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quinta-feira, 20 de maio de 2021

Serafim Ferreira e o louvor dos editores



A experiência editorial de Serafim Ferreira (1939-2015) pautou-se por vários marcadores - Edições Saturno, Ulisseia, Círculo de Leitores, Portugália, Diabril, Fronteira. Em 1999, assinou o livro Olhar de Editor (reeditado em 2019, na Montag), doze capítulos e epílogo, assumida homenagem aos mentores de dezassete editoras de referência no mundo livreiro português - Luiz de Montalvor (Ática), Delfim Guimarães e Maria Leonor Cunha Leão (Guimarães Editores), Augusto dos Santos Abranches (Livraria Portugália, Coimbra), António Pedro (Confluência), Figueiredo de Magalhães (Ulisseia), Agostinho Fernandes e Augusto da Costa Dias (Portugália), Eduardo Salgueiro (Inquérito), Manuel Rodrigues de Oliveira (Cosmos), Américo Fraga Lamares (Civilização), Mário Figueirinhas (Figueirinhas), Viúva Moré e Ernesto Chardron (Lello & Irmãos), Manuel Rodrigues (Minerva), José Saramago (Estúdios Cor), Rogério de Freitas e Leão Penedo (Artis), Viriato Camilo (Prelo), Fernando Ribeiro de Mello (Afrodite) e Luiz Pacheco (Contraponto).

Os diversos capítulos assumem a forma de mensagens dirigidas ao amigo Luís Silveira (de quem há pistas ao longo da obra, ele também um devoto dos livros), organizadas como “desabafos entrelaçados em forma de narrativa”, num “propositado memorial”, em tempo de lembrança que a situação de reformado também permitia. Razão de ser para a escolha deste tema e deste grupo, regista-a Serafim Ferreira: “acho injusto como facilmente esquecemos os nomes daqueles que foram responsáveis pela publicação de tantos e tantos livros e de quem se ignora ou se perderam os seus nomes na confusão de títulos e de autores que ainda hoje se lêem”. Linhas adiante, apresenta o seu “propósito de erguer um memorial por alguns editores”, explicando serem escolhidos os “que cumpriram a sua acção no meio de grande desassossego”.

Os textos, muito próximos do género epistolar, com marcas de proximidade (pela coloquialidade sugerida ou por uma sintaxe não alheia à oralidade), cruzam o tom memorialístico e a biografia com algumas experiências testemunhadas pelo emissor e pelo destinatário (como a da discussão, em 1963, sobre a validade estética neo-realista, num debate em que também intervieram Cardoso Pires e Alexandre Pinheiro Torres). A construção deste livro, explica-a o próprio Serafim Ferreira, ao evocar Figueiredo de Magalhães: “perpassam por estas páginas ecos de muitas conversas, histórias e recordações de situações que vivi e não pude esquecer, me fizeram pensar o que penso da literatura, num misto de esperança e desencanto por valores que foram de ontem e ainda são de hoje.”

Desde o início da obra, a figura geométrica da leitura é o triângulo, cujos vértices são o leitor, o autor e o editor. E não será acaso Luiz Pacheco surgir como o último editor abordado (acumulando a perspectiva de escritor e de leitor), que, com “uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns dos bons livros que fez chegar às mãos de muita gente”, autor de “belíssimos textos marcadamente autobiográficos”, onde perpassa “a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo.”

O epílogo, reserva-o Serafim Ferreira para falar da sua derradeira experiência como editor, na Fronteira, reclamando o papel de agitador cultural, num percurso marcado por “intervir sem alienar e publicar sem nunca mercadejar”. Simultaneamente, este final é também a satisfação de ter partilhado histórias de que fez parte - os editores foram as suas personagens e o texto conclui com uma saudação ao amigo: “No fundo, acredita, foi agradável estar na tua e na companhia de tão boa gente.” Saudação que, por certo, abrangia também os seus leitores...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 625, 2021-05-19, p. 9.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Quando Luiz Pacheco escreveu a Raposo Nunes



Na bibliografia de Luiz Pacheco (1925-2008) constam vários títulos que reúnem parte da sua epistolografia, área em que foi pródigo, talvez por constituir esse género um espaço de liberdade e de autenticidade (à mistura com alguma teatralidade e com alguma preocupação em deixar obra), valores que o nortearam. Entre 1990 (19 de Dezembro) e 2003 (9 de Abril), em Setúbal, o livreiro e alfarrabista João Carlos Raposo Nunes recebeu 22 missivas do seu amigo Pacheco, conjunto que, em 2005, foi publicado sob o título de Cartas ao Léu, agora republicado (Lisboa: Maldoror, 2020).

Organizador das edições foi António Cândido Franco, que assume este reaparecimento como uma oportunidade para “revisitar” aquilo que considera “o retrato de uma geração fim de século que se reuniu à volta de Raposo Nunes entre 1989 e 2000”. Com efeito, o destinatário destas cartas, responsável pela livraria setubalense Uni-Verso, fomentou, nesse tempo, um grupo que tinha como características mais evidentes o amor ao pensamento e à poesia, muitos dos seus elementos participantes na página “Arca do Verbo”, que Raposo Nunes animou no periódico O Setubalense ao longo de quase uma década (362 números, entre 1988 e 1997), por onde passaram cerca de 350 autores, incluindo Luiz Pacheco (em cinco números).

