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quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (2)

 


A partir do poema “Nocturno”, podemos descobrir como linhas fortes da poesia de Sebastião da Gama a atenção dada ao mar (calmo ou bravo, rumorejando ou espelhando, no ambiente de paisagem ou de trabalho para os pescadores), aos animais que povoam os espaços frequentados pelo poeta, ao céu (que se manifesta pelas estrelas, pelo luar, pelo sol), ao silêncio (que não significa ausência de ruído em absoluto, mas possibilidade de captação dos sons que constituem a orquestra da Natureza, apresentando-se esta como um Outro com quem o poeta se relaciona). Esta junção do silêncio com os sons da Natureza surge bem conciliada no poema “Tempestade”, datado de 4 de Novembro de 1951 (Sebastião da Gama escreveria apenas mais cinco poemas), inserido em Pelo Sonho É que Vamos: “O Vento enchia o Mundo. Mal deixava / lugar para a tremenda voz das ondas. // Mas era o Mar apenas que se ouvia.”

Campo Aberto foi publicado em meados de Fevereiro de 1951, não tendo incluído o poema “Viesses tu, Poesia...”, composto a 10 desse mês, depois inserido na obra póstuma Pelo Sonho É que Vamos (1953). Neste poema, a poesia é associada a uma fada, dotada de vara mágica, que tem o poder de contribuir para a nomeação e para a (re)descoberta — “Bem sei: antes de ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água... / Mas tu é que disseste e os apontaste: / — Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram graça, aparição, presença, / sinal...”. Força (re)criadora, responsável por conferir naturalidade e beleza ao universo, garantia de equilíbrio, regeneradora, numa relação de proximidade e intimidade com o poeta, num tratamento por “tu”, ela é invocada no seu poder: “Ó Poesia!, viesses / na hora desolada / e regressara tudo / à graça do princípio...”

Ruy Belo foi o primeiro prefaciador de Sebastião da Gama que não o conheceu pessoalmente, tendo mesmo dado nota desse pormenor no texto que escreveu em 1970 para abrir a segunda edição de Pelo Sonho É que Vamos, vinda a público no ano seguinte. Considerando ser este “o seu melhor livro”, depois de um percurso de crescente maturidade, afirma sobre esta obra: “bastam os poemas que temos diante para catalogar Sebastião da Gama como aquilo que fundamentalmente ele foi: um cantor da vida, das coisas belas da vida, dos sentimentos nobres, da pureza.”

Não será difícil ver a proximidade entre “Viesses tu, Poesia...”, a apreciação de Ruy Belo e aquilo que Sebastião da Gama pensava da poesia e da forma de a mostrar aos seus alunos, quando registou no Diário, na entrada de 9 de Março de 1949, a justificação para ter organizado uma Semana da Poesia: “O Poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: ‘É preciso saber olhar...’ E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos... E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás... E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante... E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim... E reparou que os homens estavam tristes... E escreveu uns versos que começam desta maneira ‘O segredo é amar’...” Depois, vem a justificação prática deste desvendar o poder transformador da poesia e a necessidade de o incutir nos jovens alunos: “É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno — não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo, graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora.”

O poeta faz questão de se manter fiel à sua temática, aos seus motivos inspiradores, ao seu cenário de poesia, num trajecto quase linear de convicção — data de 28 de Dezembro de 1948, um pequeno poema, “Arte poética”, divulgado numa das mais recentes obras póstumas, Estevas (2004), em que advoga o fim do seu estado de poeta se existir o desvio na sua motivação: “Quando em meus versos nada houver que lembre um ninho, / então sim! — chorem a minha morte.” Talvez não tenha havido ninguém a melhor definir os conteúdos da poesia de Sebastião da Gama que não ele próprio — se recuarmos no tempo até 1942 (ano em que tinha 18 anos), o poema “Testamento”, datado de 20 de Janeiro, até agora inédito, pretendia garantir as marcas por que o poeta queria ficar alinhado, sugerindo, em tom algo humorístico, que, após a sua morte, fosse enterrado na Arrábida, rodeado de alecrim e de rosmaninho, com um letreiro feito de conchas contendo os seguintes dizeres: “Aqui dorme seu sono derradeiro // (...) um doido que viveu a versejar / a Arrábida, a Mulher, a Lua, o Mar.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1378, 2024-09-25, pg. 10. 

