segunda-feira, 16 de novembro de 2009
"Papel a mais" - Convite
terça-feira, 29 de julho de 2008
Para uma antologia da região de Setúbal (6): "Nossa Senhora da Anunciada", por Carlos Fernando Russo
Ao longo de meia centena de páginas, Carlos Russo traça a história dos dois edifícios: a igreja, desde o que seria a ermida fora de muralhas em honra da Senhora da Anunciada, passando pela criação da Confraria respectiva, pela protecção régia, pelos desastres provocados pelos terramotos de 1531 e de 1755, pela criação da paróquia, pela igreja que foi dos jesuítas, pelas vicissitudes das misturas de momentos políticos conturbados (implantação da República), pelas utilizações do espaço que foi da igreja para fins absolutamente diferentes dos religiosos; por outro lado, o hospital, desde a sua função de aplicação dos princípios da caridade e das obras de misericórdia até à passagem para a Santa Casa da Misericórdia, com referências à enfermaria dos frades (onde morreu Frei Agostinho da Cruz). O autor confessa a dificuldade na obtenção de documentos que contem a história, mas insere alguns que se revelam importantes para demonstrar a importância deste espaço e deste serviço para Setúbal ao longo dos tempos, seja através de crónicas e testemunhos, seja por meio de diplomas régios.
O livro é ainda constituído por mais três textos, que surgem como “apêndices” – José Luís Neto, arqueólogo, escreve sobre “A intervenção arqueológica no Hospital da Confraria de Nossa Senhora da Anunciada – Dados Preliminares”, tarefa exigida pelo facto de este espaço se situar no centro histórico de Setúbal e ter carecido de movimentações de terras, em que historia a arqueologia urbana em Setúbal e dá conta das sondagens que ali efectuou em 2006; Nathalie Antunes-Ferreira assina “Os indivíduos exumados na Igreja de Nossa Senhora da Anunciada”, a partir da quase centena de inumações, concluindo sobre doenças várias que afectaram os indivíduos (85 adultos, 10 não-adultos, sendo os de sexo feminino mais do dobro relativamente ao masculino); Angelino Gomes, arquitecto, subscreve “Memórias do Projecto de Remodelação da Cúria de Setúbal, Novos Tempos”, apresentando uma memória descritiva das obras de adaptação levadas a cabo, que constituíram tarefa “de difícil génese devido à ocupação de numerosos espaços com paredes anteriores ao terramoto de 1755, o que dificultou a leitura do espaço na sua integralidade”.
Torna-se útil esta obra pelos recuos que faz na memória e na história e por congregar um interessante conjunto de informação pluridisciplinar sobre um espaço importante para a consolidação da cidade de Setúbal.
Carlos Fernando Russo (n. 1961), setubalense, é pároco de Alcochete e é ainda autor de A Ordem de Santiago e o Papado no tempo de D. Jorge: De Inocêncio VIII a Paulo III (Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2007), que constituiu a sua tese de mestrado.
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
Para uma antologia da região de Setúbal (5)
O 12º volume inclui um momento da história passada em Setúbal, em capítulo intitulado “Justiça de D. João II”, evocando factos de 1484 relacionados com a tentativa de assassínio que a nobreza queria perpetrar sobre a figura do rei, que, no entanto, graças a informações de um tal Diogo Tinoco e, depois, de Vasco Coutinho, conseguiu desmantelar a conspiração. A história contada associa a lenda da Casa das Quatro Cabeças, que tem andado sempre ligada a esta tentativa de regicídio, muito embora não haja disso provas.
A figura do rei aparece-nos séria, elegante, decidida, com pose de estado. Em Setúbal, desloca-se entre o Convento de S. Francisco, Tróino e a casa de Nuno da Cunha e a história passa-se no Verão de 1484, entre Julho e finais de Agosto.
Pela escrita de Rocha Martins passa uma fina e detalhada caracterização psicológica das personagens, ainda que o narrador não esconda que está a imaginar o que se passaria na mente das mesmas – por exemplo, quando o Duque de Viseu, instalado em Palmela, é chamado para ir a um encontro com o rei em Setúbal, sem saber qual o assunto, comenta o narrador: “Ignorava o que lhe queria, assim apressadamente (…). Decerto se tratava de caso de gravidade e, ao lembrar-se de ter falhado, na véspera, o golpe do assassínio, deveria ter muito medo de punição.” O narrador tenta assim pôr-se na pele da personagem… a tal ponto que, quando o Duque de Viseu está a chegar a Setúbal, relata: “Bem via, não era para coisa boa que o chamavam; e quando entrou nas ruas ardentes, sobre cujas pedras farulhavam as ferraduras da montada, mais lhe apetecia meter-se para as bandas do Sado, fugir nalgum barco, acolher-se nas vastas sombras da Arrábida, merendar nalgum vergel perfumado pelos laranjais do que escutar a voz furibunda do juiz.” Mal sabia o Duque que caminhava para a morte, friamente cumprida e executada pelo próprio rei, sem delongas, na casa de Nuno da Cunha!...
