Gonçalo M. Tavares é dono de uma obra ímpar na literatura portuguesa contemporânea. A partilha das ideias e da escrita vão prosseguir no encontro a haver hoje à noite. Na Casa da Cultura, no âmbito da programação "Muito cá de casa". Para a agenda.
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia” dez cantos depois
A obra de Gonçalo M. Tavares Uma Viagem à Índia (Alfragide: Leya / Caminho, 2010) é daquelas que se começa a ler e não se descansa enquanto se não chega ao fim (aí incluindo o prefácio de Eduardo Lourenço), apesar de o seu autor, há dias, ter dito em Palmela que não seria necessário ler esta obra continuada, antes se podia começar num qualquer dos cantos que a alimentam.
O livro conclui com o verso “Bloom, o nosso herói”, em jeito de síntese do que foi toda a narrativa, uma apresentação das vivências de Bloom no seu itinerário pela vida e na sua viagem à Índia. Herói do século XXI, Bloom ruma para a Índia em busca da purificação. E, quando se pensa que tudo vai ser grandioso, vemos o herói a concluir a sua viagem em Lisboa, ofertando a sua mala com um exemplar raro do Mahabarata a um idoso desconhecido, na rua, e sabendo que é procurado pela polícia devido a dois crimes cometidos – assassínio do pai (imagem edipiana), que tinha assassinado Mary (mulher que Bloom amava, qual história de Pedro e Inês), e assassínio de uma prostituta em Paris.
O percurso de Bloom, numa narrativa várias vezes apelidada como epopeia, tem dois momentos importantes: a crença na perfeição e na purificação, buscada algures na Índia, depois de sentir a culpa do primeiro assassinato, e a desilusão trazida, depois de verificar que o mestre supostamente purificador era feito da matéria de todos os homens, roubava e conspirava. A decepção é forte, pois foi o resultado inesperado num destino onde era desejado o paraíso ou a utopia.
Bloom acaba perto do suicídio, impedido pela intervenção de uma mulher, aparente anjo salvador, apesar de ficar dito que “nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de Bloom”. Com ele, apenas dele, só o velho rádio que pertencera ao pai, que “nem com a viagem voltou a funcionar”, imagem de uma purificação e de uma comunicação impossível, ironia sobre a solidão e a falta de companhia.
Neste trajecto sobre o homem só, há espaço para a reflexão sobre o mal e a maldade, numa viagem frequentemente pelo escabroso, pelas pedras que salpicam a vida. Se o texto se conclui com o termo “herói”, algo que rivaliza com a “inveja” que finaliza Os Lusíadas, certo é que, na lista de palavras que surge no final da obra como “Melancolia contemporânea – um itinerário”, a partir de pistas lançadas nas várias partes da história, a primeira é “razão”, mas a última é “tédio”, termo que, juntamente com “natureza”, tem o maior número de ocorrências nesse itinerário. Irónico, como o destino.
A epopeia de Bloom lembra a epopeia de Os Lusíadas, não apenas pela organização em dez cantos, em que cada um deles tem o mesmo número de estrofes que o poema camoniano, mas também porque o leitor consegue associar passos entre os dois poemas narrativos: os enganos e conspirações para atingir o herói, a ilha dos Amores parisiense, a existência de aliados, o feito “épico” várias vezes assinalado, as reflexões sobre o homem, a viagem, a história de Pedro e Inês (ou de Bloom e Mary), as reflexões sobre a guerra…
Livro de aprendizagem, num percurso repleto de máximas, bem se pode dele dizer que acaba por ser a epopeia do homem do século XXI, que não corre por grandes feitos, que sobrevive no meio de agressividades várias, que se desorienta por falta de pontos de ancoragem.