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).


terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sebastião da Gama, 60 anos depois

Já lá vão 60 anos sobre o 7 de Fevereiro de 1952, data em que, logo pela manhãzinha, a vida abandonava Sebastião da Gama no Hospital de S. Luís, em Lisboa, depois de, na véspera, ter sido transportado desde o seu Estremozinho… A última palavra que terá dito, sabemo-lo pela Joana Luísa, mulher do poeta, foi “poesia”, conforme ainda recentemente recordou na reportagem publicada na revista do jornal Sol. E não deixa de ser curioso, no mínimo, que o percurso poético de Sebastião da Gama se tenha iniciado na infância, com uma quadra engendrada depois de uma visita à Arrábida, para reportar à família uma descoberta – “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia” –, e se tenha concluído com essa palavra que lhe foi mágica, a “poesia”, já pronunciada com a dificuldade de quem sentia que lhe fugia!...
Sebastião da Gama foi poeta na vida e na escrita. Isto é: Sebastião da Gama foi, sobretudo, poeta e viveu poetando. Em 27 anos que peregrinou, escreveu, escreveu, escreveu. Publicou três livros, de títulos sugestivos, dando a ideia de uma sequência que emergiu de um ponto que lhe foi âncora forte – a Arrábida – para chegar à totalidade de um espaço livre, universo franco à poesia, depois da passagem do cabo. Veja-se essa trilogia: Serra Mãe (1945) – Cabo da boa esperança (1947) – Campo aberto (1951). Que mais completo itinerário se poderia desejar? Bem ele dizia: “meu caminho é por mim fora”…
No dia 8 de Fevereiro de 1952, a Azeitão acorreu um universo de admiradores e amigos, aí se reunindo, não apenas os conterrâneos, mas também os seus colegas (Mourão-Ferreira e Lindley Cintra, por exemplo), os seus professores (Hernâni Cidade, por exemplo), os seus alunos (Nicolau da Claudina, por exemplo, o jovem que não resistiu ao fascínio do mestre e, a pé, fez o caminho entre Palmela e Azeitão para a última despedida devida ao seu professor). A comoção terá sido muita, imagina-se. Os jornais noticiaram. E David Mourão-Ferreira, o amigo que talvez mais tenha escrito sobre Sebastião da Gama – fosse como análise da obra, fosse como testemunho memorialístico –, registou o facto no seu diário, peça ainda inédita, inscrevendo no dia 9: “Lisboa. 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.” O registo é curto, mas é comovente.
Nesse 7 de Fevereiro de 1952, passam agora 60 anos, iniciava-se a memória de Sebastião da Gama. Para trás, ficava um percurso feito de alegria e de humor, num desafio permanente à vida; ficava a convicção da aliança com a Natureza, celebrada pela palavra e materializada também na defesa da serra (uma carta sua, de 1947, foi o ponto de partida para a criação da Liga para a Protecção da Natureza, no ano seguinte); ficava uma experiência pedagógica vivida e relatada de forma ímpar, que ainda hoje é uma revelação e uma pista para professor que se preze; ficava uma obra constituída por cerca de novecentos poemas (muitos ainda inéditos), centenas de cartas (a sua epistolografia não foi ainda estudada e só uma pequena parte está publicada), um diário, diversos ensaios; ficava uma vida cimentada de leituras, muitas e variadas, de escritos que lhe foram contemporâneos ou anteriores a si, de latitudes distintas; ficava uma licenciatura e um percurso de professor, a todos os títulos julgado ímpar (pelos alunos, pelos seus orientadores e professores, pelos seus colegas); ficava a passagem de testemunhos para outros (Mourão-Ferreira reconheceu, em diversos momentos, o quanto ficou a dever a Sebastião da Gama nos faróis literários que lhe apontou, mesmo de outras literaturas que não a portuguesa); ficava uma colaboração intensa em jornais e revistas, num percurso por vários pontos do país (desde Braga até Elvas); ficava uma colecção de poemas dispersos por livros de curso, num gesto de dádiva aos amigos... Tudo isto num percurso que não ultrapassou a idade de 27 anos, num trajecto em que as primeiras assinaturas em poemas surgiram em 1939 (um itinerário literário de pouco mais de doze anos), num caminho que foi traçado a par com uma doença de recuperação suspeita e que acabaria por o vitimar – a tuberculose manifestara-se-lhe por 1938.
Uma vida intensa, feita de literatura e de olhares sobre o mundo. De que ficou uma obra que merece ser lida e estudada. Sebastião da Gama sempre quis que os amigos e os leitores dissessem o que pensavam da sua obra. A correspondência e os encontros que teve com Torga, Pascoaes, Régio e muitos outros aconteceram a pretexto da admiração, mas também com o fito de saber o que eles pensavam sobre os seus escritos. Assim, foi extremamente criterioso no que publicou e na forma como o fez. Quando morreu, tinha já ordenado outro livro, que viria a ser dominado pelo verso conhecido “pelo sonho é que vamos”. A publicação da sua obra prosseguiu em edições póstumas, num trabalho que se ficou a dever, sobretudo, a Joana Luísa da Gama, a mulher que teve a sensibilidade suficiente para não deixar que a obra de Sebastião se finasse com esse 7 de Fevereiro… mas que teve também o concurso cuidado de amigos como Lindley Cintra, Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Lourdes Belchior, Hernâni Cidade, Luís Amaro, Couto Viana e António Osório. É graças a esta constelação que, hoje, podemos continuar a conviver com a palavra de Sebastião da Gama, um poeta que não se deixou enredar em escolas e que serviu a taça do lirismo a todos os convivas da mesa literária.
Que melhor forma de concluir esta evocação senão com as palavras de Ruy Belo, também poeta? Ele, que foi o primeiro prefaciador de uma obra de Sebastião da Gama que não fez parte do seu círculo de amigos, que nem o conheceu pessoalmente, escreveu na revista Rumo, em 1957: “Um poeta é o que foi. Está aí. É assim. (…) Sebastião da Gama é um poeta integral (…). O que sai da sua pena aparece transmutado, digerido, obtido através de um conhecimento co-natural em que a distinção entre matéria e forma, se existe, equivale à distinção entre obra e não obra (…). A esta luz se pode apreciar a sua autenticidade. Nem nos impõe a sua própria vontade de homem, que fica lá atrás com a vida, com as suas circunstâncias, com a sua biografia, nem a sua voz se faz ouvir devido a razões extra-literárias. (…) Nem romântico, nem social, portanto. Poeta, simplesmente.”
Sebastião da Gama aí está, pois. Sessenta anos volvidos, merece a nossa leitura. É a melhor forma de construirmos a memória e de o homenagearmos.
[Na foto: lápide colocada na casa onde Sebastião da Gama viveu até aos 14 anos, em Azeitão, em homenagem que ali foi prestada em Fevereiro de 1953]