Este conjunto de dezassete postais e cinco cartas tem a primeira mensagem datada de 1990, estando as outras registadas entre 1999 e 2003. O hiato de nove anos na escrita explica-se por ter sido esse o tempo em que Pacheco viveu entre Setúbal e Palmela, propício a muitos encontros entre os dois amigos; em 1999, ao mudar-se para o Montijo (e, depois, para Lisboa), Pacheco recorreu às cartas para o convívio com o amigo de Setúbal.

Não são longas as comunicações; mas são povoadas por muita gente e por uma forma de pensar que põe a descoberto o espírito do emissor. O fascínio de Pacheco pelo estabelecimento do amigo é vivamente demonstrado logo no postal de 1990: “Isso não é uma livraria; isso não é um alfarrabista; isso não é para vender selos da Indonésia. (...) Isso é o Olimpo.” A partir de 1999, o destinatário é referido como “Raposão”, “Senhor Raposão”, “Poeta editor, livreiro”, “Dr.”, “Sr. Raposão-Mor”, “Dr. Raposão”, “Poeta”, “Poeta e Amigão” e “Mister Raposão”, formas de tratamento que demonstram a proximidade, o afecto, a criatividade e a vivacidade discursiva do subscritor.

Os assuntos abordados são diversos - a vida editorial, pedido de livros, o dinheiro (ou a falta dele), os amigos, a opinião sobre algumas obras, desabafos sobre a vivência nas residências por onde passou -, sempre numa escrita de impulso, rápida, eficaz na brevidade, povoada por um sentido de humor à maneira pachequiana - alternando entre o irónico e o terno, o humano e o satisfeito com a vida.

Esta nova edição de Cartas ao Léu apresenta os textos que constavam na anterior (a correspondência amplamente anotada, alguns ensaios sobre a epistolografia e a crítica de Pacheco e um roteiro cronológico de contextualização, assinados pelo organizador; dois textos de Luiz Pacheco saídos no suplemento “Arca do Verbo”;  e apreciações sobre a obra Raposo Nunes assinadas por António Cabrita, Avelino de Sousa e Agostinho da Silva), acrescidos de dois curtos textos que actualizam a obra em termos de bibliografia aparecida nos 15 anos que medeiam as duas edições e justificam a reedição e de fotografias.

Obra a (re)ler. Sobretudo porque revivemos o tempo feliz (apesar de tudo) que Luiz Pacheco passou, à sua maneira, em Setúbal.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 436, 2020-07-15, pg. 10.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Luiz Pacheco biografado

Encontrei-me no final do dia com esta biografia de Luiz Pacheco (Puta que os Pariu - A Biografia de Luiz Pacheco. Lisboa: Tinta-da-China, 2011), devida a João Pedro George. Trouxe-a, ansioso por nela entrar. Ainda só li a "Introdução", mas fiquei à espera de assunto sério, de um percurso como o Pacheco merece, mesmo pela literatura, sobretudo pela literatura. Será uma leitura para estes dias, entre outras, pelo meio de outras.
A "Introdução" abre com uma verdade perfeita sobre o biografado: "Luiz Pacheco era capaz das loucuras mais desapiedadas, mas também de actos de grande generosidade. Pessoa cheia de contrastes, de oscilações e de incoerências, tinha uma enorme facilidade para relacionar-se com os outros e, depois, para cortar relações."
Polémico, sempre polémico, era assim Luiz Pacheco. Conheci amigos dele nas circunstâncias desta abertura. Tive a sorte de o ter conhecido para além da escrita e de termos construído cavaqueira em várias tardes. Também por isso o quero reencontrar.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Luiz Pacheco, em exposição e em catálogo