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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto X
* “A morte é ao lado ou ao longe, ou não é nada – pois a nossa não existe para nós. Morre-se já fora da vida, o que é um absurdo e uma evidência.” (est. 7)
* “O vocabulário não aumenta com o álcool, mas a rapidez arguta com que as palavras se juntam muda bruscamente.” (est. 9)
* “Quem corre rápido, mesmo com olhos muito abertos, nada vê. Como a imobilidade e a atenção são sinónimos! Não corras tanto: ficas cego.” (est. 25)
* “Os olhos são máquinas que discriminam cores e formas, mas um acto não é apenas cor e forma, é também a sensação que o suporta.” (est. 29)
* “A tradição do tacto é aconselhar imprudências e prazeres diversos; é raro o tacto ser tímido, mas há limites.” (est. 34)
* “Nada melhor que a beleza à frente dos olhos para esquecer a melancolia.” (est. 62)
* “As viagens são um pouco de morte quando se chega, e um pouco ainda de morte quando de um sítio se parte.” (est. 80)
* “O dia não tem margens para onde possamos fugir.” (est. 85)
* “A fisionomia é o primeiro naco a ser conquistado pelo coração.” (est. 90)
* “Não poupes os olhos quando queres seduzir.” (est. 90)
* “Quem não corre quando combate ou dorme longe, esquece aquilo de que se afastou.” (est. 92)
* “O mundo é feito de pequenos parágrafos, grandes saltos, nenhuma continuidade.” (est. 94)
* “Um homem perde o essencial quando não tem uma única vontade forte; pára ou avança, que importa?” (est. 119)
* “A ética é uma espada que separa, nunca juntou ninguém.” (est. 124)
* “Qualquer biografia é assim: avança-se para o sítio de onde se partiu.” (est. 130)
* “O que se faz quando nada se sente é brutal e as circunstâncias arrancam-nos dos bons conselhos.” (est. 134)
* “Quando se foge, quando se tem medo, a ética é nada. E o que, no homem, é patas de animal e velocidade torna-se o importante.” (est. 136)
* “A ingenuidade é irrecuperável.” (est. 155)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto IX
* “No exacto momento em que estão concentrados a roubar, os ladrões são mais facilmente assaltados que uma velhinha de vista imóvel e passo retrógrado.” (est. 8)
* “Nenhuma descoberta da ciência modifica tão fortemente o rosto de um homem como os momentos de prazer.” (est. 24)
* “A única velharia que chegou intacta ao estúpido século XXI é a do amor.” (est. 32)
* “Certas mulheres bem treinadas são capazes de acariciar com os seus seios mãos desprevenidas e ingénuas. Quem toca em quem, eis a questão.” (est. 68)
* “Fora do trabalho os homens descarregam para o solo a educação (como um peso) e mais leves ficam então preparados para a maldade ou para a diversão. No ócio o rosto desembaraça-se e sozinho ganha um estilo individual; portanto: perigoso.” (est. 70)
* “Quando não há líquidos como o vinho, homens e mulheres comportam-se de modo sério, discutem símbolos e não são abandonados pela inteligência e pela necessidade de a exibir.” (est. 71)
* “Os homens quando têm medo fogem e nessa fuga pisam o chão ou outros animais.” (est. 89)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VIII
* “O que é o passado? Isto: tempo que cada vez ocupa menos espaço (…). O presente – agora, este momento –, pelo contrário, ocupa todo o espaço que nos rodeia.” (est. 2)
* “Tudo é único e diverso na natureza. Ninguém quer equilíbrios numa floresta.” (est. 17)
* “Os homens fazem sempre o papel de turistas quando próximos da água.” (est. 26)
* “A hipocrisia é das velharias mais difíceis de o homem se livrar; apegou-se ao homem como o lixo ao trapo já sujíssimo de pó.” (est. 28)
* “Nem mesmo os santos, que não sejam mentirosos, têm o passado límpido. A suavidade permanente não é terrestre, é, sim, mentira, e falsa: ninguém acredita.” (est. 39)
* “O veneno, quando enviado em forma bela, é recebido como um condimento pacífico.” (est. 52)
