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domingo, 5 de janeiro de 2020

Papa Francisco e o significado do presépio



No primeiro dia de Dezembro de 2019, o Papa Francisco datava, em Greccio, a sua carta apostólica O Sinal Admirável (Lisboa: Paulinas, 2019), um texto “sobre o significado e o valor do presépio”. Poucos dias antes, Francisco tinha anunciado a deslocação: “Irei a Greccio para rezar no lugar do primeiro presépio que fez São Francisco de Assis e enviar a todo o povo fiel uma carta para entender o significado do presépio". E foi ali, na região em que, em 1223, Francisco de Assis fez a primeira reconstrução do nascimento de Cristo, a cerca de uma centena de quilómetros de Roma, no santuário franciscano, que Francisco revelou ao mundo a sua leitura sobre o presépio.
A comunicação é de uma simplicidade impressionante, oscilando entre a memória e a pedagogia, mostrando o presépio como desafio para a sociedade de hoje. Num cenário envolvido pelo silêncio, o presépio é apresentado como “um apelo para seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento” e cada um dos sinais presentes no quadro merece a interpretação papal, quase num efeito de “zoom” que se vai dirigindo do mais geral para o mais particular: o céu estrelado e o silêncio para a procura de respostas “às questões decisivas sobre o sentido da nossa existência”; o contraste das representações de casas ou palácios em ruínas, marcas de decadência, com a “novidade” da mensagem natalícia da reconstrução do mundo e da vida; “as montanhas, os riachos, as ovelhas e os pastores”, representações de uma criação participante; todas as outras figuras simbólicas que cada um carrega para o “seu” presépio, demonstrando um caminho de simplicidade, de mistério e dando a entender que, “neste mundo novo inaugurado por Jesus, há espaço para tudo o que é humano e para toda a criatura”; finalmente, as imagens da gruta - Maria contemplativa e apelativa, José guardião, o Menino sorridente e de mãos estendidas para ser recebido - e as dos magos, vindos de longe na sua “sede de infinito” para representarem a alegoria das ofertas, que simbolizam a realeza, a divindade e a humanidade de Jesus.
O retrato apresentado cruza-se com as fases da vida de cada um e com o entusiasmo da infância em torno do presépio ou com o gesto de, continuamente, se armar esse mesmo presépio. E é já próximo do fim que Francisco afirma: “Não é importante a forma como se arma o Presépio; pode ser sempre igual ou modificá-lo cada ano. O que conta é que fale à nossa vida.” Ligando esta força à manifestação da fé, o Papa deixa aqui o desafio mais interessante que nos é feito por esta recriação que não abandonamos e que, iniciada por Francisco de Assis, traz um pouco dos livros sagrados para o ambiente que fazemos e construímos em cada dia.
Esta ideia do silêncio e da reconstrução a partir das imagens que fazem o presépio encontramo-la também no texto de José Tolentino Mendonça “O burro do presépio e todos os outros”, publicado recentemente na revista do semanário Expresso (nº 2454, 9.Novembro.2019). Depois de lembrar vários episódios sobre a importância do burro na história humana, o cronista chega às 163 vezes que o burro é mencionado na Bíblia (das 3594 referências a animais que ela contém) para chamar a atenção para o seu papel no quadro representativo do Natal: “O burro do presépio sempre me comoveu. (...) O mais natural é que se tratasse de um dos asnos anónimos do acampamento dos pastores e que escutou, ao mesmo tempo que eles, o pregão feito pelos anjos (...). Provavelmente, começou apenas por acompanhar a excitação dos pastores (...). Mas, depois, ele próprio se apercebeu de que no chão, diante das suas patas, surgia o rasto luminoso de uma estrela que o chamava. (...) Quando os pastores chegaram à visão do recém-nascido, ele já lá estava, como uma figura do presépio, (...) deitado por terra, protegendo com o calor do próprio pêlo a jovem parturiente e aquele filho. Os seus olhos grandes não se afastavam do pequenino, nem um segundo. E extasiados assistiam ao recomeçar do mundo.”
É neste final de contemplação e de fascínio perante o recomeço que o texto de Tolentino Mendonça vai ao encontro da carta do Papa Francisco, quando nos convida à reconstrução sobre a simplicidade. Uma e outra leitura constituem dois bons momentos de reflexão sobre o sentido do presépio, o tal “sinal admirável” que nos é oferecido para que a vida seja sempre um espaço e um tempo de encontro.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