quarta-feira, 19 de março de 2008

Poemas para os pais

O livro termina com uma “inverdade” que pretende ser simpática: “aos dezanove de março de dois mil e oito imprimiu-se na EGRAFE, SA esta primeira edição portuguesa de poesia da Prisa Innova para comemorar o dia do pai e a chegada da primavera”. Ora, acontece que o livro foi impresso para assinalar esses dois acontecimentos mas não nesse dia; na verdade, o livro foi posto à venda ontem, dia em que saiu para a rua a acompanhar o diário Público. Fala-se de Em nome do Pai – Pequena antologia do Pai na poesia portuguesa, volume com cerca de 120 páginas por onde perpassam textos de meia centena de poetas que trouxeram o pai para motivo da sua poesia, organizado por José da Cruz Santos e prefaciado por Vasco Graça Moura, que, além desta função, é também um dos antologiados. A direcção gráfica é de Armando Alves.
O texto introdutório de Graça Moura chama a atenção para a raridade que foi a entrada da figura do pai na poesia portuguesa anterior ao século XX, altura em que surgiu esplendorosa no poema de Jorge de Sena “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” (em Metamorfoses, de 1963). Por outro lado, é acentuada a ausência que envolve o tratamento da figura paterna na poesia – “embora alguns [poetas] façam a sua referência ao momento da morte, poder-se-á dizer que predominam as recordações da figura do pai na infância do autor e de um convívio determinante com ela.” A explicação de Graça Moura termina, aliás, com uma conclusão inevitável: “como se vê dos poemas aqui compendiados, todos os pais desaparecidos se tornaram fantasmas melancólicos”. Pelo caminho, ficou ainda uma explicação para o facto de a figura da mãe, essa sim, ter intensa presença na literatura poética portuguesa, fenómeno a que não está alheia a promoção da imagem materna “ao longo dos séculos pela devoção religiosa que veio mais tarde a encontrar a sua transposição laica para o plano da maternidade comum”.
O leque de autores reunidos começa com três nomes do século XIX – Camilo, António Nobre e Cesário Verde. Seguem-se nomes que entraram pelo século XX, logo a partir do quarto autor escolhido, Ângelo de Lima. Para falarmos de nomes relacionados com a região de Setúbal (um critério que justifica que não se liste a meia centena de autores seleccionados), citem-se António Osório (com fortes ligações à Arrábida e a Azeitão), Ruy Belo (que prefaciou o livro Pelo sonho é que vamos, de Sebastião da Gama, em 1970), Jorge Reis-Sá (o poeta que quase “fecha” a antologia e foi vencedor da 6ª edição do Prémio Literário Bocage, organizado pela LASA em 2004) e Amadeu Baptista (que foi o vencedor do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, organizado pelas Juntas de Freguesia de Azeitão em 2007).
Se o livro, enquanto objecto, é bonito, pena é que a antologia não contenha indicações sobre os autores (pelo menos as datas dos períodos de vida) e sobre os livros de onde os textos saltaram!
E, porque se está em Dia do Pai, dou a palavra a José Tolentino de Mendonça, aqui antologiado com o poema “A casa onde às vezes regresso” (reunido em A noite abre meus olhos, de 2006):
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração