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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Máximas em mínimas (101) - Rosa Lobato de Faria


Depois de ler Os três casamentos de Camilla S., de Rosa Lobato de Faria (1997), seis máximas que dizem muito sobre o que somos.

Prazer - "Os prazeres e a capacidade de os apreciar acontecem desencontrados no tempo. Não se conjugam no momento certo o acto perfeito e a sabedoria da fruição."
Juventude - "Na juventude, com toda a vida pela frente, nunca há tempo. A cabeça foge, ligeira, para outros lugares, os pés partem, ágeis, para outros caminhos. Nunca se está onde se está, nunca se tem o que se tem."
Raiz - "A raiz é o que te está no sangue, o que sentes para lá de tudo o que aprendeste, aquilo que te vem do chão, aquilo que vem das estrelas que te viram nascer." 
Errar - "Porque é que não percebemos que erramos quando estamos a errar e só mais tarde o remorso nos cai em cima com uma força esmagadora e nos amargura o resto da existência?"
Amor - "O amor tardio é o melhor."
Autobiografia - "Nenhuma autobiografia verdadeiramente o é: alindam-se os pecados próprios, ensombram-se os dos outros, corrige-se ou contorna-se a verdade, procura-se uma lógica de crime e castigo que a vida não tem. Não fica claro à luz de que moral nos penitenciamos (...). E, acima de tudo, permitimo-nos apontar o comportamento dos outros, avaliar as suas consequências, julgar."

domingo, 21 de abril de 2013

Um "curriculum" em papel higiénico

Conta a notícia que um jovem de Felgueiras mandou imprimir o seu "curriculum vitae" em rolos de papel higiénico, antecedido de apelativa e provocadora frase a convidar para uma leitura atenta dos passos que fizeram a sua vida.
Originalidade, subida aos limites, desespero, criatividade, publicidade... chame-se-lhe o que se quiser. E há ainda a conversão das economias num possível investimento a seu favor, a necessidade de imprimir este trabalho nos Estados Unidos, a chamada de atenção para a dificuldade de emprego entre os jovens, a insistência no pormenor de ser dada importância a um "curriculum". Lá que é original... é! E é também a aplicação prática do que, no curso de publicidade, aprendeu. Nota vinte pela ideia.
Quanto ao conteúdo... que se pronuncie quem receba os exemplares - vinte - deste "curriculum"!

sábado, 26 de janeiro de 2013

Ramalho Eanes: entre o consenso, a indignação e a esperança


Uma entrevista de saber, de ponderação, de responsabilidade. Uma análise que não cala nem omite. Ramalho Eanes em entrevista com Cristina Figueiredo, José Pedro Castanheira e Ricardo Costa, no Expresso de hoje, em duas páginas. A ler. Deixo alguns destaques.

Consenso e futuro – «Na prática, os partidos têm privilegiado as áreas de divergência, de combate e diferenciação, esquecendo as outras. Um país que carece de alterações profundas deve procurar, em determinadas questões essenciais, a concertação e o consenso. E a partir daí estabelecer os seus próprios planos de reforma – o que é completamente diferente de ter de efectuar apressadamente as reformas impostas. Além disso, a interacção dos partidos com a sociedade civil tem sido incorrecta – mas isso também é da responsabilidade da sociedade civil. (…)»

Percursos – «(…) A Expo98 foi um sucesso. Mas seria necessário gastar o que se gastou? Duvido! E os estádios de futebol – para quê? E há aquilo que se devia ter feito e não fez: a ligação de Sines a Espanha e, possivelmente, do Porto à Galiza. (…)»

Reformar o país – «(…) Nunca se faz uma reforma contra os indivíduos que vão dar-lhe realização E nunca se faz uma reforma contra o país. Só se faz uma reforma utilizando um método capaz. (…) Quando o estudo é feito por um grupo que a sociedade civil reconhece e que tem competência e isenção, criam-se condições imediatas de aceitação e de discussão. (…) Não percebo que esse montante [de 4 mil milhões] ou até outro se procure através de uma reforma feita em dois meses. O estudo de uma reforma destas não demora dois meses, nem um ano – demora mais. (…)»