Depois, foi a prisão e morte dos outros conjurados, nomeadamente o bispo de Évora, que foi enclausurado na cisterna do castelo de Palmela, ali estando, “nas profundezas do poço, onde coaxavam as rãs e ele gemia, na treva, desolado e perdido, sem confortos, passando da prelacia para o cárcere, imundo e bafiento, onde estava com os pés, ora na humidade, ora na lama”. Ali morreria o bispo, já depois de ter sabido da degolação de seu irmão, outro conspirador, e de ter conhecido o destino dos seus comparsas, vítima da peçonha.
Da acção de D. João II fica uma imagem de chefe incontestado e decidido, que tanto punia como concedia favores – “Era assim. Depois da punição as mercês; e tão pingues, e ao mesmo tempo tão justamente talhadas que todos se admiravam de tanta integridade em homem tão terrível.” A narrativa de Rocha Martins surge intensa, com pormenores que evidenciam o sentido justiceiro do monarca e acentuam o sofrimento dos castigados.
Setúbal foi, assim, a terra onde poderia ter acontecido o primeiro regicídio em Portugal, antes sendo marcada pelo sítio onde D. João II aproveitou para vincar o seu poder e demonstrar o seu espírito de decisão. Também aqui ficou deliberado que o rei seguinte não se chamaria Diogo, o conspirador irmão do bispo de Évora, antes seria Manuel, nesse momento feito Duque de Beja e herdeiro de quase todos os bens do Duque de Viseu, seu irmão.
Os outros dois episódios relatados neste número de Legendas de Portugal intitulam-se “A tomada de Chelb e sagração dos Infantes” (relativo a Silves e Tavira) e “O Mestre de Cristo” (alusivo a Tomar).
sexta-feira, 7 de setembro de 2007
Para uma antologia da região de Setúbal (4)
Quem foi Juan Alvarez de Colmenar é retrato de dificuldade. Para uns, foi escritor espanhol do século XVIII; para outros, terá sido um escritor francês da mesma época; há ainda quem admita que o nome corresponda a um pseudónimo com autoria desconhecida. Certo é que, em 1707, em Leyde, apareceu uma obra em cinco volumes, com a sua assinatura, em francês, intitulada Les délices de l’Espagne et du Portugal, e que, em 1741, em Amesterdão, também sob sua assinatura e em francês, foi publicada, em quatro volumes, a obra Annales d’Espagne et de Portugal, cujo primeiro volume relatava a história dos dois reinos, ficando para os outros três volumes o subtítulo da obra de 1707. Sabemos, pois, que foi viajante que legou relato da sua experiência, não esquecendo observações destinadas aos visitantes da península no último volume, sobretudo por aquilo que estes dois reinos continham de especificidade ou de diferença em relação aos outros, aí relatando costumes particulares.
No terceiro tomo da obra de 1741, com o longo título de Annales d’Espagne et de Portugal contenant tout ce qui s’est passé de plus important dans ces deux Royaumes et dans les autres parties de l’Europe, de même que dans les Indes Orientales et Occidentales depuis l’établissement de ces deux Monarchies jusqu’à présent, avec la Description de tout ce qu’il y a de plus remarquable en Espagne et en Portugal, leur état présent, leurs intérêts, la forme du Gouvernement, l’étendue de leur commerce, etc. (Amsterdam: François L’Honoré & Fils, 1741), a descrição de Portugal inicia-se na página 223. Depois de localizar o país, o autor apresenta as duas possíveis etimologias de “Portugal” – a partir de “Portus Gallorum”, designação de região do Porto onde terá atracado uma frota gálica, ou por “Portus Cale”, cidade antiga na foz do Douro, inclinando-se Colmenar para a maior verosimilhança da segunda hipótese.