* “Os amigos são animais como os outros. Muito mais inofensivos são os inimigos, pois mantêm-se longe, por medo da nossa arma ou preparando armadilhas que já esperamos, enquanto os amigos, esses, cheiram ombro a ombro a mesma flor que nós, dividindo, pela proximidade, a alegria que o mundo atira para um metro quadrado de jardim. / E os amigos dão conselhos, o que é perigosíssimo. Inimigos acumulam ameaças, mas essas suportam-se bem. (…) As ameaças dos inimigos são pois os verdadeiros conselhos.” (est. 53/54)
* “A ética não é assunto de células, envolve sim a vontade, a decisão inequívoca de avançar por um lado e não por outro.” (est. 64)
* “Somos inseparáveis do nosso pior. Pode-se fingir durante anos, mas cada um é inseparável da sua maldade. (…) A vida é desleal para os vivos porque ninguém se conhece por completo.” (est. 84)
* “Quando sozinhos e com os nossos hábitos não nos defendemos. Não há esconderijo para um homem que está feliz. E mais facilmente é caçado um cidadão apaixonado que um coelho num campo deserto.” (est. 87)
* “O dinheiro torna os homens previsíveis, como a galinha que segue até ao fim dos dias uma linha recta traçada no chão. O dinheiro existe nas montanhas, planícies, cidade e campo. Destrói reis, carpinteiros e santos. (E quando não há, ainda destrói mais.)” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VII
* “As circunstâncias insólitas ocorrem por vezes apenas para interromper a redundância dos dias: o destino não é maldoso: aborrece-se; quer ser criativo, inventa.” (est. 2)
* “São importantes as teorias, mas convém não esquecer os sentimentos.” (est. 7)
* “É a História de um país que dá a intensidade da ligação da árvore à terra. E cada país é uma árvore.” (est. 17)
* “O mundo não é claro e depois escuro, o mundo, cada pedaço dele, é claro e escuro.” (est. 21)
* “Do início da Europa ao fim do mundo o mundo é igual: ambíguo como tudo o que enoja e atrai.” (est. 32)
* “O consumo, por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo: os deuses formaram homens incompletos, com estômago, frio e vaidade, como queriam outro resultado?” (est. 41)
* “Entre a ética de um santo e de um canalha, as diferenças são mais de direccionamento da habilidade.” (est. 45)
* “O que enoja varia menos, ao longo do universo, do que aquilo que entusiasma.” (est. 47)
* “A arte que repete o mundo e a realidade, que os copia como um principiante com a língua de fora a desenhar no papel a cadeira que está à sua frente, essa arte é errada, imbecil, inútil, decadente, miserável, mesquinha, vazia, estúpida, e fica bem nos catálogos.” (est. 55)
* “Os números não são compatíveis com melancolias, qualquer número a nível do coração é zero.” (est. 62)
* “Entre dois dias grandes há dias pequenos, e nesses dias individuais secretos reside a outra metade de um ser vivo.” (est. 66)
* “Um homem é as dez palavras fundamentais que usa, os três amigos que tem e as cinco acções mais importantes que fez.” (est. 67)
* “Uma casa pequena é uma casa essencial. O que não cabe numa casa pequena não é indispensável para a alegria, e o que não é indispensável para a alegria é dispensável.” (est. 73)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
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domingo, 26 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto VI
* “Para conheceres as melhores mentiras de um país ou de um homem terás que te sentar longamente ao pé dele. Ninguém mente aos gritos, de longe.” (est. 2)
* “Não se aprende a ser sábio como se aprende a resolver uma equação. Nas duas aprendizagens exige-se atenção total, é certo, mas há no caminho para a sabedoria mais obstáculos, como se algures, deuses de voz rouca tivessem assumido o compromisso de não deixar a filosofia sensata ocupar por completo os homens. E talvez a causa seja puramente egoísta, pois se todos fossem sábios quem precisaria de templos?” (est. 7)
* “O mar não é como o fogo em que uma pequena parcela dá ideia do conjunto: o mar não existe em caixas, não se mantém intacto quando passa para um aquário. O mar não é apenas água salgada, é a sua grandeza que lhe dá o nome.” (est. 18)