José Tolentino Mendonça e a biblioteca


D. José Tolentino Mendonça, arcebispo e poeta, no dia em que assumiu o cargo de responsável pela Biblioteca do Vaticano, em entrevista a António Marujo (no Público, de 1 de Setembro), deu uma definição extraordinária de biblioteca - por um lado, pela simplicidade, e, por outro, pela linguagem metafórica. Prova de sabedoria, de facto. A reter, porque para pensar.

“Digo muitas vezes que a minha primeira biblioteca foi a minha avó materna. A minha avó não sabia ler e a única palavra que, com imensa dificuldade, conseguia escrever era o seu próprio nome. Nada mais do que isso. Mas tinha dentro da cabeça um inteiro reportório do cancioneiro oral com os seus contos, os romances tradicionais, as múltiplas formas da lírica popular, que não se cansava de transmitir. Com a minha avó analfabeta aprendi aquilo que depois os meus anos de estudo só confirmaram: que a palavra escrita é inseparável da voz humana. Que todos os textos do mundo têm dentro de si os vestígios de uma voz. Que a literatura outra coisa não é do que uma fantástica concha acústica, onde podemos reencontrar a interminável conversa que os seres humanos mantêm. Que o silêncio das bibliotecas outra coisa, na verdade, não é do que um impressionante coral com milhões de vozes que atravessam os tempos, cuja audição nos avizinha do inesgotável e fascinante mistério da vida...”

domingo, 30 de abril de 2017

Sobre a vida e a sua alegria, de acordo com José Tolentino Mendonça



"Resmungamos com a vida. Falta-lhe alguma coisa, nunca nada é perfeito, nada está acabado ou resolvido. É como se estivéssemos a jogar um jogo insolúvel: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. (...) Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar a alegria. Não é um problema de conhecimento, é uma questão de olhar. Olharmos para o que somos e para o que nos rodeia com um coração simples, capaz de perceber o dom que nos habita. Pois, se encostarmos o ouvido até mesmo junto das nossas maiores derrotas compreenderemos que a nossa vida canta!"
José Tolentino Mendonça. "Do uso do fracasso".
(Expresso - revista E: nº 2322, 2017-04-29, pg. 94)
Foto: Convento dos Capuchos, Sintra

domingo, 10 de maio de 2015

"Que coisa são as nuvens", de José Tolentino Mendonça



Algumas crónicas (quase uma centena) de José Tolentino Mendonça que viram a luz no Expresso ao longo dos anos de 2013 e de 2014 estão agora ao alcance do leitor sob o título Que coisa são as nuvens (Lisboa: “Expresso”, 2015). Não é experiência nova do autor, uma vez que já em 2010 dera à estampa a colecção O Hipopótamo de Deus e outros textos (Lisboa: Assírio & Alvim), reunião de crónicas saídas nos “media”, entre os quais se contava também o semanário Expresso.
De crónicas não se pode esperar o que vá além de uma reflexão sobre algo do quotidiano; mas das crónicas se pode esperar tudo isso que é a reflexão, uma maneira de olhar o mundo, de o sentir, de nele reparar. O título da colectânea, vindo de uma filme de Pasolini (1967), alberga pensamentos que foram “uma iniciação, mesmo que imprevisível, à arte do espanto”; daí que o título do texto introdutório passe mesmo por essa virtude do olhar reforçada com o verbo “reparar”: “Para quem não tiver reparado”.
As crónicas de Tolentino Mendonça passam por esse espanto com as coisas do mundo e da vida, algo que nos surpreende e cativa, que se constrói sobre a estética, venha ela da escrita ou das outras artes, corra ela desde os sentimentos ou decorra dos acontecimentos, conflitue ela com as nossas  formas de vida ou abra-nos caminhos de descoberta.
Tanto é merecedor da crónica o bolo de bolacha como o bolo de arroz ou o chocolate, os prazeres experimentados como as descobertas, o sentido poético como as grandes obras. E o leitor vai saltando de Eugénio de Andrade para Ana Teresa Pereira, pensando sobre a morte ou sobre a poesia ou sobre os avós, entrando na pedagogia de Ruben Alves ou no fascínio de El Greco, convivendo com Van Gogh ou com José Saramago, ouvindo Rosenzweig ou Cesariny, pensando com Sophia ou com Simone Weil (dois dos nomes que emergem com mais frequência).
Estes pensares de Tolentino Mendonça vão ao encontro de formas de ser e de viver o mundo e a vida, congregando a espiritualidade inerente a cada gesto ou a cada momento, convidando a entradas por reflexões de outros, povoadas por citações exemplares do lido e do conhecido como se fossem ingrediente ou condimento. São textos curtos, que não vão além das duas páginas mas que nos deixam à porta das descobertas, no limiar do que é “reparar”, lá onde as nuvens mostram as suas diferenças e as suas consistências.
Uma boa iniciativa do Expresso, numa luta contra a efemeridade, em prol de momentos de encontro do leitor com o pensamento e com o mundo!

