavra – “Duas pequenas palavras, repassadas de ternura e saudade, bastam, por vezes, para animar um coração desolado, para reanimar uma pessoa fatigada.” [Cartas a Mário Soares 1961-1974 (vol. 4) – em carta de 08-07-1968]