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quarta-feira, 3 de abril de 2024

Imagens contra a estupidez



Vinte anos depois de Maria Severa Onofriana, conhecida como “Severa”, ter falecido (quando contava 26 anos, em 1846), um autor dramático seu contemporâneo, Ernesto Biester (1829-1880), defendeu a opinião de produzir uma peça trazendo-a para protagonista. Se houve quem o apoiasse, também existiram aqueles que, à luz da moralidade pública, condenaram a ideia, argumentando, segundo Júlio de Sousa e Costa, que “pôr em cena a vida de uma mulher perdida chamaria o pecado sobre as cabeças do autor, actores, actrizes, ponto, espectadores, toda a gente, enfim, que fosse deliciar-se com as cenas copiadas da Mouraria...” Sousa e Costa relata este episódio na obra Severa, biografia publicada em 1936, rematando com o seguinte comentário: “Toda a vida há-de haver gente estúpida e é isso que faz com que o mundo se torne imensamente divertido.” A verdade foi que os tais defensores moralistas foram fortemente satirizados por causa desse “cuidado” moralista, o que justificou a observação de Sousa e Costa.

Mesmo retirando o comentário do contexto que o originou, o que nele é dito mantém a sua validade. Que o digam as cenas do quotidiano a que vamos assistindo, nos mais diversos circos e palanques, a exigirem que tenhamos nervos de aço ou a nossa gargalhada perante o ridículo... O aflitivo, no panorama, é que a estupidez se sabe afirmar sem nada recear, num jogo de palavras, num esgar de risos e de sobranceria, num gesticular e vociferar com desaforo, numa defesa de ideais em que não dá para acreditar - a geografia dos acontecimentos recentes, viremo-nos para ocidente ou para oriente ou comecemos aqui mais perto, torna evidente a pujança e a matreirice da estupidez.

Eugénio Lisboa, num texto inserido no livro Poemas em tempo de guerra suja (2022), retratou-a em grande tela: “A estupidez é a mercadoria / mais bem distribuída deste mundo: / ela veste-se de demagogia / ou do que quer que seja de imundo. // A estupidez é um grande muro, / que oferece ao inteligente / a resistência do escuro duro, / que se ergue forte e prepotente. // Ela exibe estrelas de general / e ri-se à grande dos que são sábios: / permite-se, à vontade, ser boçal, // saindo barbaridades dos seus lábios. / A estupidez sabe prevalecer / e sabe, sobretudo, não temer.”

E será sempre uma luta inglória o diálogo com a estupidez, mesmo que se invoque a competência democrática ou a pluralidade para tal, pois até valores como a vida parecem insignificantes perante a estupidez. Foi Ruben A. (1920-1975) quem o disse no terceiro volume de O mundo à minha procura (1968): “Para a estupidez, não há argumentos, por mais inteligente que seja o einstein. (...) Um ditado alemão define perfeitamente esta conjuntura: Contra a estupidez até os Deuses lutam em vão.” E, num outro passo da mesma obra, relacionou a estupidez com a tragédia: “Falar com um ser estúpido que tem opiniões, este é o drama da existência.”

Há aprendizagens que vamos fazendo nestes percalços que a vida proporciona, chegadas, muitas vezes, depois de percursos longos. Uma das primeiras coisas que ouvi de um amigo de longa data, bem mais velho do que eu, foi a recomendação de não contra-argumentar com a estupidez, porque, no final, é ela quem ganha, não por mérito do que apresenta, mas por sabotagem da realidade, recurso ilusório e atraente para incautos. Numa crónica incluída na obra O país do solidó (2021), J. Rentes de Carvalho, um pensador crítico dos quotidianos, deixa o aviso: “A estupidez é contagiosa e demasiadas vezes é ela quem vence.”

E a conclusão torna-se óbvia: porque não investem os cientistas numa vacina contra a estupidez? O mundo e a vida seriam mais fáceis, mais felizes, menos enganadores, mais de todos.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1272, 2024-04-03, pg. 10.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Eugénio Lisboa: poemas em tempo de guerra



Há um texto do ucraniano Andriy Lyubka (n. 1987, em Riga) intitulado “A guerra não é tempo de literatura”, de 7 de Abril, que, se afirma que os poetas ucranianos estão ocupados no apoio social e na defesa da pátria, também confessa: “Nunca na minha vida entendi tão bem poesia como durante a revolução e a guerra. É nestes momentos que ela pode acalmar, ajudar a chorar, e também inspirar à luta, ensinar a cerrar os dentes e a lutar pela vida.”