Até 27 de Fevereiro, a Biblioteca Nacional tem uma exposição sobre Luiz Pacheco, o escritor e o editor da Contraponto, que vale a pena ver, pelo contacto com os papéis que lhe pertenceram e com os livros que fizeram a história de uma editora que durou meio século, um quase espelho de Pacheco, que lhe correu atrás e se instalou onde o seu mentor estava, um quase reflexo ou mapa da pachecal peregrinação geográfica e cultural.
Mas, se não for possível visitar a exposição, há o catálogo (Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal / Leya-D. Quixote, 2009) para ler, ver e guardar. Um “dois em um”, tendo 204 páginas dedicadas ao título Luiz Pacheco – 1 Homem dividido vale por 2 e 174 páginas consagradas ao tema Contraponto – Bibliografia.
Imagino como se sentiria Luiz Pacheco ao ver esta peça sobre a sua obra… Por certo, apreciaria, uma vez que gostava das coisas bem feitas, exímio como era na caça à gralha e aos defeitos. Por certo, gostaria, num olhar de gozo intrometido. Isto, para não me pôr a imaginar como reagiria Pacheco a ver a sua obra exposta na Biblioteca Nacional, um panteão da cultura… e aqui relembro o texto de Ana Silva neste catálogo, que assim começa: “O quê? O Visconde dos Quatro Caminhos na Biblioteca Nacional?! Estou a ouvi-lo a desatar a rir, meio orgulhoso, meio escarnecedor, um tanto espantado, um tanto arrepiado.”
No primeiro grupo deste catálogo, há textos (escritos para este efeito) de Luís Gomes (comissário da exposição), de Mário Soares e de Ana da Silva, e outros, surgidos de outros tempos e de outros escritos, assinados por Vítor Silva Tavares, António José Forte, Virgílio Martinho, Ricardo-Dácio de Sousa e Ana da Silva; depois, há ainda o catálogo dos textos pachecais e reproduções fotográficas de algumas capas e textos e – o mais importante e original neste catálogo, porque de um novo livro de Luiz Pacheco se trata – um conjunto de 70 páginas de cartas, tendo Pacheco como emissor e Jaime Aires Pereira como destinatário, sob o título 1 homem dividido vale por 2, escritas entre 1964 e 1966, com Luiz Pacheco nas suas rotas entre Setúbal, Lisboa e Caldas da Rainha e no seu modo de ser escritor, editor, crítico, provocador, tudo com uma dose de esforço qb, muitas vezes a aguardar a correspondência dos amigos, de preferência recheada de “vintes”, porque havia a “tribo” para alimentar e a casa para pagar, de preferência a prestar ajuda na edição, fosse pelo escrever as “ceras”, fosse pela duplicação das folhas, que assim se construía uma editora e se fazia uma obra.
O segundo grupo desta obra respeita à editora que está colada ao nome de Luiz Pacheco, a Contraponto (com sede em Lisboa, Setúbal, Caldas da Rainha, Palmela ou Montijo, consoante as mudanças de morada do próprio editor) através da qual nasceram para a literatura muitos nomes hoje importantes e que também escolheu criteriosamente as suas traduções. A anteceder o catálogo das edições de Contraponto (também com bastantes reproduções fotográficas), há textos de Vítor Silva Tavares e de Manuel de Freitas. O que pode ter tido de significativo a passagem de Pacheco pelo mundo editorial bem o diz Manuel de Freitas: “Bastar-lhe-ia ser responsável, na Contraponto, pela publicação de livros como Manual de prestidigitação, de Mário Cesariny, ou O amor em visita, de Herberto Helder, para que o seu nome fizesse, de pleno direito, parte importante da história da edição em Portugal na segunda metade do século XX.”
Boa e merecida homenagem a Pacheco, não pelo que as homenagens carregam de saudosismo, mas porque o testemunha na sua unidade de escritor e editor. E, já agora, porque não admiti-lo?, porque Pacheco, apesar das muitas e diversas opiniões, deixou saudades.

10 máximas de Luiz Pacheco nas cartas a Aires Pereira
1) "Até onde, entre amigos íntimos e sinceros, a dureza é vantajosa? até onde a sinceridade se revela proveitosa? onde começam, uma e outra, a ser desumanas?” (1964)
2) "Eu, enquanto não vem o carteiro pela manhã, nunca sei o que temos para ou se haverá almoço.” (27 de Maio de 1965)
3) “A perfeição é um mito.” (27 de Maio de 1965)
4) "A alma humana é um abismo.” (22 de Janeiro de 1966)
5) “Textos locais virão acentuar certas posições minhas em relação a esta negra Sociedade onde vegetamos, por nosso azar.” (2 de Março de 1966)
6) "Se V. soubesse o que custa gramar as pessoas e como passamos grande tempo deste nosso precioso andar pelo Mundo a dar cabo de nós e delas, estupidamente. E é ainda esta estupidez o que mais custa!” (16 de Março de 1966)
7) "Só há uma maneira de dizer as coisas, uma de cada vez.” (7 de Abril de 1966)
8) "Prometem-me o hospício ou a cadeia [a propósito da publicação de Crítica de circunstância]. Fiquei muito honrado por eles se lembrarem de mim. O que são é pouco originais, porque fizeram o mesmo ao Marquês de Sade, no século XVIII.” (12 de Abril de 1966)
9) "Apostemos no optimismo da Natureza, que não tem culpa nenhuma da loucura dos homens nem das feras-femininas.” (8 de Julho de 1966)
10) "Estes problemas dos outros são sempre mais fáceis de encarar e resolver que os nossos, valha-nos isso, para, ao menos, nos distrairmos dos nossos.” (11 de Julho)

sábado, 26 de dezembro de 2009

Luiz Pacheco: "Isto de estar vivo"