Cortes, desemprego e futuro – «(…) Até podem cortar ainda mais, mas mostrem-me que esses cortes têm resultados positivos. Primeiro, assegurem-me que não haverá ninguém com fome. (…) Segundo, não posso admitir que se olhe para o desemprego como se fosse uma realidade abstracta. O desemprego são desempregados! E um desempregado, sobretudo de longa duração, é um homem que, pouco a pouco, perde a sua autodignidade, perde respeito por si e pelos outros. Num jovem é muito pior: sente que lhe estão a roubar o futuro. E daqui resulta ou a desistência, a passividade, ou a evasão perversa, ou a revolta. Em muitos países as grandes revoltas foram feitas pela juventude, que não aceita que lhe roubem o futuro! (…) A pátria não é a entidade pela qual valerá a pena morrer, mas pela qual vale a pena viver – pelos filhos, pelos netos, nossos e dos outros. (…)»

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Máximas em mínimas (87) - Júlio César Machado


Amor – “O primeiro amor é muito cantado, mas não lhe fazem nisso favor nenhum, porque realmente o merece; basta ser o único tão isento de amor próprio quanto o amor pode chegar a sê-lo!”
Casamento – “Se quase toda a gente se casa moça, muito moça, é provavelmente por ser essa a idade da audácia, da coragem – estavam com medo que eu dissesse ‘das loucuras’? Nunca!”
Inveja – “A inveja é talvez o único sentimento engenhoso dos portugueses: frouxos de imaginação para tudo mais, são, nesse ramo da sagacidade humana, vivos, espertos e intrépidos.”
Observação – “O espírito de observação desenvolve-se visitando alternadamente as diversas camadas sociais; é necessário ter um pé nas salas e outro nas caixas de teatro: de uma vez na sociedade, de outra na folia; hoje pintores, amanhã burgueses; e principalmente, indispensavelmente, mulheres; quantas mais se conhecerem, melhores auspícios para o observador; a observação vem sobretudo delas, por elas.”
Júlio César Machado. “Prefácio”.
Álbum de caricaturas – Frases e anexins da língua portuguesa (de Rafael Bordalo Pinheiro), 1876.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Dina Barco: "Diário de Sara, a Verde"


