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terça-feira, 14 de abril de 2009

Soeiro Pereira Gomes, a propósito do centenário e de uma personagem (ou três livros que se cruzam)

Hoje, na aula, falava-se do Pedro, o herói do conto “A Estrela”, de Vergílio Ferreira (Contos. 2ª ed. Amadora: Livraria Bertrand, 1976, pp. 191-203). Personagem arrojada, determinada, impaciente, corajosa, assustadiça. Criança de sete anos, ágil, franzina. Tudo bem quanto à caracterização psicológica e física. E socialmente? Quase silêncio. Uns olhares para este, para aquele, para o livro, para o ar, para o professor. Não lhes diz nada o facto de Pedro, à noite, ir para fora de casa descalço? Ou a linguagem usada? Ou o cordel que lhe ata as calças?
Descalço? À noite, no quarto, com pijama, é lógico que está descalço… Cordel? É aquilo que serve para prender as calças do pijama… Não repararam. Pedro foi para a rua, usando a sua vestimenta de todos os dias. Então ele não ia à escola? Escola?! Mas onde se fala de escola?
As aprendizagens deste Pedro vinham do trepar às árvores a espreitar ninhos, da corrida pelos montes, do jogo da vida… Realidades outras que estavam longe do mundo de agora. Invoquei outras crianças a propósito. Sabem que faz hoje cem anos que nasceu Soeiro Pereira Gomes? Escritor, que se remeteu à clandestinidade por pensar diferente, autor de Esteiros (1941), o livro dedicado “aos filhos dos homens que nunca foram meninos”, outros parecidos com o Pedro de “A Estrela”? Homens que nunca foram meninos? Mas…
Sim, é um interessante livro para lerem. Pode ser pretexto para ficha de leitura. Alguns anotaram a referência. Houve uma que disse que já tinha visto o livro lá por casa. Pode ser que…
À tarde, de visita a uma livraria, um título surpreende-me: Banquete de textos, de Madalena Santos (Quinta do Conde: Contra-Margem, 2009). São emoções que ficam de livros lidos. E um deles é Esteiros. E diz a autora: “Esteiros. Há esteiros no Tejo. São pequenos canais na margem do rio, cheios de lama e de lixo e junco, onde nunca deixaremos os nossos filhos meninos, a brincar. Mas outras crianças fizeram dos esteiros florestas e buscaram brinquedos perdidos, que nunca acharam. Como o Gineto, o Sagui, o Maquineta, o Gaitinhas, o Malesso (…). Os esteiros existem e o Gineto também. A personagem inspirou-se na vida dos miúdos pobres, que viviam em Alhandra e em Baptista Pereira, o português que atravessou a nado o Canal da Mancha. A vida valeu-lhe estas duas glórias: a travessia difícil, uma proeza da natação que aprendeu no Tejo, quando por necessidade ou por instinto, se atirava ao rio e o atravessava margem a margem, bem como ser inspiração dum escritor, para uma obra literária de vulto.”
Coincidências. Espero bem que haja algum que escolha Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, para ler e fazer ficha de leitura. Pela história, pela literatura, pela memória, pela infância vivida e escrita. Se assim não for, tenho pelo menos a certeza de que, quando ouvirem falar em crianças descalças ou com cordel à cintura a segurar as calças, não associarão ao conforto do pijama apenas, mas pensarão também na possibilidade do desconforto que as vidas têm… e nas crianças que nunca viveram uma infância.