Um conjunto de “artigalhadas” e “espirros”, assim indicou Luiz Pacheco como sendo o conteúdo do seu livro Isto de estar vivo (Palmela: Contraponto, 2000), que inseriu ilustrações de Alice Geirinhas. No total, 35 textos, que foram outras tantas crónicas publicadas na imprensa.
Opiniões e lembranças, notas sobre livros e autores, num percurso resultante de leituras, ora em edições acabadas de sair, ora encontrando textos já antigos (em incansáveis idas às bibliotecas, sobretudo à Municipal de Setúbal), ora comentando a vida literária sentida em Portugal. Por aqui passam nomes como Alexandre Herculano, Fernando Pessoa, José Gomes Ferreira, José Régio, Vitorino Nemésio, António Gedeão, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Jorge Amado, Viana Moog, Agustina Bessa-Luís, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, António Maria Lisboa, Clara Pinto Correia, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Helena Marques, Luísa Beltrão, Julieta Monginho, Manuel Alegre, António Lobo Antunes e Jostein Gaarder; temas como o seminário na formação de muitas personalidades, a escrita para concursos, os brandos costumes, a censura, Salazar ou o papel do Teatro do Salitre; e memórias e retratos do "escriba", quase sempre rápidos, em alusão breve.
O leitor encontra-se com a crítica certeira produzida por um Pacheco que se ri das andanças do mundo, sobretudo do mundo intelectual, e que se justifica quanto ao seu tom: “Perdoe-se-me: sou homem e nada do que é humano me é alheio.” Não esconde o seu estado de espírito – “Fico por aqui que a minha tensão está a subir” – nem uma aproximação aos leitores – sobre um texto de António Sérgio, cuja eventual republicação ignorava, pedia “Faço aqui um apelo: alguém me poderá indicar onde, se foi republicado; ou conseguir uma fotocópia desse texto?” – nem o prazer de viver – ao lembrar um espectáculo do Teatro do Salitre dos idos de 40, conclui: “A minha memória cai no passado e paro para não me entregar a devaneios saudosistas. É que morreu quase essa gente toda. Quem vive? O Rebello, o Artur Ramos e um lote de esplêndidos actores. E eu, oh!”
O último texto, “Memorial do recolhimento”, de cariz autobiográfico, relata a sua experiência de vida num lar, em Palmela, reflectindo sobre a idade e sobre a morte, mas sempre com uma certeza, trazida pelo trabalho e pela edição (que continuava a fazer): “Se padeci sustos e flatos e, às vezes, isto parece uma casa de orates, não perdi a vontade de rir de mim, principalmente, o que é óptimo sintoma. Dêem-me os parabéns.”
Frases que ficam
Viver – “Ninguém se arrogue a pretensão de viver, sempre, dias interessantes, dignos de menção. Era o que faltava!”
Crítico – “Eis um crítico literário a meu gosto. Fala daquilo que ama e de quem ama; eleva um Autor, sem rabulices tecnicistas, à estima do leitor comum.”
Encosto – “Será pessimista ou negativo, por exagerado, reconhecer que um escriba andando sempre colado ao Sistema, aos vários poderes dos vários sistemas (e tantos eles foram nos derradeiros 50 anos) não se pode arrogar, depois, fazer-lhe a crítica… que por dentro será arrojada, talvez suicida, por fora redundará em folclórica: inócua, supérflua, literatelha.”
Saber – “Houve o tempo dos almanaques. E até ficou conhecida, em pejorativo, em degradante, uma dita ciência de almanaque, que designava um amontoado de noções rápidas, amacacadas, nomes, datas, caganifâncias inúteis com as quais se podia aparentar, para ignaro ver, alguma cultura. Não fazia mal a ninguém, entretinha, iludia quem queria ser e merecia ser iludido.”
Lar – “Aqui há meses, chateadíssimo de viver sozinho, resolvi recolher a um lar da terceira-idade. Calcula-se o que é. Antros de horror, para onde os velhos são atirados porque aborrecem ou incomodam em casa da família, dos filhos. Não sei ao certo de onde veio esta moda, mas calculo. E veio para ficar. Normas comunitárias, subsídios que transformam idosos incapazes em rendosa matéria-prima; despojos humanos vampirizados por gente sem escrúpulos nenhuns e gulosa dos apoios oficiais, apenas. Lares? Meros depósitos de pré-cadáveres. Pobre gente no derradeiro patamar da vida, apoquentada pela idade avançada, a insânia do caruncho, a doença, a invalidez física.”

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Uma noite com Luiz Pacheco

São cerca de três dezenas os textos que compõem Raio de luar (Lisboa: Oficina do Livro, 2003), conjunto de “artigalhada” produzida para jornais, em que revemos Luiz Pacheco na sua força e na sua coerência, apetecendo dizer com Rui Zink (que prefacia o livro): “Já fiz mais-valia com a leitura de Luiz Pacheco. Tradução: já ganhei muito com a sua leitura. E garanto que, nestes tempos cinzentos, não é coisa pouca, encontrar livros que nos dêem mais-valia.”
Pelas páginas de Raio de luar perpassam memórias e olhares sobre o mundo e sobre a cultura portuguesa, ao mesmo tempo que vai ficando um rasto autobiográfico assumido. Pacheco escreve sobre os outros para também falar de si. A variedade temática é grande, ocupando destacado e principal lugar a literatura, seja pelos nomes que são invocados, seja pelos assuntos trazidos (censura e liberdade, epistolografia, movimentos, vida editorial), seja pelas leituras que vão sendo acusadas.
A ironia e o riso surpreendem em muitas ocasiões, numa escrita que acompanha o gesto do próprio “escriba” – “onde o destempero das duas manas me deu enorme vontade de rir, foi quando a Clarinha revelou que tem medo do futuro. Medo de ficar sem emprego. É boa!” Mas também a pedagogia entra neste conjunto de textos, haja em vista a história de uma consulta no hospital de S. José, contada em “Granito? Não, obrigado”, que bem poderia constituir um texto de importância para o atendimento hospitalar… ainda que conclua com a promessa de, numa próxima consulta, transportar “uma moca tipo riomaior”…
Embora falando preferencialmente do que vê e lê, não esquece também as pequenas histórias do que viveu, em muitas ocasiões deixando que o eu se exponha – pelos sítios que frequenta (entre Palmela, no lar, e Setúbal, nas livrarias e na Biblioteca, por exemplo), pelo ambiente do seu quotidiano (o olhar sobre os companheiros de residência), pelas considerações quanto ao que lhe falta (“em Palmela, há um castelo, mas livrarias, que é delas?”, “Setúbal, cidade sob vários aspectos periférica em termos culturais”), pelas identificações (“o que mais me encanta neste livro é a alegria que ali julgo surpreender no acto da escrita”, dirá a propósito de O manto, de Agustina), pelas memórias agradáveis guardadas de alguns professores (Câmara Reys, que lhe indicou leituras, Vitorino Nemésio, o “labioso volúvel” que apreciava, ou António Gedeão, aliás Rómulo de Carvalho, verdadeiro “exemplo do humano”), pelo recuo até à infância alentejana (a propósito de uns poemas de Manuel Alegre), pelos “fait-divers” (como a sua entrada no filme Conversa acabada), pelo seu gosto e orgulho enquanto editor (“se há coisa que me encha de cagança é essa minha actividade de Editor, a qual excede de longe a de Autor e lanço daqui mesmo um desafio: não pode haver em Portugal nenhuma bibliotecazinha decente que não tenha lá um livro editado por mim – poesia ou teatro, cinema, ficção, ensaio”) e pela sua exposição do que considera ser um “escritor maldito” (título com que o cognominaram) em texto que encerra o livro.
Raio de luar lê-se de seguida, que o difícil é parar. E por essa escrita vai passando o tom oralizante de Pacheco, quase como se numa conversa estivéssemos… mas apenas ouvindo-o. Lendo-o, aliás.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Luiz Pacheco desde o Brasil, na "Agulha"

