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quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (3)



Ao saber do destino conventual de Beatriz (que poderia ser a mulher do seu filho Pedro), após visita ao convento, Álvaro despede-se, como se tivesse cumprido uma missão - “Adeus, mestre Mendo. Selado e brindado tenho o meu ginete, vou-me por aí fora. Deus vos dê felizes dias cá na terra e eterno repouso na bem-aventurança, e se o destino nos não tornar a unir, até ao dia do Juízo Final!” E conclui o narrador: “Despediram-se. De D. Álvaro ninguém mais soube.” Não podemos ler esta passagem sem nos lembrarmos daquele encontro entre as personagens Telmo e D. João de Portugal que Garrett criou para o seu Frei Luís de Sousa, em que o nobre, depois de se certificar sobre a história da família através do fiel escudeiro, entende estar errado no ódio e, despedindo-se, parte, desaparecendo de cena. No caso do garrettiano D. João de Portugal, como no caso do Álvaro Ataíde, de Henrique Freire, ambas as personagens antecipam o seu fim, através de uma morte psicológica, que acontece depois que o mundo se lhes fecha.

Em A Profecia, o espaço medieval da então vila sadina, em finais do século XV, é sempre caracterizado em comparação com a contemporaneidade de Henrique Freire - daí que haja ocasião para louvar a chegada do comboio ou a iluminação a gaz, que estava para breve. Mas, preocupação máxima, para lá da acção narrativa e do desenvolvimento que era sentido na cidade, Freire foca-se na preservação do património, tal como foi propósito da geração de Herculano e Garrett - há diversos momentos em que o desrespeito pela memória (tomando o exemplo da falta de reconhecimento a Bocage, haja em vista que o monumento ao poeta é posterior, de 1871), a falta de conservação dos bens culturais e o uso do camartelo são criticados, desejando que, no futuro, “a mão destruidora do vândalo desta época não se lembre de fazer do seu recinto uma praça de touros” (como acontecera no Convento de S. João, em Setúbal, duas décadas antes). Continuamos a não poder ler estes comentários sem nos lembrarmos do que Garrett ia dizendo no seu circuito por Santarém nas Viagens na minha terra, sempre condenando o despropósito com que o património edificado era deixado ao abandono...

A concluir, um desejo: “Que inteiro ou destruído, esse templo conserve sempre vestígios do antigo poder deste reino; é uma página de pedra do livro das nossas tradições.” E, para que dúvidas não restassem e incorrendo num apelo de consciência cívica, remata: “Eis os sinceros votos que fazemos em prol do Mosteiro de Jesus da cidade de Setúbal que a piedade ergueu há trezentos e setenta anos: praza a Deus nos não façam ainda um dia lançar um brado de reprovação contra os homens sem coração e sem crenças que tem reduzido a ruínas quase todos os monumentos do país.”

Advertência, é verdade, importante para o apelo à intervenção e defesa do património, uma marca que também preocupou os românticos e que foi determinante para a cultura oitocentista. Esta obra de Henrique Freire, partindo de uma profecia cuja autenticidade é discutível, pretendeu ser uma voz de defesa e de promoção da cultura local, eivada de todas as marcas do tempo em que foi escrita, fazendo coabitar figuras da nobreza e populares, exaltando o carácter testemunhal e a responsabilidade dos cidadãos. Uma história que, ao glorificar esta “página de pedra”, é um belo hino em honra do Convento de Jesus!

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 918, 2022-09-14, p. 8.


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (2)



Os onze capítulos do romance A Profecia abrem com epígrafes de Alexandre Herculano (1810-1877), oriundas das histórias que constituem a obra Lendas e Narrativas, com particular destaque para a intitulada “Mestre Gil”, narração que tem Setúbal como espaço predominante.

Estas aberturas com citações de Herculano acabam por conformar também o estilo de Henrique Freire, quer pela leitura (Lendas e Narrativas apareceu em livro em 1851, apesar de os vários textos já terem sido publicados esparsamente na imprensa), quer pela contemporaneidade de ambos. Mas as transcrições de Herculano implicam mais na escrita de Henrique Freire. Com efeito, o jovem setubalense absorvera as marcas essenciais do movimento cultural romântico, em que Herculano pontificava, pela escolha de um tema nacional para a sua ficção, pelo mergulho no passado, pela exaltação de valores patrióticos e nacionais, pela reverência demonstrada por figuras que, pelos valores que defendem e representam, se tornam modelos, seja na religião, na política ou no quotidiano.

Após o sermão do frade anunciador, a sequência dos acontecimentos é previsível - Justa Rodrigues Pereira (c. 1441 - 1514/1524) pedirá o apoio régio para construir um convento sonhado por Boitaca e a primeira pedra será lançada, em festiva cerimónia, por D. João II (1455-1495), o rei que chegou a viver em Setúbal e que, acompanhado do seu cronista Resende (1470-1536), é também personagem desta história. 