Podemos cruzar esta afirmação com a justificação que Eugénio Lisboa (n. 1930) apresenta para o livro Poemas em tempo de guerra suja (Guerra & Paz, 2022): “Preferia não ter escrito este livro, sinal de que não tinha havido uma guerra que, de resto, continua a haver. Um tirano (...) promoveu a invasão e a destruição da Ucrânia e, dentro de mim, a indignação que é o sangue destes versos.” Este desabafo confronta-se com uma inevitabilidade - a guerra continua(rá), tal como Lisboa reconhece em nota introdutória: “Nenhum dos grandes livros que se escreveram contra a guerra, ao longo dos séculos, evitou jamais que uma nova guerra se travasse, com o habitual cortejo de ruínas, mortos e mutilados.”

O título diz ao que vem: poemas produzidos na simultaneidade desta guerra que desde Fevereiro de 2022 nos assombra e minimiza, entre 25 de Fevereiro e 26 de Junho. Datados todos eles, assumem-se como registos dos dias, muitos falando sobre a guerra, outros reflectindo sobre a vida (sua longevidade e sentido), acontecimentos do tempo (a morte de Paula Rego, por exemplo), a memória (vivências do passado, recordações de Moçambique), a companhia da Ísis (a gata que motiva alguns belos textos sobre os felinos, “mínimos tigres de salão”).

A guerra suscita a indignação, prevalecendo o tom panfletário, irónico e provocatório, o apelo à tomada de posição - “Mas que merda de poetas, / de liras enferrujadas, / pouco vigor nas canetas / e de iras mal mijadas! // Mas que vergonha de gente, / tão indigna de Camões, / de tesão deficiente / e falta de palavrões!”, versos de 27 de Fevereiro, protestam contra o silêncio dos poetas portugueses perante a catástrofe (e de todos os que não querem comprometer-se), quadras que terminam numa interpelação desafiante: “Acordai a vossa lira, / apodrecida no sono / e instigai-lhe a ira, / que não fique ao abandono!”. O alvo notado nas reflexões poéticas sobre a guerra é Putine, tirano retratado como “Mostrengo”, motivador de perguntas “a alguns amigos russos”, como Turguénev, Tchékov ou Tolstoi, sobre o que diriam desta figura.

Se a indignação contra o absolutismo se funda na sua vontade de matar o inimigo, intensa é a contradição surgida no poema “Matei o meu inimigo”, em que o soldado se amargura, depois de reparar no cadáver que fez: “Empalei-o e abracei-o, / colocando-o no chão. / Com cuidado, observei-o: / era, horror!, o meu irmão!”

Mais para o final, o tom torna-se mais introspectivo, num diálogo com o passado, o sentido da vida, a valorização do que se sentiu, as ausências dos que já passaram, terminando o livro com um soneto-reflexão sobre o tempo preenchido: “Dizem-me que tive uma vida cheia. / Digo-lhes que sim, que, de facto tive. / Se quiserem, foi mesmo uma epopeia. (...) // Mas o que é ter tido uma vida cheia? / As vidas enchem-se como tonéis? / (...) // Uma vida cheia, dizem Vocês? / (...)” As perguntas retóricas pontuam o poema, devolvendo a reflexão para os outros, pretexto para o conhecimento das razões que levaram a que portas se abrissem e se fechassem, afinal a história das nossas circunstâncias... 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 932, 2022-10-04, p. 10.