* “A coerência de uma coisa, de um objecto ou de uma pessoa, dispensa a inteligência dos outros, dispensa ainda a investigação. (A excitação depende mais daquilo que está escondido do que do visível, toda a gente o sabe.)” (est 22)
* “A Natureza é mais ágil no ataque do que na defesa: constroem-se cidades em cima de florestas, mas debaixo das estradas e dos estabelecimentos comerciais há uma vida animal que persiste e faz ruído.” (est. 24)
* “De entre os vários reinos e géneros animalescos, os mamíferos são de longe os que melhor põem a funcionar a amizade; mas mesmo assim, nessa amizade, surgem avarias constantes.” (est. 31)
* “Se a ligação entre os homens fosse perfeita não teria existido a necessidade de inventar a linguagem. Falar é a maneira mais civilizada de marcar uma distância de segurança; os animais rosnam entre si, os homens elaboram sobre o clima e citam autores clássicos. Mas ambas as acções têm o mesmo efeito.” (est. 32)
* “Há no escutar, que parece acto passivo e pacífico, uma estranha parte activa, que são os olhos. Escuta bem quem tem olhos atentos.” (est. 39)
* “A timidez não é um valor benéfico no campo de batalha. Ou se avança ou se foge muito rápido, hesitações demoradas transformam-se habitualmente na última acção de um soldado.” (est. 46)
* “Cada homem tem, de modo telegráfico, as duas faces: tem medo e mete medo. Um homem unilateralmente corajoso não existe, a não ser que seja unilateralmente pouco inteligente.” (est. 53)
* “O que é contar uma história senão esticar a distância entre a primeira palavra e a última?” (est. 69)
* “O sítio essencial de um corpo é o sítio por onde se começa a morrer ou por onde a doença é inaugurada. Cada morte diz qual o bocado do corpo que afinal deverias ter defendido.” (est. 70)
* “Perigos nunca fizeram adormecer, nem cansadas ficam as pernas que fogem ou perseguem.” (est. 95)
* “No mundo, o sofrimento ensina mais do que cem professores bem-intencionados. (…) Os sofrimentos não são todos da mesma espécie animal: de uns, sais aperfeiçoado, de outros, canino e obediente.” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto V
* “Entre os astros só o sol fornece indícios sobre a época do ano: a lua provoca aos vivos o mesmo frio e a mesma luz no Inverno e no Verão.” (est. 2)
* “É instante a instante que se sobrevive: os momentos sucedem-se e ainda não morremos, eis tudo.” (est. 3)
* “São os homens e as mercadorias que conservam a estrada.” (est. 10)
* “Terra! (…) É uma coisa que do ar parece rara, porém a terra é suficiente para cobrir todos os homens depois de qualquer massacre, por mais extenso que este seja.” (est. 25)
* “Não dizer: sou grande, mas falta-me metade de tudo. Dizer, sim: falta-me metade de tudo, mas sou grande.” (est. 31)
* “Pese embora a tecnologia e, na pintura, os novos movimentos de vanguarda, a cor negra mantém-se distribuída pelo mundo.” (est. 61)
* “Para os acontecimentos, a torre de Babel não foi derrubada. / As línguas separaram-se, mas os gestos não. Vê um murro, o acto de penetração numa vagina ou em outros recantos, vê ainda o forte abraço ou o homem que no último momento salva quem está prestes a cair de um oitavo andar. Vê isto tudo e tudo entenderás, não é difícil.” (est. 71-72)
* “As coisas do mundo estão fortemente ligadas, sim, mas também fortemente desligadas. Sábio é aquele que percebe as duas forças; imbecil, o que não percebe nenhuma; assim-assim, o que percebe uma. E a democracia assenta nas inteligências assim-assim.” (est. 79)
* “Nada no percurso, no mundo, se faz sem peso; mesmo no ar o homem sabe que em breve regressa ao que pertence e, lá em baixo, o chama.” (est. 91)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto IV
* “Como a estaca de madeira que marca um limite importante, a lucidez é uma qualidade que modera os movimentos.” (est. 3)
* “O desespero vê, no metro quadrado onde está, o metro quadrado que tem ao seu dispor; o de olhos optimistas vê, do metro quadrado onde está, o restante mundo, o vasto mundo.” (est. 14)