Sublinhados
Abraço – “Um abraço é uma hipótese de equilíbrio que a hospitalidade dos corpos é chamada a inventar. Qualquer abraço começará por ser uma coreografia instável. Se calhar, a primeira forma do abraço é só um agarrar-se para não cair. Pouco a pouco, o abraço deixa de ser uma coisa que tu me dás ou que eu te dou e surge como um lugar novo, um lugar que não existia no mundo e que juntos encontramos.”
Acabar – “O momento de viragem acontece quando olhamos de outra forma para o inacabado, não apenas como indicador ou sintoma de carência, mas condição irrecusável do próprio ser. Ser é habitar, em criativa continuação, o seu próprio inacabado e o do mundo. O inacabado liga-se, é verdade, com o vocabulário da vulnerabilidade, mas também com a experiência de reversibilidade e de reciprocidade.”
Amigo – “A banalização da palavra amigo produz uma incapacidade de compreender (e de viver) amizades verdadeiras.”
Arte – “Há três dimensões fundamentais (e esquecidas) na arte, companhia que importa recordar: a gratuidade, a aceitação e a capacidade de partilhar o silêncio.”
Casa – “As casas são uma máquina de habitar e desempenham um papel chave na construção da nossa experiência humana. Mas todas as casas falam, pela presença ou pela ausência, de outra coisa que está para lá delas. Falam disso que um humano é, matéria ao mesmo tempo sucinta e imensa, de fazer espanto. Falam do conhecimento que só é verdadeiro se alojar em si a consciência do que ignora hoje e ignorará até ao fim. Falam da luta pela sobrevivência, com a sua rudeza, a sua dor e tumulto, mas também da excedência que experimentamos, porque se a vida não transbordar não é vida. Falam da intimidade, aquém e além da pele. Falam do silêncio e da palavra, que umas vezes se contradizem e outras não. Falam do cumprido e do adiado, do sono e da vigília, do fraterno e do oposto, da ferida e do júbilo, da vida e da morte.”
Desgraça (íntima) – “A nossa cabeça de pessoas crescidas é complicada. Descobrimos que há um prazer em listar achaques e traições, e se a minha chaga puder ser maior do que a tua tanto melhor, isso reforça o meu estatuto. A verdade é que, se não tomarmos atenção, a desgraça íntima torna-se um escanzelado pódio onde nos blindamos.”
Dinheiro – “O dinheiro não se fica a orientar apenas o ordenamento material da vida comum, mas contamina indelevelmente a dimensão imaterial da vida, as suas aspirações mais profundas. (…) Quer dizer, passou a ser um poderio, pois actua por si mesmo, detendo uma autonomia que só conhece como lei a sua. O dinheiro só tem respeito pelo dinheiro: nas relações que estabelece, tudo se compra e se vende, e é nessa espécie de delírio totalitário que ele prefere viver.”
Futuro – “Embora nos pese toda a indefinição ou os maus prognósticos, conservamos em relação ao futuro uma expectativa que nunca é completamente fechada. Quem sabe? – insistimos nós.”
Lentidão – “A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.”
Passado – “O passado é, em grande medida, um tempo confortável, mesmo quando nos esmaga. Provoca-nos o alívio, (…) está num lugar certo, mesmo se nos espaventa de tão completamente errado.”
Presente – “Do presente, da pressão do presente, da sua irrefutável factualidade, desatamos facilmente a escapar.”
Reparar – “Reparar introuz-nos por si só numa lentidão, porque aquilo a que alude não é um observar qualquer: é um ver parado, um revisar porventura mais minucioso do que o mero relance; é uma visão segunda, uma nova oportunidade concedida não apenas ao objecto, nem sequer apenas ao olhar, mas à própria visibilidade. [Reparar] põe também em prática uma reparação, um processo de restauro, de resgate, de justiça. Como se a quantidade de meios-olhares e sobrevoos que dedicamos às coisas fosse lesivo dessa ética que permanece em expectativa no encontro com cada olhar. Por isso, de certa forma, só quando reparamos começamos a ver.”
Saber – “Reconhecer que ‘não se sabe’ pode trazer desconforto, mas traz também saúde interior e criatividade.”
Silêncio – “Aquilo a que chamamos silêncio só se torna real e efectivo através de um processo de despojamento interior, e de nenhuma outra maneira.”
Simplicidade – “Nada nos pede mais trabalho e arte do que a simplicidade.”
Vida – “A vida é completamente artesanal. Não é possível reproduzi-la em série, nem encontra-la feita noutro lado. A vida requer a paciência do oleiro, que, para fazer um vaso que o satisfaça, faz duzentos só a treinar o gosto, a habilidade, a testar a sua ideia.”
Vida – “Privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia o que é senão isso? As nossas sociedades medem infelizmente o seu progresso esquecendo, quando não obliterando, domínios da vida humana que não são mensuráveis e que têm a ver com a interioridade, a criação, o dom, a alegria, o sentido.”