Xico Sá apresenta, na última edição on line de Agulha (Fortaleza: Março-Abril.2008, nº 62) a obra O espelho libertino, de Luiz Pacheco, organizada por Floriano Martins, na colecção "Ponte Velha", (São Paulo: Escrituras Editora, 2007).
Um excerto: "Pacheco sempre conviveu com suas ambições, com seus erros e acertos. Longe dele a idéia de ser um exemplo. Está bem mais para um antiexemplo, considerando a hipocrisia que denuncia com seus textos, a penetrante leitura que faz de assuntos que envolvem, sobretudo, o temperamento do intelectual português. Há sempre um tom de manifesto ou mesmo de escracho em tudo que escreve, como se a todo instante buscasse desmascarar situações veladas. Caberá ao leitor ir se aproximando da torrencialidade da escrita de Luiz Pacheco, de sua sinceridade caudalosa, percebendo nesta aproximação que não se trata do discurso de um meramente descontente ou de um frustrado, mas antes se trata da indignação sempre a postos, de alguém que expõe com exímia lucidez as entranhas agonizantes de uma época."
O retrato não desagradaria a Pacheco, por certo. Já os pormenores biobibliográficos que constam no final do texto o não contentariam, nomeadamente o de o porem a morrer antes do tempo...

terça-feira, 18 de março de 2008

Luiz Pacheco lembrado por Serafim Ferreira

O texto vem n'A Página da Educação deste mês (Porto: Profedições, nº 176, Março.2008, pg. 40). Vale bem a pena lê-lo por ser uma boa memória, feita por quem bem conheceu Luiz Pacheco.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Ficha de leitura (2) - Luiz Pacheco em conversa

Em torno de Luiz Pacheco houve umas quantas (grandes) entrevistas, algumas reunidas nos dois volumes O uivo do coiote (ambos da Contraponto e ambos com trabalho gráfico de setubalenses; o primeiro, de 1992, com uma entrevista feita por Baptista-Bastos para o JL, em 1985, preparado por José Teófilo Duarte; o segundo, de 1996, com capa de Paulo Curto, republicando a do volume anterior e mais três, feitas por Clara Ferreira Alves e João Macedo, para o Expresso em 1988, por António Tavares-Teles, para A Capital em 1988, e por Rui Zink e Carlos Quevedo, para a K em 1992). Recentemente, uma dúzia de entrevistas saiu sob o título O crocodilo que voa – Entrevistas a Luiz Pacheco, edição organizada por João Pedro George (Lisboa: Tinta-da-china, 2008). Das que tinham já sido reunidas em livro em torno da bibliografia pachequiana, apenas a da revista K é republicada, sendo as outras de Baptista-Bastos (O Inimigo, Abril.1994), Mário Santos (Público, Março.1995), João Paulo Cotrim (Ler, Verão.1995), Claúdia Galhós (Blitz, Dezembro.1995), Paula Moura Pinheiro (, Julho.1996), Rodrigues da Silva e Ricardo Araújo Pereira (JL, Setembro.1997), João Pedro George (blogue Esplanar, Maio.2005), Pedro Castro (A Capital, Julho.2005), Pedro Dias de Almeida (Visão, Setembro.2005), Rodrigues da Silva (JL, Setembro.2005) e de Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes (Sol, datada de Novembro de 2007, apenas publicada em Janeiro seguinte, depois do falecimento de Luiz Pacheco).
As entrevistas a Luiz Pacheco foram sempre a pretexto da sua pessoa, ainda que, pelo meio, as conversas assumissem caminhos mais plurais, muito para lá da personalidade do entrevistado: a política, o meio editorial, a literatura, a sociedade, etc. Mas o mais importante que perpassa nas entrevistas a Pacheco é a veia (auto)biográfica, que emerge pelos relatos feitos, pela linguagem usada, pelos nomes convocados, pela explicação dos textos e das circunstâncias, numa quase anotação permanente ao rasto literário que ia deixando disseminado. Pacheco confessa-se, é certo, mas também se inventa, também cria a imagem que de si mesmo quer dar, também ilustra o prazer de conversar, de dizer e querer saber sobre o mundo, de mostrar o conhecimento do homem, numa rapidez de reflexos e de sinceridade que o expõem, muitas vezes num retrato cru e sempre surpreendente.
Este conjunto de entrevistas é um bom contributo para a memória de Luiz Pacheco, o homem que frequentemente revelou não ter inspiração e ter necessidade de transformar a sua vida em literatura, reportando-se a si próprio, e mostra a coerência, seja na forma de pensar, seja na fidelidade aos factos que relembra – em 15 anos de entrevistas, tempo que percorre as que neste volume se reúnem, os mesmos factos são referidos várias vezes, em tempos diferentes, sempre com os mesmos dados, muitas vezes com as mesmas observações. Pode ser a coerência “pachecal”, mas é.
Além das entrevistas, esta obra contém ainda, da responsabilidade do organizador, um texto introdutório (que percorre os caminhos do ser "excêntrico", da libertinagem e da obra do entrevistado), uma pequena biografia de Luiz Pacheco e um muito útil índice onomástico para as referências constantes nas entrevistas reunidas.
Luiz Pacheco – um retrato nas entrevistas