terça-feira, 12 de abril de 2022

Centésima crónica - Dos livros



De livros, e do que deles fica, se tem falado por aqui. Na centésima crónica, algumas justificações para a leitura e para os livros. Diversificadas, mas sempre com o prazer da leitura e do livro em fundo, por alguns dos que escrevem.
Afonso Cruz: “Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” - O vício dos livros (2021).
Alice Brito: “Pode-se frequentar um livro, um verso, uma página. Há livros que têm melhor vida que outros. Em carícias, sublinhados, empréstimos, conversas e paráfrases. Há livros que têm mesmo uma vidinha de lordes. Emprestam imaginários, personagens e vistas largas. São referidos, referenciados, estudados com deleite. São lidos por muitos olhos. À noite, de dia, às escâncaras ou clandestinamente. É a vida. Também há alguns que não valem nem o papel que gastam. Só dizem parvoíces.” - As mulheres da Fonte Nova (2012).
Aquilino Ribeiro: “Para uma criança, livraria que ela possa revolver e folhear à vontade é divertida como um presépio e mais instrutiva que uma escola. Frontispícios, gravuras, cul-de-lampes, vinhetas, que curso de humanidades!” - Anatole France (1923).
Dulce Maria Cardoso: "Os livros oferecem-se sem escolha a todos os que os quiserem ler. E, se redimem, fazem-no de forma tão caótica e tão insondável que ninguém poderá ter nisso qualquer esperança. Talvez os livros escrevam direito por linhas tortas. Como Deus." - na antologia O Prazer da Leitura (2011).
Eduardo Lourenço: “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas.” - em entrevista a Carlos Vaz Marques, em Os escritores (também) têm coisas a dizer (2013).
Eugénio Lisboa: “Quando um livro nos impressiona e marca profundamente, a seguir a ele, nenhum outro livro nos parece apetecível.” - Vamos ler - Um cânone para o leitor relutante (2021).
João Bigotte Chorão: “Os livros podem fazer um erudito, mas é duvidoso que tornem civilizado quem o não seja.” - Diário 2000-2015 (2017).
José Régio: “Como eu gosto, espapaçado na cadeira, de olhar os meus livros alinhados na estante! São como soldados em fila. E às vezes, caem sobre mim, esmagando-me de visões. Não vejo quase nada. As frases saem-me aos solavancos.” - Páginas do diário íntimo (1994).
José Tolentino Mendonça: “Em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada.” - O que é amar um país - O poder da esperança (2020).
Maria Judite de Carvalho: “Quem não lê não sabe o que perde. Os livros são os nossos melhores amigos, é uma frase feita mas é uma frase certa. Amigos que nos ajudam, que nos acompanham, que nos enriquecem com o seu saber, que nos dão momentos agradáveis de fuga ao quotidiano ou momentos pouco agradáveis mas necessários de chamamento à pedra da vida.” - Diários de Emília Bravo (2018).
Rita Ferro: “Livros são bússolas que me guiam nos momentos sem Deus, substitutos de um misticismo que não me foi destinado, ou que a vida, com os anos, foi dissolvendo.” - Veneza pode esperar - Diário 1 (2014).
Serafim Ferreira: “O livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem.” - Olhar de Editor (1999).
Valter Hugo Mãe: “Nenhum livro se faz sem essa rendição à maravilha em detrimento da verdade.” - Contra Mim (2020).
* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 826, 2022-04-12, p. 11.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Eugénio Lisboa cativa leitores relutantes


O título envolve um convite, embrulhado em emoção, numa exclamativa. É curto, duas palavras. Mas um subtítulo chama a atenção para o que tão conciso título pretende. Vamos ler! - Um cânone para o leitor relutante é o mais recente livro de Eugénio Lisboa (Guerra & Paz, 2021), leitor contumaz, a falar da felicidade de ler para interlocutores a conquistar.

A aventura começa com recuo à infância moçambicana do autor, numa família sem “folga financeira para comprar livros, para além dos escolares”, numa casa cuja arrecadação guardava num baú, “dezenas e dezenas de números de uma revista brasileira, com um título que era um verdadeiro chamariz”. Chamava-se... Vamos ler!, oferecendo “reportagens, verbetes dedicados a grandes escritores do passado e do presente (daquele presente!), contos de autores famosos, novelas policiais excitantes e até peças de teatro”. O trilho da leitura: “à falta de livros, fui-me embrenhando na boa e variada literatura que a revista me oferecia. ‘Vamos ler!’, dizia o título da revista - e foi isso mesmo que me dispus a fazer: ler.”

A persistência e o gosto levaram o jovem para um cruzamento de géneros, tempos, culturas, numa viagem fascinante que o faz afirmar: “As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam.” Esta asserção conduz a Virginia Woolf, pelo seu cenário do Dia do Juízo, no momento de recompensar heróis - dirá Deus a Pedro, quando alguém chegar com livros debaixo do braço: “Olha, estes não precisam de recompensa. Não há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!” Criados os passos, Eugénio Lisboa diz ao que vem: “Era precisamente para este estatuto de ‘pessoas que já gostam de ler’ que eu gostaria de seduzir as pessoas pouco habituadas à leitura. E uma coisa prometo, desde já: não fazer batota.”

Vamos ler! apoia-se em dois vectores: o da sedução e o da sinceridade de leitor experimentado. Se aquele cativa vontades, este aponta caminho não complexo nem difícil. Isto é: neste livro “trata-se de congeminar uma isca astuta e não de exibir uma cultura sofisticada e faraónica.”