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

José Tolentino Mendonça: "A papoila e o monge", uma peregrinação ao silêncio



Todos os livros terão uma história. A deste é: o autor foi convidado pelo Centro Nacional de Cultura para integrar uma viagem ao Japão, ocorrida no final de 2010, no papel de escritor. Durante a viagem, viu; longe dos sítios e do tempo da visita, sentiu e escreveu. Na “Apresentação”, conta: “Já em Lisboa, alguém recordou-me um facto que teria causado embaraço: durante toda a viagem ninguém me vira tomar uma única nota. Era verdade.” Três anos volvidos, o livro surgiu. Falo de A papoila e o monge, de José Tolentino Mendonça (Lisboa: Assírio & Alvim, 2013), um dos mais bonitos livros que li neste ano.
Com esta obra, Tolentino Mendonça enfileira na lista de poetas portugueses que seguiram o género do “haiku” japonês, embora ocidentalizado, para contar “simplesmente muito em três curtos versos”. Ao longo de seis partes (“Escola do silêncio”, “Vida monástica”, “Guia para perder-se nos montes”, “Amanhecer na primeira cidade”, “Amanhecer na segunda cidade” e “Livro das peregrinações”), o leitor encontra-se com a viagem interior, uma quase peregrinação, do poeta, num trabalho exímio de busca da palavra certa e repleta de sentido, do verso intenso.
Lê-se a obra e percebe-se que não se poderia estar à espera de um livro de viagens ou da reportagem de um circuito pelo Oriente, tal como desejaria(m) o(s) participante(s) embaraçado(s) que não tinha(m) visto o escritor convidado a registar apontamentos para uma fotografia mais ou menos íntima, mais ou menos descritiva, mais ou menos narrativa do que tenha sido a viagem.
O silêncio domina, é preponderante, atravessa todo o livro. O silêncio ensina, ajuda a reconstruir a viagem, alicerça o livro e o poema. Muitos dos poemas funcionam como máximas, aprendizagens, descobertas. O poeta constrói-se sobre versos de sentir, numa (re)visitação que apenas pode ser conduzida pelo poeta só – “Quando o templo se esvazia / então brilha / esplêndido”.
Fascinado que está o leitor com esta descoberta da contemplação do silêncio, uma outra se lhe depara: “A história relata o que aconteceu / o silêncio narra / o que acontece”. Fica-se, assim, perante a necessidade de se ouvir o silêncio, demanda de paz interior, de uma contemplação que não considera o ruído, que não existe ao lado do ruído.
Em cada volver de folha, uma nova revelação, um passo mais na peregrinação interior que a viagem é, que a escrita ajuda a consolidar. A viagem vira meditação, porque “a vastidão do mundo / para o peregrino / não é mais do que um quarto vazio”. E o caminhante prossegue, da mesma forma que o leitor avança, ávido, porque, no final, mesmo a encerrar o livro, surge o poema crucial, de convite: “Agora só resta / tornares-te / o poema”.
Emoção forte, a do leitor. Gosta-se deste calcorrear pelas veredas dos versos, num percurso a sós, único, singular. Um dos mais bonitos livros que li neste ano, repito.