“Mãe, tens muitos diários cá em casa?”, quis saber Sara, um dia. Pensando nos seus diários da juventude, a mãe confessou que já os destruíra, mas a adolescente logo corrigiu a pontaria – “Não é desses que estou a falar. Quero saber de diários como o de Anne Frank e o outro que andaste a ler!” E a mãe procedeu a rápido inventário do que podia ser encontrado nas estantes lá de casa: Miguel Torga, Sebastião da Gama, José Saramago. Mais tarde, nessa sexta-feira, Sara registaria: “Pelos vistos, a moda dos diários-livros não é coisa recente. Não sei se foi a Anne Frank que começou, embora involuntariamente, coitada, porque duvido que isso a preocupasse enquanto vivia escondida dos nazis. O certo é que, uns anos mais tarde, no meio de outra guerra, a Anne serviu de inspiração à Zlata Filipovic. Depois apareceram a Joana (da Lua), a Sofia (& Cª) e uma tal Bridget Jones (…) Agora há diários para todos os gostos: cruzados, secretos, de bananas, de totós, de vampiros…” E logo veio a decisão da jovem: “Mesmo assim, resolvi experimentar a receita para ver se acabo com as crises financeiras cá de casa. Se os outros escrevem, porque não eu, que até tenho sempre boas notas a Português?”
Está encontrado o pretexto para este Diário de Sara, a Verde, de Dina Barco (Ilustr.: Raquel Barco. Setúbal: ed. Autor, 2011), volume de oitenta páginas, corrido no tempo de um ano escolar, entre o primeiro de Setembro e o 25 de Junho. O género é a forma de escrita diarística juvenil sobre uma história ficcionada e os modelos são vários, como referido acima.
De leitura bastante acessível, transmitindo os sentires de Sara, uma jovem do 6º ano, que vive com a mãe, na cidade do Sado, neste Diário vai a protagonista partilhando com o leitor as preocupações da idade – as amizades, os amores, as zangas, a cumplicidade com a mãe, a escola, o espírito de grupo, a família, as descobertas, a ausência do pai, a identidade…
Por este caminho passam, sobretudo, as aprendizagens e os olhares de uma adolescente atenta à vida – sobre a amizade (“Sabe tão bem fazermos os outros felizes!”), sobre as dificuldades dos outros (ao saber a história de Fábio, desabafa: “deve ser horrível andar a viver daquela maneira, empurrado duns sítios para os outros, sem um único adulto em condições que se preocupe com ele… Como é que eu seria se tivesse uma vida assim?”), sobre os rapazes (“Parece que nem vives neste mundo. Então não sabes que quando os rapazes coram é porque estão apaixonados?”, ensinou-lhe a Inês), sobre o apoio da mãe (“Não ganha muito e portanto também não podemos ter luxos, mas eu não trocava a minha vida por nada! Damo-nos bem, divertimo-nos juntas, fazemos programas interessantes… Ela não sabe, mas é a pessoa que eu mais admiro no mundo.”), sobre os efeitos da paixão (“quando aparecem paixões pelo meio é normal que as amizades se ressintam um pouco”), sobre o primeiro beijo (“depois os lábios dele tocaram os meus e senti uma onda de calor que me deixou literalmente a flutuar”), sobre o sentido das aprendizagens (“já percebi que dentro e fora da escola a vida é assim mesmo, feita de mudanças que nos estão sempre a pôr à prova e a fazer aprender mais qualquer coisa”). E passam também as preocupações sociais (o custo de vida, a solidariedade, a amizade, as cautelas no uso da net, cuidados ambientais), as imagens sadinas (Arrábida, Teatro Animação de Setúbal, Coral Luísa Todi, Coral Infantil de Setúbal, Vitória Futebol Club, Parque Urbano de Albarquel, Museu Oceanográfico, Lapa de Santa Margarida, José Afonso, Casa da Baía), a pedagogia sobre a saúde (alimentação).
Quanto ao cognome “a Verde”, Sara adquiriu-o graças a um projecto que desenvolveu na escola, assumindo uma perspectiva crítica quanto às práticas pouco amigas do ambiente levadas a cabo no meio escolar. A sua forma de afirmação, o seu espírito crítico e a sua convicção granjearam-lhe simpatias e constituíram mesmo um passo determinante para o encontro com o rapaz de quem gostava, assinalando um momento de tal crescimento que, num registo de Junho, a levará a escrever: “Faltam só duas semanas para vermos terminado o ano lectivo mais feliz da minha vida!”
O final do livro é de encontros: apaixonada, Sara consegue reconhecer que a mãe estava perante o mesmo sentimento. E, perante as dúvidas de como poderia ser a sua relação com o namorado da mãe e com a filha dele, a Sara revela-se ainda um outro segredo que lhe traz alegria: o destino das duas jovens já se tinha cruzado, ainda que nenhuma delas o soubesse.
Diário de Sara, a Verde é livro de leitura fácil, que pode suscitar diálogos e momentos de escrita. Não sabe o leitor se Sara deu cumprimento à última promessa que deixou exarada na derradeira página do diário – perante o entusiasmo da descoberta final, que Sara conta já tarde, “cansada e com muito sono”, conclui o texto, dizendo: “Agora vou dormir. Feliz. O resto fica para depois.” Se o “resto” for a continuação do trajecto de Sara, pode ser que, um dia, o leitor se cruze com ele… Não se perderia nada, tanto vale a pena haver retratos de jovens felizes com as suas descobertas!

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Hélia Correia na "Ler"

A entrevista que Carlos Vaz Marques fez a Hélia Correia e que o número deste mês da revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 112, Abril 2012) publica é peça a considerar.
No próprio e excelente estilo de Vaz Marques, o pretexto da conversa é a publicação recente do poema A terceira miséria (Relógio d’Água) de Hélia Correia, perpassando pelas suas oito páginas o retrato da entrevistada, uma tela cheia de originalidade, iniciada com os ensinamentos recebidos dos gatos e da Grécia e finalizada com uma confissão resultante de um tratamento que acabou por rejeitar porque… “estive quase a ser normal, imagine.”
Fala-se da Grécia e da cultura grega, da poesia, do “mundo” literário, da escrita, da leitura, da vida. Uma entrevista a alguém que faz o seu mundo e que faz o mundo seu. Peça a ler.
E, sobre o presente, uma (longa) citação a reter, quando todos andamos preocupados com os valores em que nos movimentamos: “Não há nada que escape ao escândalo que o ser humano criou para os dias de hoje. As pessoas falam muito de valores mas eu não gosto muito de falar de valores porque isso implica um sistema moral que se considera mais perfeito do que o dos outros. Não falo, por isso, da falta de valores, hoje. Até porque há grandes valores, por exemplo entre os jovens. Há o valor maravilhoso da amizade, que está muito implantado. Se eles não têm outras virtudes é também porque não podem, porque estão lançados na arena dos gladiadores e têm de lutar até à morte para não serem mortos. Aí, não pode haver virtude nenhuma. Também não gosto nada da palavra ‘virtude’, que é romana e própria dos homens: é a qualidade do homem. Como é que se pode tipificar este escândalo? É o completo voltar de costas à vida e ao louvor da vida. Sendo que para mim a vida é a natureza e todos os seres que ela contém.”