Paralelamente, uma história de amor destaca a acção joanina contra a nobreza, invocando episódios de exercício da justiça real sobre os fidalgos (como Pedro de Ataíde ou o duque de Viseu) e figuras do clero (como D. Diogo, bispo de Évora), ao mesmo tempo que uma personagem como Álvaro de Ataíde (que surge no início e no final da obra) serve para relatar a experiência dos que tiveram de exilar-se para fugirem à justiça régia. Ao falarmos destas personagens, não nos podemos desligar do movimento romântico de novo - é que a história entre Pedro e Beatriz se torna numa história de um amor impossível, acabando pela morte dele e pela entrada dela no convento, a sorte dele definida por convicções políticas e a dela por questões familiares. De imediato nos vem à memória uma ou outra personagem de Garrett (1799-1854), sejam elas de Viagens na minha terra (1846) ou de Frei Luís de Sousa (1844), obras em que, da parte dos amantes, há tudo para a construção da felicidade, desejo que é abortado pelas condições exteriores, muito mais fortes no contexto da época - situação que faz parte da tradição literária com histórias como a de Tristão e Isolda (lenda medieval, retomada na música - Wagner - e na literatura), Romeu e Julieta (da peça homónima de Shakespeare), Pedro e Inês (cuja história foi literariamente imortalizada por António Ferreira e por Camões, tendo sido retomada por muitos outros autores, designadamente Bocage), Paulo e Virgínia (do romance homónimo de Bernardin de Saint-Pierre), Simão e Teresa (de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco) ou, mais recentemente, Maria e Tony (de West Side Story, de Irving Shulman).

Mesmo noutras personagens de Henrique Freire conseguimos ver laivos de criações garrettianas - sirva de exemplo, quase no final do romance, o regresso a Setúbal de Álvaro de Ataíde, que se exilara no estrangeiro para não ser atingido pela justiça de D. João II e, já velho, vem visitar o convento, numa última viagem, acompanhado pelo alfageme Mendo Álvares, setubalense que está presente do início ao fim da obra, sendo testemunha de tudo o que na vila se passou.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 913, 2022-09-07, p. 9

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Henrique Freire e o romance histórico da fundação do Convento de Jesus (1)



Em 1864, Henrique Freire tinha 22 ou 23 anos (1841 ou 1842-1908) e, desde os 18, andava pelos jornais de Setúbal - primeiro, n’ O Improviso (que acabou em 1859), depois n’ O Correio do Sado, onde conviveu com João Correia Manuel de Aboim (1819-1861), lisboeta que se radicara em Setúbal e teve ampla participação na imprensa sadina. Em 1864, Henrique Freire tinha conhecimento bastante de Setúbal, onde vivia desde a infância, nascido que fora na Trafaria, tendo-lhe permitido esse conhecimento participar na imprensa e publicar uma pequena monografia intitulada O rei e o soldado - Facto histórico do reinado do Senhor Dom Pedro V, livro que viu a luz do dia em 1862.

Nesse mesmo ano de 1864, em Lisboa, dos prelos da Imprensa Sousa Neves, saía, assinado por Henrique Freire, o romance histórico de pouco mais de 130 páginas intitulado A Profecia ou a Edificação do Convento de Jesus, acrescentado da indicação “tentativa histórica setubalense” (obra editada recentemente em fac-símile pela LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão). Título e subtítulo remetem de imediato o leitor para um tempo de finais do século XV e para um texto que não pretendia historiar, antes ser uma “tentativa histórica”, algo sugerindo o percurso entre uma ficção e os factos históricos locais.

Na “Nota Introdutória” a esse livro, o jovem Henrique Freire dedicava a obra ao pai e informava os leitores sobre a idade com que iniciara esta narrativa - 16 anos. Henrique Freire não nos diz o que leu para lá dos documentos que menciona sobre a história do Convento de Jesus, como o Santuário Mariano, obra de 1707 feita por Frei Agostinho de Santa Maria, ou o Tratado da Antiga e Curiosa Fundação do Convento de Jesus de Setúbal, manuscrito de 1630 devido a Soror Leonor de São João, e ainda a consulta de documentos do cartório do então Hospital da Anunciada e a Crónica de D. João II, de Garcia de Resende.