domingo, 26 de maio de 2013

O que fazemos do tempo quando nos deixamos arrastar por objectivos, resultados, pressas ou o que o tempo faz de nós


A nossa relação com o tempo e do tempo connosco, a necessidade da lentidão, a urgência de pensar e de reprimir a velocidade e a pressa das nossas vidas. Um texto bem interessante de José Tolentino Mendonça, na "Revista" do Expresso de ontem.


segunda-feira, 18 de março de 2013

Francisco, o Papa, e Francisco, o Santo

Francisco, o Papa, tem sido motivo de variadíssimos comentários, não fosse a importância da Igreja Católica hoje, não fosse tudo aquilo que tem acontecido de menos bom e de mau nessa mesma Igreja. Obviamente, os exageros nos comentários são muitos, com os fundamentalismos da praxe, mesmo que disfarçados de coisas que vestem roupagens das mais variadas.
Li duas crónicas sobre o Papa Francisco no Expresso de ontem que carregam muito daquilo que senti com esta escolha - deste Papa e deste nome. A primeira é devida a José Tolentino Mendonça, que, sob o título "O nome é um programa?", dá a resposta para a pergunta que lança. Depois de biografar a acção de Jorge Bergoglio, Tolentino Mendonça afirma: "O poverello de Assis foi o grande reformador da radicalidade evangélica, que impôs à Igreja uma cura de pobreza, de humanidade e de confiança vibrante em Deus. Sabe-se que na conversão de Inácio de Loiola, fundador dos Jesuítas, teve enorme importância a descoberta do seu exemplo. Inácio ter-se-á perguntado: 'E se eu fizesse o mesmo que Francisco?' Será isso que o Papa Bergoglio se pergunta?"
Na mesma linha se situa Fernando Madrinha, ao assinar a crónica "A importância de se chamar Francisco", dizendo que "o facto de terem passado oito séculos antes de um eleito escolher o seu nome, e com isso o apresentar como guia espiritual, diz alguma coisa sobre as referências dos Papas, sobre o modo como interpretam a função da Igreja e como encaram o luxuoso trono em que se sentam."
O que ressalta desta escolha, intensificado pelo que tem sido o discurso do novo Papa, é a vez da esperança, que corresponderá à vontade que existe no mundo católico de que a Igreja seja a proximidade, a fraternidade, a esperança ela mesma. A simpatia por este Papa advém daí: marca de esperança, pois.

domingo, 29 de agosto de 2010

Máximas em mínimas (64)

"Os dias são um prólogo se uma pessoa caminha
até que uma verdade lhe seja revelada."
José Tolentino Mendonça. O viajante sem sono (2009)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