* “Um fracasso excelente produz inumeráveis formas de um homem se levantar.” (est. 22)
* “A mulher é certamente um elemento humano fora do comum: as casas só não envelhecem porque ela existe. Um cuidado feminino suporta a construção (como o cimento). Uma casa só não cai, se dentro dela existir alguma delicadeza.” (est. 27)
* “Os caixões existem porque são requisitados, e em tempo de guerra o número de pedidos transforma a própria terra num caixão natural.” (est. 36)
* “Todos os vencidos amaldiçoam a guerra, mas os vencedores sensatos também. (…) A conclusão é evidente: a guerra foi inventada por insensatos ou distraídos.” (est. 44)
* “A vida é um objecto rudimentar, tosco, disforme, que nunca os homens entenderam como agarrar. Ainda nem sequer perceberam qual o lado de cima desse estranho objecto. Ainda mal pousaste as mãos sobre a vida e já a vida pousou fortemente as mãos sobre ti.” (est. 50)
* “As folhas caem das árvores altas mais lentamente que um avião, de bem mais alto, num desastre.” (est. 53)
* “Um homem quando dorme está mais próximo da astronomia que da sua cama propriamente dita.” (est. 67)
* “Em qualquer ponto do mundo a velhice mete dó, mas a compaixão provocada nos outros varia de acordo com o hemisfério.” (est. 71)
* “Para deixar de sentir frio não basta olhar para o céu ou para a fotografia de um incêndio: o Inverno prossegue e é independente do local para onde direccionamos os olhos.” (est. 75)
* “Deve chegar-se cansado ao sítio onde se quer envelhecer, pois se chegarmos fortes ainda, e impacientes, arrancaremos de novo. E falharemos o destino.” (est. 80)
* “Um homem não conhece a sua verdadeira ambição até passar por uma tragédia forte, uma tragédia individual. Só se sabe olhar, depois de se aprender.” (est. 97)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto III
* “Antigamente, uma grande cidade era o sítio onde vivia um excelente filósofo, agora uma grande cidade é aquela que tem muitos cidadãos em idade de votar e, pelo menos, um edifício com 140 andares. Se no meio dos 15 milhões existir um homem que pensa: excelente, sim, é certo, mas não indispensável.” (est. 16)
* “As mulheres sempre foram mais minuciosas na vingança. Folheiam-na sem saltar uma página. E tratam das unhas antes de pegar no machado. Pelo contrário, um homem com raiva e ressentimento é atabalhoado, desastrado, incapaz de encontrar a pronúncia perfeita da violência, como se pegasse em ferramentas despropositadas: a charrua para arrancar uma flor, o martelo para ver mais perto.” (est. 27-28)
* “O homem pensa a Natureza como se esta fosse uma mesa a que pode cortar uma das pernas para a endireitar.” (est. 36)
* “O ódio não necessita de grande tecnologia de suporte: bastam duas mulheres para um único homem, ou dois homens para um único território.” (est. 48)
* “Tantos se espantam com o facto de o amor ocorrer em seres vivos de idades muito diferentes, e nenhum assombro perante a bem maior diferença da idade que o ódio liga.” (est. 50)
* “Fazer e desfazer: as duas rectas mais paralelas da espécie humana. Nunca se cruzam.” (est. 64)
* “Ninguém é capaz de se acorrentar a um dia de sucesso como um cão a um poste. Os dias são, em geral, móveis, um autocarro que não pára.” (est. 73)
* “As derrotas devem surgir enquanto somos novos e fortes, pois aí os insucessos fortalecem, enquanto mais tarde poderão enfraquecer.” (est 74)
* “Agir é coisa longa que começa quando aprendemos a caminhar e termina apenas quando morremos ou quando já não temos inimigos.” (est. 79)
* “Bomba subtil e lentíssima, a velhice, a mais primitiva guerra que a Natureza nos declarou.” (est. 85)
* “Uma flor encolhe os ombros quer seja cheirada por uma linda menina de seis anos ou pela fealdade absoluta. Para a bela flor a beleza é insignificante.” (est. 88)
* “Vigiai os crápulas e vigiai os homens que falam manso; há no excesso de fragilidade exibida a preparação de uma maldade.” (est. 99)
* “A legislação de um país é um tratado de paz entre os seus habitantes, mas o ódio entre os homens é bem mais estável do que as leis que os homens estabelecem. Porque o ódio é uma lei da natureza.” (est. 110)