- “Sempre foi um hábito meu, dar o nome aos bois” (a Carlos Quevedo e Rui Zink, revista K, Julho.1992)
- “Se escrevo um livro e não ponho ali ‘eu’ e não dou referências pessoais, o texto perde a qualidade de exemplar. É a tal coisa, o libertino faz da sua vida um espectáculo porque pensa que é exemplar, que contém uma lição para as outras pessoas: quer dizer, o libertino procura libertar.” (a Carlos Quevedo e Rui Zink, revista K, Julho.1992)
- “O que há nos meus livros é a formação de um indivíduo.” (a Carlos Quevedo e Rui Zink, revista K, Julho.1992)
- “Um tipo que se confessa tanto como eu não tem gostos inconfessáveis, tem gostos. E depois confessa-os, não por desplante, prosápia, gabarolice. Talvez por gosto.” (a Baptista-Bastos, O Inimigo, Abril.1994)
- “[Ser virtuoso] é ser como eu. Ser Luiz Pacheco.” (a Baptista-Bastos, O Inimigo, Abril.1994)
- “Gostava de viver mil anos, porra!” (a Mário Santos, Público, Março.1995)
- “Quando eu ataco o escritor avençado, não é porque um escritor não tenha que ganhar dinheiro! O avençado é uma funcionalização do acto de escrever!” (a Mário Santos, Público, Março.1995)
- “Um tipo tem um certo sentido crítico, uma certa costela malevolente, um certo pendor para a caricatura, e não se cala: fala e escreve. (…) Se tenho uma opinião, digo-a ou escrevo-a! (…) Não conheço dois gajos como eu, porra!” (a Mário Santos, Público, Março.1995)
- “Se me dão calças compridas, visto-as, dão-me curtas, eu visto-as! Quero lá saber… São dadas! Essa carneirada acha de mim uma coisa, eu acho deles outra!” (a Mário Santos, Público, Março.1995)
- “Nunca editei quem não gostasse, gajos que eu não achasse com um mínimo de nível literário.” (a João Paulo Cotrim, Ler, Verão de 1995)
- “Não ando aqui a pedir desculpas a ninguém por estar vivo. Acho que ninguém deve andar no mundo a pedir desculpas por estar vivo.” (a Cláudia Galhós, Blitz, Dezembro.1995)
- “Arrepender? De nada. Também, do que é que adiantava? E mesmo que dissesse ‘arrependo-me’ podia estar a mentir, não é? Agora, um gajo tem a noção do que fez. Do bem, do mal, do pior. Mas o que está feito, está feito. Tenho é muito má fama.” (a Paula Moura Pinheiro, , Julho.1996)
- “Eu não nego que tenho um fundozinho malévolo.” (a Paula Moura Pinheiro, , Julho.1996)
- “Fui um óptimo pai na medida em que me cumpri como homem. E isso é o melhor exemplo que um pai pode dar aos seus filhos.” (158, entrevista a Paula Moura Pinheiro, , Julho.1996)
- “Não tenho um único romance. Nunca fui capaz. Isso exigia-me uma disciplina e uma disponibilidade que nunca tive.” (a Paula Moura Pinheiro, , Julho.1996)
- “Eu não sou muito de me deixar influenciar… estou assim um bocadinho sempre do contra…” (a João Pedro George, Esplanar, Maio.2005)
- “Eu não tenho, creio, grandes dotes de imaginação. A minha fantasia é pobre. Sendo assim, os textos que considero mais conseguidos são autobiográficos. Reportagens de mim.” (a João Pedro George, Esplanar, Maio.2005)
- “A verdade é que eu tenho uma calma muito estudada, mas de repente passo-me. Sempre fui assim. (…) Eu não sou um marginal, porra. Sou um senhor.” (a Pedro Castro, A Capital, Julho.2005)
- “Não sei até que ponto serei conhecido fora de Lisboa. Mesmo a figura do Pacheco é uma figura da lenda lisboeta. (…) Eu não sou um gajo de cariz muito filosófico, pois não?” (a Pedro Castro, A Capital, Julho.2005)
- “O gosto que tenho é nos livros que vendi a cinco ou a vinte paus e hoje valem contos de réis.” (a Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes, Sol, Janeiro.2008)
- “O que um gajo escreve é sempre invenção.” (a Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes, Sol, Janeiro.2008)

sábado, 12 de janeiro de 2008

Quatro textos (de fim-de-semana) sobre a pachecal figura (e mais um de silêncio)