As reflexões de José Tolentino Mendonça

O hipopótamo de Deus e outros textos é um livro em que José Tolentino Mendonça recolhe crónicas diversas, normalmente curtas, que apresentam as características comuns indicadas no subtítulo “Cristianismo e Cultura” (Lisboa: Assírio & Alvim, 2010). São pouco mais de quatro dezenas de escritos, reelaborados a partir de colaborações diversas na imprensa e na internet, coligidos sob o título de um deles.
A leitura destes exercícios de reflexão não pode andar arredada do poeta que o seu autor (também) é e que busca a poética do cristianismo, a poética de Deus. Na sua maioria, os textos partem de registos de leitura de manifestações artísticas diversas – a literatura, é evidente, mas também a música, a fotografia, o cinema ou a pintura – por aqui passando pretextos como Steinbeck, Frei Angélico, Barthes, Benjamin, Valéry, Pascoaes, Sontag, Mozart, Péguy, Galileu, Steiner, Boticelli, Matisse, Herberto Helder, Ruy Belo, Flannery O’Connor, entre muitos outros, além de um motivo maior como a Bíblia ou os evangelistas ou vários teólogos, com Bento XVI a constituir centro dos dois últimos textos.
Os pensamentos de Tolentino Mendonça constituem um desafio aos leitores, mas também à Igreja, convidando a interpretações e atenções bíblicas e a um olhar o mundo de forma empenhada e assumida, partilhando reflexões sobre o ser padre, a política, o outro, o mundo do trabalho, a vida editorial, o ser peregrino, a construção do mundo, sempre numa perspectiva do “cristianismo como estilo” (título de uma das crónicas), modelado a partir da imagem de Cristo, que “potencia uma vida humana onde aquilo que pensamos serem coisas relativas, como o amor, a justiça, o bem e a beleza, podem ser vividas em absoluto ou como patamares do absoluto”.
Frases que ficam:
1. “Brincar significa agir, não a partir do necessário ou utilitarista, mas como pura expressão gratuita, amorosa.”
2. “As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar, e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar.”
3. “Somos acessíveis e também de uma inacessibilidade irredutível. Cada um é uma palavra e ao mesmo tempo um segredo.”
4. “Vivemos triturados na digestão que o mundo faz de nós. Consumimos em vez de consumar. (…) Sem darmos conta, são tantas as correntes que nos prendem e as dependências que nos diminuem.”
5. “O crepúsculo da arte de contar liga-se à incapacidade crescente de trocar uma experiência autêntica. Por isto, será cada vez mais raro encontrar pessoas que saibam contar uma história como se deve. (…) O narrador toma aquilo que narra da experiência – a sua própria ou alguma que lhe tivesse sido referida – e transforma-a em experiência para aqueles que escutam a sua história. O que alenta a narração é a moral da história e o seu desfecho, que abre para a questão: ‘E em seguida, e depois?’ Não há narração à qual não se possa opor a pergunta da sua continuação.”
6. “O que mais ameaça o natal é o próprio natal, isto é, a sua representação diminuída, estagnada culturalmente entre a quinquilharia dos símbolos e a oportunidade comercial, domesticada pela pieguice das frases feitas e das boas-maneiras.”
7. “Se a linha azul do mar tanto nos seduz é também porque essa imensidão nos lembra o nosso verdadeiro horizonte. Se nos elevamos até aos montes é porque na visão clara que aí se alcança do real, nessa visão sem cesuras, reconhecemos parte importante de um apelo mais íntimo. Se buscamos outras cidades (…) é também perseguindo uma geografia interior. (…) É tão decisivo que as férias, tempo aberto a múltiplas errâncias, não se tornem um período errático e vago; tempo plástico e criativo, não se enrede nas derivas consumistas; tempo propício à humanização, não se perca na fuga a si mesmo e no ruído do mundo. (…) O repouso é uma oportunidade privilegiada para mergulhar mais fundo, mais dentro, mais alto.”
8. “O que caracteriza a obra literária é uma determinada relação com a linguagem, é o facto de transpor e transformar, mediante um sistema verbal, uma experiência humana, mais simples ou mais sofisticada, criando um universo próprio.”
9. “A amizade é singularíssima e mune-se de uma desconcertante simplicidade de meios. O traço mais universal da sua gramática é, talvez, o da presença: mas esta tanto se faz de muitos encontros, como de poucos; de muitas palavras ou de um silêncio espaçado e confidente; de um telefonema por dia ou por ano; de uma ou de incontáveis atenções… O importante é que tudo isso se torne, a dada altura, uma história que nos acompanha e por onde o essencial da vida passa.”
10. “A beleza é um experiência que os sentidos não circunscrevem completamente, mesmo quando palpam, pois ela permanece inexprimível.”