O fingimento sentido no mundo literário é repudiado por Eugénio Lisboa, sobretudo pelo snobismo do “fica bem” ou do “dar estatuto”. Daí a palavra “cânone” no título, termo habitualmente guardado para associar a ideologia ao gosto, à norma, prescritivo, mas que Eugénio Lisboa usa em dimensão modesta e próxima, chegando a dizer não ser o “seu”, mas “um” cânone para que não haja leitores relutantes e também para ironizar com os cânones que deixam de fora, por exemplo, uma poeta como Sophia...

As visitas propostas passam por uma lista de 50 obras de 35 autores, todos portugueses (na verdade, são muitos mais e há imensos estrangeiros, pois as incursões sobre os seus gostos literários são outros tantos “iscos”, ainda que fora da lista), ordenada do “mais recente para o mais antigo”, estratégia pedagógica iniciada com Miguel Sousa Tavares até chegar a Camões, também descobrindo em alguns canónicos dos programas escolares as virtudes que ficam normalmente à porta do estudo. Não, não vou dizer quais são os autores - apesar de poder haver alternativas válidas, a proposta de Eugénio Lisboa é coerente, pois assenta no princípio de que “vale a pena ler”, verdade tão universal que até Bill Gates afirmou: “Os meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros”, porque, “sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever, inclusivamente a sua própria história.” E conclui o autor: “E, agora, VAMOS LER!” 

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 591, 2021-03-30, p. 10.


quinta-feira, 12 de abril de 2018

Para a agenda: Eugénio Lisboa traz José Régio a Setúbal



Eugénio Lisboa é um nome que não precisa de apresentações, tão vasta é a sua obra, tão excelente tem sido o seu contributo para a cultura portuguesa! Em Setúbal, vamos ter oportunidade de o ouvir sobre um dos seus temas de eleição, sobre um dos autores para cujo conhecimento muito tem contribuído, sobre um poeta que é intemporal e é já um clássico - José Régio.
Uma organização da Casa da Poesia de Setúbal marcada para as 18h00 de 14 de Abril, sábado, na Biblioteca Municipal de Setúbal. Para a agenda!

segunda-feira, 19 de março de 2018

Para a agenda: Dia Mundial da Poesia em Setúbal com maratona poética e mais...



Entre as 09h30 e as 23h00 de 21 de Março, Setúbal vai celebrar o Dia Mundial da Poesia num programa bem preenchido, o da "VIII Maratona da Poesia de Setúbal". Apresentação de livros (de Alexandrina Pereira e de Dina Barco), sessões de leitura de poemas, evocação de Bocage (com José Nobre), música (com Manuel Guerra) e uma conferência sobre Miguel Torga (com José Cymbron e Eugénio Lisboa), eis um programa a convidar.


A celebração do Dia Mundial da Poesia vai também ser acontecimento no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), em sessão prevista para as 21h30, com a presença de Sara Loureiro e António Marrachinho, que dirão poemas, e com uma mini-Feira do livro de poesia.
Para a agenda, inevitavelmente!