Referida a organização eclesiástica, Portugal é apresentado como “um belo país, rico, fértil e com abundância de tudo o que se pode desejar para as necessidades e para os prazeres da vida”. Quanto a produções conhecidas no estrangeiro, são apontadas “o sal, que sai em grande quantidade de Setúbal, ou S. Ubes, para os países do norte da Europa, o azeite e alguns vinhos”. Depois de uma curta descrição sobre as relações de Portugal com as regiões que faziam parte do seu domínio (na América, na África e na Ásia), há uma apresentação dos principais rios, não esquecendo o Sado, “a que os antigos chamavam Callipus, nascido no sul do Reino, fecundo em vários géneros de peixes que não se encontram facilmente noutros sítios, como a tainha, o salmonete, a enguia e outros”, chamando ainda a atenção para a presença, junto à foz, de caranguejos e de bivalves.
A descrição do país segue, depois, as várias províncias, viajando de norte para sul. Quando, três dezenas de páginas à frente, escreve sobre a Estremadura a sul do Tejo (e insere a referida carta de Setúbal), volta a referir o Sado e a sua característica de correr de sul para norte. As localidades mencionadas são Almada (com um castelo “face a face” com Lisboa), Coina, Montijo (com o nome de Aldeia Galega, onde passa “a estrada daqueles que vão de Sevilha para Lisboa” e em cuja região há um sal que se prepara da mesma forma que o francês de La Rochelle), Sesimbra, Palmela e Setúbal, “uma vila nova, construída sobre as ruínas de uma mais antiga denominada Cetóbriga, que cresceu graças à comodidade do seu porto, à fertilidade do seu território, à riqueza da sua pesca e à fecundidade das suas salinas”. Colmenar repara ainda na boa muralha sadina e na Arrábida, onde se colhe a grã e onde existe um muito belo “jaspe, branco, verde, encarnado e de diversas outras cores, de que se fazem colunas que, depois de um polimento, reflectem as imagens como espelhos”.
O capítulo sobre a Estremadura não termina sem uma declaração de favor e de agrado relativamente à paisagem e à vida: “os frutos e os vinhos de toda a província são admiráveis; é ali que existem as laranjas doces que vão em grande quantidade para os países estrangeiros, com os vinhos e outras frutas. A terra está sempre coberta de flores, as abelhas produzem uma maravilhosa quantidade de mel, as oliveiras dão azeitona de que se faz um azeite excelente, os rios fornecem bom peixe, as montanhas têm várias pedras preciosas, enfim o ar é ali tão doce e bom que parece existir uma perpétua Primavera. Não se podem desejar mais encantos num País”.
sexta-feira, 24 de agosto de 2007
Para uma antologia da região de Setúbal (3)
Depois de localizar a cidade, arrisca explicação ligeira para a etimologia do nome com base nas corruptelas linguísticas – em memória da cidade de Cetóbriga, “deram à nova povoação o nome de Cetobra, corrupção da primeira. Corrompendo-se ainda este com o tempo, veio a trocar-se em Setobala, e mais tarde em Setúbal”. Segue o autor um percurso pela história desde os tempos mouros, mencionando a conquista por Afonso Henriques, a atribuição de foral no reinado de Sancho I (atribuído na verdade por Paio Peres Correia, da Ordem de Santiago, no reinado de Afonso III), as primeiras muralhas no tempo de Afonso IV, o casamento de D. João II e a vingança que este rei tomou em Setúbal sobre adversários, novas fortificações mandadas por João IV e a elevação a cidade em tempo de Pedro V. Paralelamente, vai seguindo a história de algumas tragédias que assolaram a cidade – terramotos de 1531, de 1755 e de 1858, pestes de 1579 e de 1598, tempestade de 1724 e invasões francesas.
Apesar de todas as contrariedades, considera Vilhena Barbosa que “à sua situação geográfica, à indústria dos seus habitantes e aos valiosos produtos do seu solo deve Setúbal a fortuna de ter ressurgido tantas vezes de entre as suas ruínas e do meio de mortíferas epidemias”, observação que introduz o leitor na caracterização política, administrativa, religiosa e comercial da cidade. Do património edificado, salienta o Convento de Jesus, “o mais notável edifício religioso de Setúbal” e, referindo-se à utilização do designado “mármore da Arrábida” que integra o Convento, considera ser “o único templo que há no país construído com esta bela pedraria”.