domingo, 25 de julho de 2010

Máximas em mínimas (59)

Lágrimas
"As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e o modo como o fazemos revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar."
José Tolentino Mendonça. "A sintaxe das lágrimas". O hipopótamo de Deus e outros textos.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, pg. 22.

quarta-feira, 31 de março de 2010

"Resumo - A poesia em 2009", uma antologia do poetar português

Quatro leitores ligados à poesia – por serem poetas ou por terem escrito sobre poesia – estão juntos na organização de uma antologia da poesia portuguesa publicada em 2009. São eles José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas. A ideia surgiu com o patrocínio da FNAC, albergando mais de centena e meia de páginas, sob o título Resumo – A poesia em 2009 (Lisboa: Assírio & Alvim, 2010), por aqui passando 35 poetas portugueses contemporâneos com 115 poemas.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Poemas para os pais

O livro termina com uma “inverdade” que pretende ser simpática: “aos dezanove de março de dois mil e oito imprimiu-se na EGRAFE, SA esta primeira edição portuguesa de poesia da Prisa Innova para comemorar o dia do pai e a chegada da primavera”. Ora, acontece que o livro foi impresso para assinalar esses dois acontecimentos mas não nesse dia; na verdade, o livro foi posto à venda ontem, dia em que saiu para a rua a acompanhar o diário Público. Fala-se de Em nome do Pai – Pequena antologia do Pai na poesia portuguesa, volume com cerca de 120 páginas por onde perpassam textos de meia centena de poetas que trouxeram o pai para motivo da sua poesia, organizado por José da Cruz Santos e prefaciado por Vasco Graça Moura, que, além desta função, é também um dos antologiados. A direcção gráfica é de Armando Alves.
O texto introdutório de Graça Moura chama a atenção para a raridade que foi a entrada da figura do pai na poesia portuguesa anterior ao século XX, altura em que surgiu esplendorosa no poema de Jorge de Sena “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” (em Metamorfoses, de 1963). Por outro lado, é acentuada a ausência que envolve o tratamento da figura paterna na poesia – “embora alguns [poetas] façam a sua referência ao momento da morte, poder-se-á dizer que predominam as recordações da figura do pai na infância do autor e de um convívio determinante com ela.” A explicação de Graça Moura termina, aliás, com uma conclusão inevitável: “como se vê dos poemas aqui compendiados, todos os pais desaparecidos se tornaram fantasmas melancólicos”. Pelo caminho, ficou ainda uma explicação para o facto de a figura da mãe, essa sim, ter intensa presença na literatura poética portuguesa, fenómeno a que não está alheia a promoção da imagem materna “ao longo dos séculos pela devoção religiosa que veio mais tarde a encontrar a sua transposição laica para o plano da maternidade comum”.
O leque de autores reunidos começa com três nomes do século XIX – Camilo, António Nobre e Cesário Verde. Seguem-se nomes que entraram pelo século XX, logo a partir do quarto autor escolhido, Ângelo de Lima. Para falarmos de nomes relacionados com a região de Setúbal (um critério que justifica que não se liste a meia centena de autores seleccionados), citem-se António Osório (com fortes ligações à Arrábida e a Azeitão), Ruy Belo (que prefaciou o livro Pelo sonho é que vamos, de Sebastião da Gama, em 1970), Jorge Reis-Sá (o poeta que quase “fecha” a antologia e foi vencedor da 6ª edição do Prémio Literário Bocage, organizado pela LASA em 2004) e Amadeu Baptista (que foi o vencedor do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, organizado pelas Juntas de Freguesia de Azeitão em 2007).
Se o livro, enquanto objecto, é bonito, pena é que a antologia não contenha indicações sobre os autores (pelo menos as datas dos períodos de vida) e sobre os livros de onde os textos saltaram!
E, porque se está em Dia do Pai, dou a palavra a José Tolentino de Mendonça, aqui antologiado com o poema “A casa onde às vezes regresso” (reunido em A noite abre meus olhos, de 2006):
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Ouvir o silêncio…