sábado, 11 de novembro de 2017

Maximiano Gonçalves: Poesia que ouve palavras



Para que outro fim existem as palavras senão para serem ouvidas, seja pelos ouvidos, seja pelo olhar? A pergunta pode parecer supérflua por incidir sobre uma coisa óbvia, mas são justamente as coisas evidentes aquelas sobre que menos se diz.
Vem isto ao caso por um título como Ouvir a Palavra (Lisboa: Letras Paralelas, 2017), livro de poemas de Maximiano Gonçalves (n. 1942), conjunto de quatro dezenas de textos com um prefácio assinado por Eugénio Lisboa e uma nota inicial do autor. Os dois textos introdutórios assinalam as linhas gerais de que se faz este livro: por um lado, Lisboa chama a atenção para o primeiro poema, “Ode à Palavra”, que considera uma “belíssima e muito explícita ars poetica”, contendo esse texto “toda uma filosofia sobre o valor da palavra, no texto literário, em geral, e no texto poético, em particular”. E, ao olharmos o poema, logo somos convidados, melhor, interpelados para esta captação da palavra através de uma festa dos sentidos - “Ao leres, / Ouve a Palavra em silêncio, / Olha o corpo que tem / E prova-lhe o sabor, / Enche dela a tua boca.” Ouvir, olhar, gostar. Poderíamos até adivinhar o tactear. Esta Palavra, grafada com maiúscula, apresenta-se com identidade, dela se falando com palavras (desta vez, com minúscula). A “Palavra” contém a sua energia no que está para lá do soletrável, do dizível, e apresenta-se como “chave-mestra dos assombros”, como “ressonância do Mundo”.
Grandioso é este poder metafórico que Maximiano Gonçalves atribui à palavra poética, aquela que está muito para lá do dicionário, do uso corrente, prenhe de “assombro”, de revelação, de fantasia, de mundo a descobrir, albergando todos os ecos do Universo, em combinação musical, algo que nos remete para o entendimento bíblico daquela frase, também ela assombrosa e totalizadora, “no princípio, era o Verbo”. Por isso mesmo, o poema termina de forma reincidente e insistente, quase pleonástica, ao sublinhar: “Ouve a Palavra. / Ao leres, ouve a Palavra.”
Percorre o leitor este livro e sempre se encontra com palavras da enorme família do sentido que nos dá esse prazer que é o ouvir, seja na forma do que nos chega, seja na coragem do “belo esforço das palavras”, seja na co-relação com o “falar”, seja num acto tão aritmético quanto o “perguntar e responder”, seja na faceta musical de “som da eternidade” ou do “ouvinte do silêncio”, seja na sua forma de esplendor em que “a luz de cada palavra / passa a outra palavra”. Percorre o leitor este livro e vê homenagem à poesia e a poetas, sobretudo a um chamado Fernando Pessoa de quem se diz “que quase tudo escreveu”, porque foi um poeta que, mais do que ver, ensinou a olhar, esse acto de interiorização que sucede ao ver!... Percorre o leitor este livro e, mesmo num poema com o fascínio do visual como aquele que se intitula “À mulher que dançava, sozinha, na Praia”, o que se ouve é música, porque, como é dito noutro poema, “ouvimos o olhar”. A palavra só contém sentidos se for lida, se for ouvida, isto é, se houver uma coesão sensorial, se nos deixarmos invadir pela sua força, que, no poema, é mais intensa, pois, como disse José Fernandes Fafe, “Todo o poema - por mais dramático, áspero, dissonante... - infiltra-nos pelos poros a música, e o silêncio, do rumor de fonte da Harmonia.” (Curriculum Vitae. S/L: Editorial Fragmentos, 1993, pp. 14-15)
Para regressar ainda ao que diz Eugénio Lisboa no seu prefácio a este Ouvir a Palavra, o poeta milita em busca da poesia, “porque ela - a poesia - está em todo o lado, se bem a procurarmos”. Uma forma imediata de referir esta totalidade a ser desvendada que um outro poeta, Luís Filipe Castro Mendes (que para aqui convoco porque também ele conjuga a palavra com a harmonia dos sons), assim versou: “O poema / (…) / são palavras que caem, abatidas pela vida, / e que esperam por nós para se erguerem, / como se a música assim pudesse permanecer.” (Outro Ulisses regressa a casa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2016, pg. 63)
O outro texto introdutório a este livro é de Maximiano Gonçalves, que, não ultrapassando a simplicidade de um título como “Nota inicial”, refere uma tónica que vai sobrepor-se em vários dos seus poemas. Por entre os agradecimentos, o autor menciona que todas as suas palavras são dedicadas aos que lhe ensinaram “as Letras e a alegria de Pensar”, aqueles que lhe abriram o caminho em que “a dignidade do homem que se entende como cidadão (...) o obriga a lutar por uma Sociedade Nova”.
Há, assim, a presença da convicção, da afirmação, do compromisso. E, neste caminho, Ouvir a Palavra contém espaço para a denúncia (“A espécie única”), para a ironia (“Index Librorum Prohibitorum”), para a reflexão sobre o menos bom no homem (“Há duas classes de homens”), para o desafio (“Se um dia falar com Deus”), para a contemplação das grandes vidas e grandes percursos (míticos, como o herói Heitor, ou reais, como essoutro herói, Beethoven), para a auto-reflexão (“Conversa sobre hipocrisia”), para as reflexões a partir dos encontros casuais da vida (“Uma gata da rua morreu na minha rua” ou “O nosso irmão, cão-guia”).
Todas estas valências surgem agrupadas na primeira das duas partes do livro, singular e laconicamente intitulada “Vária”, uma designação que, habitualmente, é reservada para o não-agrupável, remetida para depois das arrumações temáticas. Mas até esta ordem parece resultar do composto que a vida é nas suas oportunidades de tudo, inclusivamente de se manifestar pela poesia. “Vária”, assim como quem diz Vida ou Caminho ou Mundo ou, apenas, Tudo. “Vária”, assim como quem diz Olhar ou Gostar ou Tocar ou Ouvir ou, apenas, Sentir. “Vária”, assim como quem diz Paleta ou Sonoridades ou Sinfonia do Mundo. “Vária”, porque é esse imenso mar ou conjunto do que o exterior nos oferece para que se faça, para que se construa Poesia.
A segunda parte, mais curta, recorre ao universo “Do Amor”, povoada por treze poemas, todos com um destinatário implícito, recolhido numa segunda pessoa que se pressupõe causa dos dizeres. Ainda aqui, surgem referências de poetas outros, mas perpassa sobretudo o afecto, o gesto, o erotismo, todos inseparáveis, como se nota no poema “Se não visse”: “Se não visse, / Amar-te-ia pela pele. / Se não ouvisse, / Amar-te-ia pelo olhar. / Se não falasse, / Amar-te-ia pelo gesto. / Se não escrevesse, / Amar-te-ia pela fala.”
Finalmente, com este livro também se descobre. Parodiando Fernando Pessoa, o poeta é um perguntador. Faz poemas que fixam olhares, sons, gostos, questões, crenças, valores e descobertas. Faz poemas que questionam sentidos. E remata: “Perguntar é a viagem / De saber como somos / E o deslumbre / De só sabermos pouco, / Pouco a pouco, / Ou que temos de voltar atrás.” As perguntas obrigam a tentativas de pensar e só existem porque há respostas. Umas e outras combinam-se sempre que o leitor está disposto a... ouvir a palavra!
(Na apresentação pública da obra, na tarde de hoje, na Biblioteca Municipal de Setúbal,
iniciativa da Casa da Poesia de Setúbal) 

