Em
4 de Agosto de 1918, o capitão Humberto de Ataíde suicidava-se em Moçambique
para evitar a humilhação de ter de entregar ao inimigo o posto que comandava. O
gesto valeu-lhe o reconhecimento e o louvor, chegando Meneses Ferreira a
dedicar-lhe o livro À luz do lampadário
(Lisboa: Ed. Autor, 1927) nos seguintes termos: “À sagrada memória do Capitão
Humberto de Athayde, ferido cinco vezes em combate e que, na Grande Guerra em
Moçambique, pelo orgulho da sua farda, se suicidou em frente das tropas
inglesas”.
O
livro é composto por dezoito quadras (que usam o decassílabo e a rima
alternada) e ilustrações do próprio autor, mas é antecedido por uma nota em
prosa contra as intromissões estrangeiras na administração das colónias, como
era, na altura, o caso do porto da Beira. Já em 30 de Abril de 1925, em crónica
publicada no Diário de Lisboa sob o
título “Carta a um colonial do Chiado sobre a influência inglesa na cidade da
Beira”, Norberto Lopes se queixava do
ambiente inglês que dominava a cidade, chegando mesmo ao ponto de dizer que os
caixeiros se dirigiam aos clientes das lojas em inglês antes de usarem a língua
portuguesa, que o jornal ali existente era em inglês, que ele próprio se sentia
“estrangeiro em território nacional”, para concluir de forma quase
apocalíptica: “Se o dinheiro inglês fomenta e desenvolve este pedaço da nossa
África Oriental, nem por isso ele deixa de constituir amanhã um perigo para a
soberania portuguesa.” Revoltado com um certo estado de subserviência
relativamente ao estrangeiro, o poeta de À
luz do lampadário refugia-se na Batalha para ouvir a voz “d’Aquele que,
pela integridade dos territórios de Além-Mar, caiu para sempre, mordendo a
terra conquistada pelos nossos Maiores”.
Logo
na primeira quadra, o poeta ilustra o cenário em que lhe foi dado ouvir a
mensagem, um ambiente de silêncio e de luz, ingredientes necessários para a
meditação e para que a voz do Soldado Desconhecido se tornasse audível, ou, por
outras palavras, para que a memória aflorasse – “À doce claridade que se
espalha / nas naves do Mosteiro adormecido, / à luz do lampadário da Batalha /
Assim falou o Herói Desconhecido”. A segunda quadra, sendo o início do discurso
do Herói, é uma acusação (contra a interferência estrangeira) e uma
justificação para o que se vai seguir (uma chamada de atenção): “Voltam de novo
à terra apetecida / as aves de rapina em hora incerta… / Acorda, sentinela
adormecida! / Soldado português, alerta! Alerta!”
A
mensagem envereda depois pela lembrança de vários heróis portugueses, todos
considerados exemplares – o Fundador, o Príncipe Perfeito, o Infante Santo,
descobridores, Salvador Correia, Mousinho, coronel Galhardo e João Coutinho
(“heróis de Marraquene”, em finais do séc. XIX), Martins de Lima, capitão
Roçadas, Leopoldo da Silva e os mortos de Nevala e, finalmente, Humberto de
Ataíde, trazido para o poema como último herói, mas com uma acção diversa da
que cometeu – “Humberto de Ataíde, o teu exemplo / Não deve ser seguido desta
vez…”. O nome é invocado pelo que simboliza de patriótico, mas é usado para
apelar à energia do soldado português – “Vamos! Sacode os vendilhões do Templo!
/ Levanta-te, soldado português!...” O que vai sendo valorizado em todos estes
nomes, individuais ou símbolos do colectivo, são traços como a humildade, o
valor, o sangue vertido, o tormento, a coragem, chegando esta voz a
manifestar-se contra a perda da memória (“Recorda a pouco e pouco a minha
história, / vencendo o esquecimento em que mergulho”) e a chamar a atenção para
os padrões e monumentos, provas absolutas desse heroísmo necessário.
A
intenção apelativa e imperativa sobre o soldado português aparece várias vezes
ao longo do poema com o objectivo de impelir este destinatário para a acção,
que, surge claramente expressa nas duas últimas quadras: “Erguei-vos todos já
para acusar / aqueles que, por ódio e por traição, / queiram vender, trocar,
alienar / o santo património da Nação!... // Contra o Porto da Beira apetecida
/ a trama vil, enfim, foi descoberta! / Acorda, sentinela adormecida! / Soldado
português, alerta! Alerta!”
O
texto é, sem dúvida, de teor panfletário, jogando com símbolos fortes para os
combatentes – o poder do desafio feito pela memória, o sofrimento do soldado
desconhecido e heróico, as referências de personalidades históricas que se
destacaram na vida militar. Uma década depois do termo da Grande Guerra, este
texto era um toque a reunir para a defesa do património histórico e do
território e para a reafirmação da soberania, vindo de um autor, João Guilherme
de Meneses Ferreira (1889-1936), que, sendo também ele militar (embarcou para
Angola em Setembro de 1914, comandado pelo general Roçadas, e esteve em França,
integrando o CEP), pautou a sua obra pelo anti-belicismo e por um sentir
humanitário como bem o provam os títulos João
Ninguém – Soldado da Grande Guerra (1921), texto de onde não está arredio o
humor aplicado à participação portuguesa, e O
Fuzilado (1923), novela em torno de um combatente louvado que um dia
resolve deixar de combater. Com tal sentir humanitário, o refúgio do poeta só
podia ser junto de um dos símbolos intensos para os combatentes portugueses da
Grande Guerra: na Batalha, onde, seis anos antes, em 10 de Abril de 1921, se
inaugurara o túmulo do Soldado Desconhecido, para ali tendo sido transladados
os corpos de dois soldados, um falecido em África (Moçambique) e outro em
França, escolha espacial que acaba por dominar a mensagem…