1) António Guerreiro. “Pacheco comediante e livre”. Expresso (suplemento “Actual”). 12.Janeiro.2008 – “(…) Luiz Pacheco foi uma figura da irrisão, alguém que ocupou no meio literário um lugar de comediante, que constrói uma personagem que está para além da verdade e da falsidade. O seu olhar implacável, liberto de constrangimentos da moral social e da ‘bienséance’, reduziu o meio literário, muitas vezes, a uma desavergonhada Babel, povoada por gente vaidosa e pouco respeitável. O retrato é quase sempre de escárnio e caricatural. E como ninguém se salva, como todos os que o rodearam se sentiram potencialmente ou efectivamente vítimas, Luiz Pacheco ganhou o estatuto de inimputável, o homem de todas as traições. (…) Representou, à sua maneira, uma ideia de autonomia do escritor e da obra literária, e uma ideia crítica da literatura, que caducaram ou só resistem – ameaçadas – de modo muito minoritário. Para a posteridade, talvez esse exemplo seja até mais importante do que a obra escrita. (…)

2) João Pedro George. “Prefácio” a Crocodilo que voa (livro de entrevistas com Luiz Pacheco a sair brevemente). Expresso (suplemento “Actual”, em pré-publicação). 12.Janeiro.2008 – “(…) Luiz Pacheco sempre foi um crítico arrojado e um tipo singularmente divertido, um trocista desbragado, com um desplante e uma sem-cerimónia invulgares. Um homem que não leva a sério as regras consuetudinárias nem os convencionalismos da moral. Em suma, alguém que não faz parte da normalidade social, aquilo que as sociedades consideram um indivíduo ‘extravagante’ ou ‘excêntrico’. (…)

3) José Manuel dos Santos. “Luiz Pacheco”. Expresso (suplemento “Actual”). 12.Janeiro.2008 – “(…) Luiz Pacheco escrevia com a vida, fazendo da transgressão insolente e da provocação calculada um estilo literário. No Portugal morno de Salazar e, afinal, no de todos os regimes, a figura de Pacheco é tão inaceitável que a reacção mais comum foi a de a recalcar no que tinha de essencial e ‘infeccioso’, reduzindo-a a um acidental jocoso ou satírico. (…) Aprendi [nas visitas que fiz a Pacheco] a conhecer o método de Pacheco. Lia e escrevia todo o dia. Tinha uma grande cultura, antiga e actualizada, de Platão a Roland Barthes. Falava com uma inteligência violenta. Do que em Portugal se publicava, seguia tudo. Ouvi-lo era perceber como se pode desautorizar. (…) A sua morte tira relevo ao mundo. E mostra-o na sua melancólica verdade de hoje: uma extensa, conformista e normalizadora linha de produção em série de seres humanos, sem diferença, sem heresia, sem loucura. Apenas competitivos, deprimidos e nulos.

4) Ricardo Nabais / Vladimiro Nunes. “Não estou aqui a fazer poses” (última entrevista de Luiz Pacheco, feita em finais de Novembro). Sol (suplemento “Tabu”). 12.Janeiro.2008 – Luiz Pacheco no seu estilo inconfundível, em 12 páginas, dizendo sobre o momento que estava a viver [num lar montijense, onde residia havia poucos dias], como resposta à pergunta “A quem acha graça hoje em dia?”: “Agora acho muito pouca graça. E aqui então não se pode. Já mandei uma gaja aí à merda. Porque isto é um ambiente deprimente. Sexualmente isto é um desgosto. Mas aqui há namoros! É claro que vocês estão cá meia hora e depois arejam. Mas para a pessoa que cá fica… O que vale é que estou isolado… Também é muito cedo para dizer que estou mal. Ainda estou a experimentar. Em oito dias, só hoje é que fui conhecer o andar de cima. Ainda me desnorteia, não sei onde é o elevador. De resto, parece-me muito bom. É melhor do que eu supunha. Mas é difícil achar graça a alguma coisa com esta idade. Tenho 82 anos, porra! Há aquela coisa que é a PDI, a Puta Da Idade, o caruncho… E o velho, geralmente, é egoísta. Ou é mais egoísta do que o novo. Mas estou a falar de coisas muito tristes… (…)

5) O Setubalense. 7.Janeiro.2008; 9.Janeiro.2008; 11.Janeiro.2008 – Silêncio. Um jornal para que Luiz Pacheco trabalhou e onde publicou alguns textos, no suplemento literário “Arca do Verbo”, coordenado pelo poeta João Carlos Raposo Nunes.

Hoje, no "Correio de Setúbal"

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 74
Luiz Pacheco I – “Gosto, como o Ellery Queen, de misturar o real com o imaginário, mas não (como ele e alguns neo-realistas, esses maçadores) de abusar da credulidade dos leitores, longe disso.” (Textos Sadinos, 1991)
Luiz Pacheco II – “Não somos nada nas mãos do acaso e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? quem se lembrará de mim?” (Carta a Fátima, 1992)
Luiz Pacheco III – Desta vez, o Luiz Pacheco foi-se mesmo. Várias vezes falou do medo de morrer e ia conseguindo fintá-la. Desta vez, o jogo acabou. A última vez que com ele estive foi no final de Julho de 2005. Pouco antes, tinha passado na televisão um documentário sobre si e a sua obra. Que não viu “para não se emocionar”. Nessa tarde, estava conselheiro (“ó pá, vocês façam, trabalhem, escrevam, porque, depois, com a falta de saúde e de vista, já o não podem fazer!”). Era assim o Luiz Pacheco: também humano, sensível, amigo. Gostei de o ter conhecido. Vou continuar a gostar de o ler.
Gestão – O novo modelo de gestão escolar tem passado um pouco ao lado da discussão na Escola, vá lá saber-se porquê. O documento, que está em apreciação pública, introduz um novo modelo de gestão nas escolas. O governo apresenta-o como “reforço” de algumas competências, nomeadamente dos pais, do meio social, dos parceiros da escola. Mas o projecto de diploma vai muito além do reforço, inaugura um outro caminho de gestão nas escolas, sem que se conheça se o que está em vigor teve uma avaliação. Há incongruências, nomeadamente quanto ao interesse e ao porquê do que é ser professor titular, neste projecto remetido para um papel elementaríssimo, depois de o governo justificar os professores titulares com o argumento de que a escola iria melhorar…
Europa – Se fosse a Europa do tratado do adjectivo, Portugal teria referendo; como é a Europa do complemento preposicional de nome, vai ter aprovação parlamentar. Tudo isto porque já se sabe (como?) que a grande maioria dos Portugueses está com o tratado de Lisboa. Uma União Europeia de certezas, pois. E os cidadãos europeus sem serem conquistados para a Europa…
Salto – A anterior crónica, por razões relacionadas com o espaço do jornal, não foi publicada no “Correio de Setúbal”, apenas no blogue de que sou editor. Daí que, entre a publicação da última e esta, haja um salto no jornal.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Memória: Luiz Pacheco (1925-2008)