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Para a agenda: Maximiano Gonçalves e a poesia da palavra



Maximiano Gonçalves já esteve em Setúbal para falar de textos em que Fernando Pessoa nos disserta sobre gestão. Autor de crónicas na Antena 2, depois publicadas em livro (Dizer É Preciso, 1998), melómano, desta vez vem a Setúbal para nos inspirar sobre poesia e sobre o seu livro, Ouvir a Palavra, que foi considerado por Eugénio Lisboa como uma "belíssima ars poetica". Uma realização da Casa da Poesia de Setúbal, na Biblioteca Municipal de Setúbal. Sábado, 11, pelas 15h00. Para a agenda!

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Para a agenda - Eugénio Lisboa em Setúbal



Eugénio Lisboa é personalidade incontornável na cultura portuguesa da actualidade. Engenheiro de formação, o seu nome está também ligado à literatura portuguesa, sobretudo no domínio do ensaísmo, e a algumas intervenções cívicas importantes.
No dia 16, estará em Setúbal para nos falar de Sebastião da Gama. É um convite!

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Segunda carta de Eugénio Lisboa - desta vez "aos governantes de Portugal"

Eugénio Lisboa reincidiu nos destinatários de mais uma carta aberta, ontem publicada por Eduardo Pitta no blogue "Da Literatura". Cáustico (como só se pode ser neste tempo), irónico (como só se pode ser neste tempo), lúcido (como se precisa de ser neste tempo), Eugénio Lisboa recorre a Swift (sécs. XVII-XVIII), o criador de Gulliver, que cita abundantemente, para incentivar os governantes na prossecução dos cortes. Na sequência da carta que já ontem aqui mencionei, vale a pena ler esta segunda... não tão cheia de ensinamentos quanto a primeira, mas demolidora. Cáustica, irónica e lucidamente demolidora!

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Eugénio Lisboa escreve carta aberta ao Primeiro-Ministro

Corre na net uma carta aberta dirigida ao Primeiro-Ministro português, subscrita por Eugénio Lisboa. É um documento a ler - pela qualidade literária, é certo; mas, sobretudo, por essa transmissão que resulta do saber ("de experiência feito"), da sensibilidade, da cultura, da humanidade e também pela ausência de todas essas referências neste período que nos vai invadindo.
Muitos de nós subscreveríamos aquela carta, independentemente dos efeitos de Cronos; muitos de nós aplaudimos o gesto de Eugénio Lisboa, que partilhou o sentir, num acto de cidadania e de verticalidade, sem as amarras justificadas pelas globalizações, venham elas de onde vierem.
É comovente a carta. Vale a pena lermos e vale a pena comovermo-nos.