… por entre poesia, oração, música, cinema, natureza, pintura e vida – é a proposta do poeta, teólogo e padre José Tolentino de Mendonça, numa entrevista, conduzida por Luís Filipe Santos, a propósito do tempo quaresmal vivido pelos católicos. A entrevista, editada no sítio da agência Ecclesia, cruza a teologia, a Bíblia, Bach, Herberto Hélder, S. João da Cruz, Sebastião da Gama, Frei Agostinho da Cruz, Eugénio de Andrade, Sophia Mello Breyner, Camilo Pessanha, Daniel Faria, Miguel Torga, Piero della Francesca, Fontana, Frei Angélico e Jesus, percorrendo os caminhos do silêncio, da criação, da vida e do homem. Ficam alguns excertos do discurso de Tolentino de Mendonça, verdadeiras pistas para a valorização do humano…
1. [O silêncio] é necessário para fugirmos ao nosso próprio ruído. O grande ruído não está na cidade, mas aquele que nós transportamos... É ressonância confusa que as coisas deixam dentro de nós. A Páscoa é um tempo de discernimento. É um tempo para treinar os sentidos. Com a Páscoa sentimos o perfume da vida. Escutamos a Palavra, como se fosse a primeira vez... Saboreamos o sentido profundo. (…) Ele sente-se porque não é apenas ausência do ruído. Ele não se define pela negativa, mas pela positiva. O silêncio é o lugar da comunicação. (…) Basta observarmos os monásticos. O silêncio não é a privação da palavra, mas um caminho alternativo de intensa comunicação e escuta. O silêncio é um lugar... (…) O silêncio é muito exigente. Se o mundo - à nossa volta e dentro de nós - é tão ruidoso é porque isso é muito mais cómodo. É mais fácil aguentar a palavra e o rumor do tempo do que se confrontar com o silêncio. Este tem uma verdade nua e sem véus. O confronto com o silêncio obriga a uma conversão. Obriga-nos a uma transformação que dói. (…)
2.As profissões ligadas à natureza são as menos mecânicas. São aquelas que se ligam ainda a uma lentidão. O silêncio é uma coisa lenta. (…) A poesia é uma forma de escuta e de atenção. O silêncio é a metodologia de todos os poemas que se escrevem. A grande tentação dos poetas é o silêncio. A poesia exige uma vida tentada pelo silêncio. É uma forma de comunhão. A poesia não quer suprir o silêncio nem explicá-lo. (…) É a meta de todos os versos que se escreveram. (…) Na poesia tenta-se – como se fosse a travessia das águas – atravessar sem ferir o mar. Para que no sossego das águas possamos ver o fundo, mas nem sempre isso é possível. (…) A poesia nem sempre é azul. Às vezes é escura e cerrada. A poesia não é um saber nem uma áurea. Não é um esplendor. Muitas vezes é uma noite escura. No entanto, a contemplação do mundo pede-nos uma procura. (…)
3.O silêncio não tem cor. Nós é que precisamos dessas cores. O silêncio é a vida nua... É a verdade. No entanto, precisamos da linguagem simbólica para viajarmos até à verdade. (…) O poeta sabe que precisa de ouvir o silêncio. (…) A vida artificial e do ar condicionado é uma vida anti-espiritual. A vida do espírito é uma vida lenta e exige uma digestão. Ela exige o reencontro com os caminhos, com os baldios e com o mar aberto. (…)
4.Na tradição portuguesa, a Serra da Arrábida é um lugar muito especial. Nesta serra encontramos tópicos da geografia do silêncio. Cada um de nós tem a sua serra onde encontrará o silêncio matricial. (…) O silêncio não é uma ausência. É a presença plena, inteira e intacta do mundo. (…) O silêncio é o fio secreto que conduz todas as procuras de sentido. Podem ser artísticas, intelectuais, pastorais ou orantes. No fundo, a verdade é só uma. A verdade de um grande pintor é a mesma de um mestre da fé. É a verdade do grande mistério que nos coloca perante o silêncio de Deus.
[foto: Tolentino de Mendonça, a partir do sítio Ecclesia]