Uma e outra crónicas estão na origem da história que Henrique Freire constrói, pois o título A Profeciamais não é do que a exaltação do frade que terá antevisto o local onde o Convento de Jesus viria a ser construído. Frei Agostinho de Santa Maria é mais palavroso no relato do que Soror Leonor de São João, pois conta: “Alguns anos antes do de 1489, em que se fundou aquele Convento de Jesus, pregando um religioso Menor da Observância, e natural de Itália, varão de grandes virtudes, às portas da mesma ermida da Senhora dos Anjos, disse com espírito profético, pondo os olhos naquele campo aonde depois se fundou o Convento: ‘Vedes vós, dizia, aquele pedaço de terra inculta? Pois adverti que ainda há de ser um paraíso de Deus e fecundo jardim de plantas e de flores de virtudes e glorioso em santos frutos. Ali hão de viver criaturas que por obras eminentes transformarão aquele lugar humilde em um Céu admirável.’” (Santuário Mariano, 1707, vol. 2, pg. 425)

O discurso do frade italiano apresentado por Frei Agostinho de Santa Maria é integralmente aproveitado por Henrique Freire e serve como justificação para o título da sua obra.

 

OBS.: Texto usado para apresentação da obra A Profecia, efectuada no Convento de Jesus em 21 de Julho; o texto é dividido em três partes, de que hoje se publica a primeira.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 908, 2022-08-31, p. 9.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Henrique Freire e a profecia do Convento de Jesus

 

Corria 1864 quando Henrique Freire (1842-1908) fez imprimir em Lisboa a narrativa A profecia ou a edificação do Convento de Jesus. O subtítulo informava ser uma “tentativa histórica setubalense”, dando a entender estar o leitor perante uma reconstrução do passado, forma tão ao gosto da época romântica, como a praticou Alexandre Herculano ao eleger o romance histórico, em ambiente preferentemente medieval, para revelar a identidade de Portugal. Henrique Freire segue-lhe o rasto, em epígrafe na abertura de cada um dos onze capítulos, a partir das histórias contadas em Lendas e Narrativas, de que se destaca a intitulada “Mestre Gil”, cuja acção ocorre maioritariamente em Setúbal, sendo Garcia de Resende o outro autor a que recorre, cuja Crónica de D. João II lhe serve como fonte de informação, e que, com o rei que cronicou, chega a ser também personagem desta história.

Pelo texto introdutório, “Duas palavras”, sabe-se que a narrativa começara a ser publicada num “jornal literário de Lisboa”, entretanto suspenso, depois continuada no Correio de Setúbal, também interrompido. A edição em livro, dedicado ao pai, colmatava essas duas quebras do ritmo de publicação. Contudo, apesar do peso das fontes e da trama histórica, Freire avisava não passar o texto de um “ensaio de um rapaz de 16 anos”, desculpa antecipada por qualquer fragilidade...

A história toma como assunto a construção do Convento de Jesus, anunciada por um “venerável barbadinho italiano”, que sermoneou no então Rossio dos Anjos: “Vedes vós aquele pedaço de terra inculta? Pois adverti que ainda há de ser um paraíso de Deus e fecundo jardim de plantas e de frutos de virtudes e glorioso em santos frutos. Ali hão de viver criaturas cujas obras eminentes transformarão aquele lugar humilde em um céu admirável.” A sequência dos acontecimentos é previsível - Justa Rodrigues Pereira pedirá o apoio régio para construir um convento traçado por Boitaca e a primeira pedra será lançada, em festiva cerimónia, por D. João II.

Paralelamente, uma história de amor destaca a acção joanina contra a nobreza, invocando episódios de exercício da justiça real sobre os fidalgos (como Pedro de Ataíde ou o duque de Viseu) e figuras do clero (como D. Diogo, bispo de Évora), ao mesmo tempo que uma personagem como Álvaro de Ataíde (que surge no início e no final da obra) serve para relatar a experiência dos que tiveram de exilar-se para fugirem à justiça régia.

O espaço medieval da então vila sadina é sempre caracterizado em comparação com a contemporaneidade de Henrique Freire - daí que haja ocasião para louvar a chegada do comboio ou a iluminação a gaz, que estava para breve. Mas, preocupação máxima, para lá da acção narrativa e do desenvolvimento que era sentido na cidade, Freire foca-se na preservação do património, tal como foi propósito da geração de Herculano e Garrett - há diversos momentos em que o desrespeito pela memória (tomando o exemplo da falta de reconhecimento a Bocage, haja em vista que o monumento ao poeta é posterior, de 1871), a falta de conservação dos bens culturais e o uso do camartelo são criticados, desejando que, no futuro, “a mão destruidora do vândalo desta época não se lembre de fazer do seu recinto uma praça de touros” (como acontecera no Convento de S. João duas décadas antes). A concluir, um desejo: “Que inteiro ou destruído, esse templo conserve sempre vestígios do antigo poder deste reino; é uma página de pedra do livro das nossas tradições.” Bela metáfora para o Convento de Jesus!...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 561, 2021-02-17, p. 10.