Morreu Luiz Pacheco. Um inconformista, um crítico, um perfeccionista da escrita, um homem livre, um escritor, um rebelde. Todos estes morreram com ele. “A verdade, as verdadinhas mesmo pequeninas, custam a dizer para não se tornarem brutais.”, assim escreveu numa crónica que O Independente depois reuniu no livro Figuras, Figurantes e Figurões (Lisboa: “O Independente”, 2004). Fica a sua escrita, a sua obra editorial, a lembrança na memória. Tenho saudades do Luiz Pacheco e das conversas que não tinham tempo.
Fomos apresentados há anos por um amigo comum, em Setúbal – o Miguel de Castro, nome literário de Jasmim Silva. Conversámos sobre literatura, sobre Setúbal, sobre pulhices e sobre venturas da vida. Muito sobre livros, logo tecendo críticas certeiras e agudas ao que de mais recente tinha sido publicado por portugueses. Nos vários encontros que tivemos, emprestou-me alguns livros (os últimos dos quais lhe devolvi no último encontro que tivemos, no lar no Príncipe Real, em Lisboa, nos idos de 2005). Vendeu-me também alguns e fez-me assinante das suas edições. E ofereceu-me um, na altura novidade de um autor português, lido e rabiscado por ele que estava desagradado com aquela escrita.
Várias vezes o Pacheco me surpreendeu. Mas houve uma que não esquecerei: aí por Outubro de 1998, uma senhora da Galeria Santiago (que então existia em Palmela) contactou-me, dizendo que ia promover o lançamento do livro Prazo de Validade, do Luiz Pacheco, dali a dias e que o autor, o “senhor Pacheco”, lhe dissera para me contactar para ser eu a fazer as despesas da apresentação do livro. Não percebi a razão da escolha. Fui ter com ele. Cortou-me logo cerce os argumentos. “Ó pá, só há um gajo para falar sobre o livro, és tu…” Continuei sem perceber o porquê, mas aceitei. Foi deferência dele, claro. Publiquei depois o texto na revista Sol XXI (Carcavelos, nº 29/30/31, Jun/Set/Dez.1999, pp. 161-162).
O último encontro que tivemos foi então no lar ali ao Príncipe Real, estava para sair o Diário Remendado. Foi uma tarde de conversa longa. Mal via, tinha uma memória apuradíssima, fazia viver o sentido agudo da sua forma de ver as coisas e o mundo. Continuava irónico e livre. Admirei sempre a sua frontalidade, ainda que nem sempre concordando. Tenho feito da sua obra objecto de algumas ofertas. Vou continuar a fazer dela objecto das minhas leituras.
[foto: Luiz Pacheco, em 29 de Julho de 2005]

domingo, 18 de novembro de 2007

Duas histórias de elogio fácil ou o espírito e a graça de Manoel de Oliveira e de Luiz Pacheco

Relata o Da Literatura, hoje, a seguinte história passada com Manuel de Oliveira: «Há cerca de um ano, ouvi contar um significativo episódio, que, si non è vero, è bene trovato. Manoel de Oliveira deslocara­‑se a Paris, para que Dominique de Villepin, ainda primeiro­‑ministro francês, lhe outorgasse um determinado título honorífico. Na cerimónia, estava presente José Sócrates, já primeiro­‑ministro português, que, ao saudar o cineasta, não terá conseguido ir além da fórmula que a sua inteligência e a sua sensibilidade lhe recomendaram: "Está com muito bom aspecto". De imediato, Oliveira terá retorquido: "O senhor também"».
Há poucos anos, quando Luiz Pacheco esteve a viver em Setúbal pela última vez, uma história semelhante se passou com ele (afiançou-mo o próprio) num dos primeiros dias dessa sua estada por aqui, quando almoçava num restaurante com um amigo. A dada altura, uma figura local, que estava também no repasto numa mesa vizinha, viu-o e dirigiu-se-lhe, dizendo: "É o sr. Luiz Pacheco? Já tinha ouvido dizer que estava a viver cá por Setúbal... Gosto muito da sua obra, já a li toda..." Então, a pachecal figura (imagino-o) soltou a resposta imediata: "Ah, sim? Eu também já a li toda e há coisas de que não gosto..."
Fotos: Manoel de Oliveira visto por Pedro Ferreira (a partir de www.dokument-festival.cz) e Luiz Pacheco fotografado em Julho de 2005.