* “A vida é isto: a lua está mais próxima de alguns homens que treinam para astronautas que um prato quente da boca de outros homens. É aquilo a que podemos chamar: distâncias relativas.” (est 114)
* “O amor será útil internamente, mas externamente não carrega um tijolo.” (est. 137)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares, “Uma Viagem à Índia”, canto II
“Embora a humanidade demore tempo a chegar a um sítio, devido a imprevistos espantosos e a obras no caminho, a natureza, essa, nunca se atrasa.” (est. 1)
“Um homem pode demorar mais tempo a percorrer a minúscula casa da mulher que deseja do que a atravessar o mundo, de uma ponta à outra, com mochila às costas.” (est. 5)
“As pessoas aperfeiçoam mais os engenhos mecânicos da corrupção e das traições mesquinhas que os da hospitalidade.” (est. 31)
“Quando numerosos, os homens, os animais, as plantas, as pedras e até as máquinas perdem a higiene do raciocínio individual.” (est. 32)
“O Destino não é uma decisão unívoca de um tribunal que só sabe desenhar linhas rectas.” (est. 41)
“O mundo, como qualquer outra coisa, apenas se torna belo quando pela beleza é olhado.” (est. 42)
“Cada língua poderá ser definida como um modo especializado de interromper o silêncio.” (est. 80)
“Um estrangeiro é sempre uma novidade, tanto verbal como no número de hábitos que traz para a paisagem.” (est. 85)
“A vaidade tem um único sentido, não expira. É substância que um atira para dentro de si mesmo, e aí fica, engrossando-o de nada e coisa nenhuma.” (est. 97)
“No fundo, cada vida, no geral, não é mais do que um estilo literário.” (est. 101)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares: "Uma Viagem à Índia", canto I
“É indispensável tornar conhecidas acções terrestres com o comprimento do mundo e a altura do céu, mas é importante também falar do que não é assim tão longo ou alto.” (est. 11)
“Se uma cara tem duas metades – uma bela, outra medrosa –, os inimigos só vêem o medo e os amantes, o belo.” (est. 17)
“A amizade e a paz são apenas momentos intermédios que, no fundo, aguardam mudanças.” (est. 48)
“Tão espontânea é no cidadão a brutalidade que jamais se verá abertura de espaços académicos para a sua aprendizagem.” (est. 78)
“Se um homem cair e não mais se levantar é sinal de que ficou sem duas pernas ou sem uma vida.” (est. 83)
Gonçalo M. Tavares. Uma Viagem à Índia. Alfragide: Leya / Caminho, 2010.
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sábado, 4 de dezembro de 2010
Gonçalo M. Tavares na "Ler"
No número de Dezembro da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 97), a habitual entrevista dirigida por Carlos Vaz Marques foi buscar Gonçalo M. Tavares, português, escritor, 40 anos, 27 livros publicados. Os sublinhados que seguem são de lá, alfabeticamente ordenados pelo tema a que dizem respeito, mas não respeitando a ordem da conversa havida. Algumas das ideias aqui expressas apresentou-as o escritor, na tarde de hoje, no encontro com leitores que aconteceu na Biblioteca Municipal de Palmela.
Camões - “Os Lusíadas é uma obra tão central na língua portuguesa que é quase natural passar por lá. Seria acaso ou má sorte um escritor hoje não se cruzar com Os Lusíadas. Há inúmeros autores que de uma forma ou de outra se cruzam com Camões. É como se fosse uma praça central de uma cidade. E é tão central que temos obrigatoriamente de passar por aí. Quando estamos fascinados por qualquer coisa é natural querermos fazer algo em redor disso.”
Leitor - “Os leitores, quando entram numa livraria, escolhem um livro. Mas também acho que o livro escolhe os leitores. É muito importante o livro escolher os leitores. Não ser uma espécie de livro fácil, no sentido de que vai com todos.”
Linguagem - “A lógica da linguagem não tem nada a ver com a lógica da matemática. (…) A linguagem é sempre uma coisa que não dá resto zero. As frases não dão resto zero. (…) Há sempre mais qualquer coisa que se pode dizer.”
