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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Bocage olha o Sado há 150 anos



As referências de Bocage (1765-1805) a Setúbal, onde nasceu, são escassas; no entanto, sempre ficou gravado aquele verso de despedida “Eu me ausento de ti meu pátrio Sado”, que, abrindo um soneto, se outra mensagem não contivesse, sempre atestaria o laço biográfico do poeta com Setúbal. Mas, quando eram passados 66 anos sobre a partida definitiva de Bocage, a cidade encarregou-se de o pôr a olhar eternamente o mesmo Sado de que se despedira, ao erigir-lhe uma estátua, localizada no centro cívico, com os olhos postos na paisagem que se estende até ao rio.

Batiam as duas da tarde de 21 de Dezembro de 1871 quando se iniciou a cerimónia de inauguração do monumento, figura desenhada por Pedro Carlos dos Reis (1819-1893) e talhada por Germano José de Sales (?-1902), com António Rodrigues Manito (1819-1906), presidente da Câmara de Setúbal, a intervir: “Setúbal paga no dia de hoje uma dívida que não era só nossa, era de todos os que falam a língua portuguesa (...), assinala entre os maiores dias das suas glórias este da inauguração da estátua do grande poeta seu conterrâneo.” E, valorizando o papel da memória: “Do alto daquela coluna será Bocage o incitador da civilização dos seus patrícios, o guia dos nossos progressos, e, ainda depois da trabalhosa vida, o escudo da sua terra natal.”

Documento importante para a reconstituição do ambiente vivido nesse dia é o “Auto da inauguração da estátua de Bocage na cidade de Setúbal”, publicado no Diário do Governo, em 29 de Dezembro de 1871, que transcreve também a intervenção do Marquês de Ávila e Bolama (que presidiu à cerimónia) e lista grande parte dos presentes - aí constando importantes nomes das letras portuguesas como Bulhão Pato, Pinheiro Chagas, Silva Túlio ou Feliciano de Castilho, entre outros.

Século e meio volvido sobre esse 21 de Dezembro, o catálogo O monumento a Bocage - 150 anos olhando o Sado, concebido para a exposição com o mesmo título (em curso na Galeria Municipal do 11, com curadoria de Francisca Ribeiro), constitui bom contributo para o leitor ajuizar do que tem sido a memória bocagiana, seja pela reprodução de documentos, seja pela revelação de alguns dados novos, seja pela coerência quanto ao simbolismo que o tempo tem atribuído à estátua - desde a ideia da construção e respectiva angariação de fundos (1864), passando pelo momento da inauguração (1871), detendo-se na celebração do primeiro centenário do nascimento (1905) e mostrando como até hoje o espaço tem merecido a consideração da cidade.

Interessante é ver que, em torno desta figura e deste monumento, se tem congregado e manifestado a população pelos mais diversos motivos locais assim como a política nos mais variados momentos. Não menos curioso é vermos que a celebração de Bocage teve celebração partilhada com Frei Agostinho da Cruz em 1905 - primeiro centenário do nascimento de Bocage e terceiro centenário da chegada do poeta franciscano à Arrábida.

A ideia da construção do monumento a Bocage terá partido de outro poeta, António Feliciano de Castilho (1800-1875), quando soube da colocação da lápide na casa onde se supunha ter nascido Bocage, em 1864, ideia devida ao setubalense Manuel Maria Portela (1833-1906). A conjugação destas figuras e a participação brasileira através de José Feliciano de Castilho (1810-1879) permitiram que a ideia germinasse e se concretizasse sete anos depois.

Este relevo dado a uma figura nacional como foi Bocage não escapa às tonalidades do Romantismo - independentemente do que valham os prefixos, a verdade é que temos um “pré-romântico” (Bocage) enaltecido à custa da ideia de um “ultra-romântico” (Castilho)...

Exposição a ver e catálogo a conservar, pois!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 758, 2021-12-21, p. 3


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O monumento a Bocage e a “farpa” de Ramalho Ortigão



Ramalho Ortigão (1836-1915) e Eça de Queirós (1845-1900) formam o par que alimentou o projecto d’As Farpas - Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes (Lisboa: Tipografia Universal), conjunto de volumes de opinião iniciado em Maio de 1871 com um exemplar de 96 páginas e o custo de 200 réis, que durou até 1883 (nem sempre respeitando a periodicidade mensal), embora Eça só tivesse colaborado até Outubro de 1872 por ter ingressado na carreira diplomática (as suas crónicas foram reunidas em 1890 em Uma campanha alegre). 

Pel’As Farpas passou a crítica social, política, artística, religiosa, educativa, retratos de um Portugal pela lente dos que alimentaram a Geração de 70, de maneira a criticarem um certo marasmo. Os objectivos das crónicas com tão acutilante e cáustico título eram claros, como se pode ver logo no primeiro volume: “Leitor de bom senso - que abres curiosamente a primeira página deste livrinho -, sabe, leitor - celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil -, que foi para ti que ele foi escrito - se tens bom senso! E a ideia de te dar assim, todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra confusa dos factos alguns contornos do perfil do nosso tempo.” Recusando cumplicidade na situação, os autores decidem “apontar dia por dia o que poderíamos chamar o progresso da decadência”, recorrendo ao riso, ao humor, confessando: “não sabemos, talvez, onde se deva ir; sabemos de certo onde se não deve estar.”

É assim que o volume relativo a Dezembro de 1871 (publicado em Janeiro seguinte) refere a inauguração do monumento a Bocage ocorrida em 21 desse mês em Setúbal, cerimónia presenciada pelos dois amigos, Eça e Ramalho, que integraram a comitiva vinda de Lisboa.

O texto (que, em 1889, foi integrado no volume 9 de As Farpas, dedicado ao “Movimento literário e artístico”), devido a Ramalho Ortigão, é contundente, pois aproveita o facto de o Marquês de Ávila e Bolama ter presidido à cerimónia para o criticar, na sequência de várias acções ligadas à sua governação. Chega Ramalho a admitir que a presença desta personalidade na presidência da cerimónia era o contrário do que Bocage mereceria - na memória estava ainda a proibição da manifestação cultural que foram as Conferências Democráticas do Casino, ocorrida em finais de Junho de 1871, assinada por Ávila e Bolama, acto entendido como de censura, contrariando o espírito livre do poeta sadino - “Bocage é a contestação acerba e crua de todos os títulos que concorrem no sr. Marquês de Ávila e Bolama”, escrevia Ramalho, que também felicitava Setúbal pela iniciativa - “Setúbal levantou uma estátua ao poeta Bocage, pelo que se nos não oferece senão fazer os nossos cumprimentos a Setúbal” -, embora lamente também que, em vida, Bocage não tenha recebido da sua cidade “um ceitil para o livrar da penúria”.

A imagem do “arrependimento” que a terra-natal de Bocage possa ter tido ao pagar-lhe a celebridade com uma estátua serve a Ramalho para estabelecer o paralelismo com o papel de Ávila ao presidir às cerimónias desse 21 de Dezembro - “Setúbal, levantando uma estátua a Bocage, testemunha o seu remorso pelo que deixou de fazer. O Sr. Marquês de Ávila, inaugurando essa estátua, declara o seu arrependimento por aquilo que tem feito.” E, ironia das ironias: “Àquela cidade e àquele cidadão, os nossos parabéns!” Não se podia falar melhor do aproveitamento político da inauguração de uma estátua!...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 754, 2021-12-15, pg. 7