O movimento portuário, as salinas, o vinho (com destaque para o moscatel), o peixe e os encantos e curiosidades da paisagem (como a Arrábida, Tróia e a Pedra Furada) são marcas que Barbosa indica para a prosperidade da Setúbal de então, cuja população andava pelas “quinze mil almas”.
O retrato traçado refere também alguns aspectos menos positivos, como, no plano cultural, a falta de investimento nas escavações em Tróia (recorde-se que o trabalho de investigação feito pela Sociedade Arqueológica Lusitana em meados do século XIX teve de parar por falta de apoios financeiros) e o aspecto de alguns arruamentos – “as ruas da cidade são pela maior parte estreitas, tortuosas e imundas ou pouco limpas”. Entre as personalidades oriundas de Setúbal, são referidos o jurisconsulto Manuel de Cabedo e o poeta Vasco Mouzinho de Quebedo, havendo silêncio quanto aos nomes de Bocage ou de Luísa Todi.
O retrato traçado por Vilhena Barbosa é vasto e multifacetado e pretende abordar todos os aspectos que relacionam a cidade com o seu passado e com o seu presente, através de uma exposição mais ou menos informada e actualizada, sendo nítida a marca da possibilidade de Setúbal ser uma terra próspera.
Inácio de Vilhena Barbosa (1811-1890), natural de Lisboa, estudou Teologia no Convento de São Bento de Xabregas, abandonando a vida religiosa aquando da extinção das ordens religiosas (1834). Ficou conhecido sobretudo pelo seu papel de publicista, tendo redigido Universo Pitoresco (1839-1844) e colaborado em Arquivo Pitoresco e Panorama, entre outros periódicos. Com vasta informação histórica, integrou a Academia Real das Ciências de Lisboa e foi autor de As Cidades e Vilas da Monarquia Portuguesa que têm brasão de armas (1860-1862, 3 vols.) e de Monumentos de Portugal Históricos, Artísticos e Arqueológicos (1886), entre outros títulos.
sábado, 4 de agosto de 2007
Para uma antologia da região de Setúbal (2)
A dedicatória desse livro é longa, mas reproduzo o seu final: “A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses, que têm o riso claro e feroz, que sempre ocultam nos olhos um aceno da morte, que todos os dias, naturalmente, fazem milagres de força, que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos… que são tipos perfeitos da raça.”
Pelas páginas desta humana epopeia passa a figura do “Setúbal”, um tipo que parece saído das páginas de Victor Hugo pelo seu aspecto quasimodiano (de resto, o narrador invoca essa referência), com uma história trágica no seu percurso de vida, que suscita a simpatia do narrador, que chega mesmo a solidarizar-se com a personagem. O texto vale pela história, é certo, mas também pelo retrato do “Setúbal”, moço no “Maria do Mar”, numa escrita que pinta o essencial e que regista um percurso de 40 anos desembocados numa situação de miséria humana, lá onde cabem os “azarados” da vida, numa caracterização forte, matizada pelas cores do sofrimento. E fica para o leitor a última imagem que marcou o narrador: “Estou a vê-lo: no corpo deformado, a roupa oleada e suja de sangue; na cabeça, um chapéu clownesco de pala ao lado; as mãos sempre feridas e entrapadas; toda a miséria do mundo, na voz roufenha e entaramelada; a podridão da carne, no rosto vermelho e tumefeito…”
domingo, 29 de julho de 2007
Para uma antologia da região de Setúbal (1)
A narrativa da viagem que fez em Espanha e em Portugal consta no segundo dos oito volumes que compõem a obra. De Setúbal, Jouvin ouviu falar por causa do sal. Não esteve na terra do Sado, mas fez-lhe referência no escrito, metida na viagem entre Vendas Novas e Aldeia Galega [Montijo]: “há ali um rio que forma terrenos pantanosos, e que passámos, e onde encontrámos a pousada, de onde continuámos por bosques e areais até à povoação de Aldeia Galega, que está na margem do Tejo, sobre um pequeno golfo que o mar invade, acabando com grandes terrenos encharcados onde se produz sal, como em vários sítios de Portugal, principalmente na região de Setúbal, a cinco ou seis léguas daqui, e em Aveiro (…), que os ingleses, os suecos, os dinamarqueses, os holandeses, os escoceses, os hamburgueses e outros estrangeiros vêm carregar todos os anos como troca das suas madeiras para a construção de barcos, ou o seu pescado salgado, trigo, cobre, carvão mineral, ferro, chumbo e outras mercadorias que não há em Portugal. (…)”.