Literatura e ética - “Toda a gente está em diálogo. Só não o está quem não deu atenção mínima ao passado. Há quem escreva como se não existisse memória. Mas a conservação da memória é aquilo que distingue o homem do animal. Ou seja, os animais não conservam as coisas que as gerações anteriores fizeram. Nesse aspecto, a memória é uma marca humana extraordinária – a ideia de fazer o novo mas ao mesmo tempo conservar o que vem de trás e dizer: ‘Sou herdeiro destes extraordinários escritores que nos antecederam.’ É quase questão de responsabilidade literária e ética.”
Livro - “Um livro sério é um livro que quer interferir com as pessoas. É um livro que não é para aquela semana. Há aqui um combate muito forte com o mundo em que nós estamos – que já não é semanal nem diário, que com a internet é ao segundo, uma coisa quase brutal. Um dos grandes combates actuais é o combate entre a actualidade e o importante. (…) Estamos num mundo em que a questão do actual e do importante se joga minuto a minuto. O que quer dizer que se o actual é ao minuto, o não-actual é logo passado um minuto. O problema é que esta lógica da velocidade é uma lógica opressora. A grande velocidade é muito violenta.”
Memória - “Há uma coisa importante que tem a ver com uma certa responsabilidade de quem escreve. É uma responsabilidade humana: a questão da conservação da memória. A única hipótese de conservarmos o antigo é tornarmos o antigo presente. Acho que isso é uma responsabilidade do escritor: dar a sua atenção ao clássico.”
Pensar - “A boa narrativa pensa, é evidente, e o bom pensamento conta histórias. Pensar não é mais do que contar uma história que é a história de uma ideia. (…) O pensamento é a história de uma ideia. Alguém que pensa está a ter uma ideia que desenvolve ao longo do tempo. Portanto, essa ideia é como se fosse uma personagem que se vai transformando. Tem até opositores. A personagem-ideia tem sempre um inimigo, que é o contra-argumento. Pensar é uma narrativa.”
Século XX - “O século XX é um século que nos está a dizer que temos de estar atentos.”
Tédio - “O tédio é uma sensação muito importante. Se eu tivesse de aconselhar alguma coisa para a escola, em geral, seria que se ensinasse a lidar com o tédio. (…) Tenho muito medo das pessoas que não sabem lidar com o tédio. As pessoas mais desesperadas são aquelas que estão sempre a fugir do tédio. O tédio é uma coisa central, base. O que é o tédio? É um momento de espera em que aparentemente nada está a acontecer. É uma sensação de inutilidade. Mas a vida tem uma percentagem enorme de momentos em que nós estamos à espera. Se não soubermos lidar com isso, estamos a desperdiçar uma matéria fundamental.”
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sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Gonçalo M. Tavares envia "biblioteca" para leitores de Palmela
Gonçalo M. Tavares passou, a partir deste mês, a partilhar os seus apontamentos de “Biblioteca” com leitores através da Biblioteca Municipal de Palmela, num processo que pode envolver escritos de ambas as partes.
Em cada mês, Gonçalo M. Tavares enviará dois textos inéditos para serem divulgados pela Biblioteca de Palmela. Aos leitores é sugerido que produzam um texto-resposta (que pode assumir a forma de apontamento, poema, desenho, ilustração, etc.), devendo o mesmo ser entregue em qualquer dos pólos da Biblioteca palmelense. Posteriormente, os leitores serão convidados a participar num “Curso de Leitura e Imaginação” orientado por Gonçalo M. Tavares.
Para o mês de Novembro, o desafio parte de textos sobre Alexandre O’Neill, podendo ambos ser encontrados aqui.
Em cada mês, Gonçalo M. Tavares enviará dois textos inéditos para serem divulgados pela Biblioteca de Palmela. Aos leitores é sugerido que produzam um texto-resposta (que pode assumir a forma de apontamento, poema, desenho, ilustração, etc.), devendo o mesmo ser entregue em qualquer dos pólos da Biblioteca palmelense. Posteriormente, os leitores serão convidados a participar num “Curso de Leitura e Imaginação” orientado por Gonçalo M. Tavares.
Para o mês de Novembro, o desafio parte de textos sobre Alexandre O’Neill, podendo ambos ser encontrados aqui.
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