Os tempos andam estranhos por causa do que nos agride, do que nos choca. Tais agressões tornaram-se pretexto de escrita para 22 autores ligados à Casa da Poesia de Setúbal sob o título de Diário de Tempos Estranhos - Entre a pandemia e a guerra, obra em duas partes, correspondentes aos dois diferentes momentos vividos - a pandemia, desde 2020, e a guerra na Europa, desde Fevereiro.
O tempo da pandemia foi o tempo da descoberta e da aprendizagem do viver com novas regras, vindas de novos medos. Recorda Alberto Vale Rêgo os tempos em clausura, procurando “coisas boas e com sentido, mas fora do que faríamos normalmente” e vivendo “outras de que não ficará memória, mas que servem para fazer andar as horas à espera da normalidade que tarda.” Mais dramática é a noção de Alexandrina Pereira: “O tempo parou, o tempo é vulcão, / Nele ardem as dores que são sufocadas, / Calcadas, guardadas, na alma sofrida, / Respira-se Morte, procura-se a Vida”.
A estranheza torna-se tanto maior quanto a peste se aproximou sub-reptícia, operando mudanças bruscas - “o nosso relógio interno já não tem percepção do tempo e a vida está mesmo virada do avesso” (Fernando Pereira); “os povos trabalham em casa, escondidos” (Inácio Lagarto); “o antes som das gentes / deixou de se ouvir” e “nas janelas / as pessoas pareciam sombras chinesas” (Isabel Bastos Nunes); a falta dos abraços aos mais próximos e as ausências, como mencionam Isabel Melo (“Que tempos são estes, Mãe, / Em que tenho medo de ter receio de te abraçar”), José-António Chocolate (“O lugar deserto na mesa é que se sente / (...) / e hoje me dói fundo por estares ausente.”) ou Fernando Alagoa (“Queria tanto dar-te um abraço, / e ficar assim, / em silêncio, / só pelo prazer desse enlace.”). A pandemia chega à metaforização sob o signo do horror por Luís Pinho, denominando-a como “Adamastor”, recurso ao imaginário camoniano da destruição.
Todavia, há também o sinal positivo pela voz de Linda Neto, cuja mensagem sobre o confinamento caminha no sentido do reencontro do eu com a sua identidade, no caminho do autoconhecimento e da renovação.
O segundo grupo de textos, sobre a guerra, pauta-se pelo protesto e pela indignação, em que o mal, pintado com as cores da ambição descontrolada (António Calado), da alimentação do negócio da guerra (António Galrinho) e do caos mostrado nas imagens de violência sobre o homem (Maurícia Teles), vai merecendo o repúdio.
Motivações para este conflito são apontadas por Arnaldo Ruaz, enunciando as cores do “triste quadro” da guerra, uma sinfonia de horrores. O desespero em busca da vida, no meio da conflagração, paira no poema de António Manuel Ribeiro, olhar medonho sobre a rapidez com que a destruição se manifesta: “Se houver tempo / Voltaremos a falar; (...) // Se houver tempo / E uma esquina de pé.” A insensibilidade de quem determina a guerra esbarra com a sensibilidade de quem por ela sofre - Fernando Pereira recorda a infância, num excerto digno de figurar em qualquer antologia sobre os avós: “O meu avô foi à guerra e só voltou quando a minha avó ficou viúva. (...) O colo da minha avó nunca mais foi às cores, ficou sempre preto. Não percebi aquela mudança, porque, vestida de preto, a minha avó ficou mais triste.”
A contrariar este negrume extremo, surgem palavras de esperança, coloridas, como Carlos Fernando Bondoso prevê: “quem me dera / a novidade de uma flor / branca amarela de todas as cores / num campo de guerra”.
Tempos estranhos, estes! Lentos, os primeiros, sob o massacre diário das mortes, números vertidos no conta-gotas dos dias; rápidos, os segundos, desmoronamento vertiginoso, retrato do inferno e do absurdo. Ambos trazidos pela escrita enquanto espaço de reflexão.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 971, 2022-11-30, p. 20