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Eduardo Lourenço: a Europa, a esperança, a aldeia

A propósito da atribuição do Prémio Pessoa, a revista “Atual”, do Expresso saído na 6ª feira, publicou entrevista a Eduardo Lourenço, conduzida por Rosa Pedroso Lima e por Valdemar Cruz. Nos seus 88 anos, Eduardo Lourenço continua a reflectir sobre o nosso mundo, sobre o nosso mundo que nos cerca. São excertos dessa entrevista que se reproduzem.
Crise – “A Humanidade tem muitas maneiras de se definir. Ninguém pode viver sem esperança. A esperança é uma componente do que é cada ser humano. Sempre tivemos uma visão muito eurocêntrica, mas agora estamos a entrar num pessimismo em relação à Europa. É a famosa crise. Todo o discurso, na componente económica ou financeira, é da ordem do apocalíptico. Estamos à beira do abismo. É verdade que a situação não é boa, mas este continente ainda hoje é o de maior bem-estar em todo o globo. Não há razão para que os europeus desatem a autoflagelar-se.”
Europa – “A Europa comunitária foi construída sob pressupostos negativos: a ideia de servir de tampão entre os EUA e o Bloco de Leste. Uma ideia dos EUA que nos deixou entre parêntesis. No dia em que Muro de Berlim saltou, a Europa ficou sem projecto. (…) A Europa não tem nenhuma espécie de ideologia que a mova para que lhe possa fornecer um sentido do seu próprio projecto.”
Virtual – “Pela primeira vez, vivemos num mundo ao mesmo tempo mais materialista no sentido antigo do termo e mais virtual. A novidade, agora, é que a virtualidade é mais importante que a materialidade. Nesse capítulo, continua a ser um mundo humano. Só os homens são capazes de inventar algo que não existe.”
Juventude – “Neste momento, o problema crucial do mundo é que uma parte da juventude, pela primeira vez, não tem esperança. Não chega a entrar na vida. Pode sair dela sem ter entrado na vida. Isto é novo no Ocidente. Isto é espantoso.”
Aldeia – “Só há aldeias. Porque mesmo as pessoas que vivem nos grandes meios escolhem sempre um canto que lhes serve de aldeia. A aldeia é um conjunto de casas. E no meio das casas há a casa. E nós só precisamos de viver numa casa. O problema é aqueles que sabem isso e que não têm casa.”

terça-feira, 5 de julho de 2011

A "História dos Comboios" contada por Agostinho da Silva

No início da década de 1940, Agostinho da Silva era editor e autor da colecção designada “À Volta do Mundo”, que tinha por segunda indicação “Textos para a Juventude”, deixando antever que o propósito de tal série, em cadernos de cerca de três dezenas de páginas, era alimentar a curiosidade e o saber juvenil, trazendo à mistura a ciência, as descobertas, a história, etc.
De 1943 é uma História dos Comboios, que surpreende o leitor logo no início, falando-lhe da exploração mineira – “Sabes talvez que, já desde tempos muito antigos, a Inglaterra extraía carvão de pedra das suas minas e o utilizava no consumo interno ou o exportava para o exterior; havia muita gente empregada na exploração e é do que há de mais horrível na história do trabalho humano a vida de pobres crianças de 4 e 5 anos que estavam 14 horas na mina conduzindo os cavalos que puxavam as vagonetas do carvão ou abrindo e fechando as portas que isolavam as secções da galeria.” A forma de tratamento por “tu”, como se de uma palestra ou conversa se tratasse, e a invocação de um momento histórico em que as personagens são crianças de uma sociedade em que se conjugam a miséria e a dureza no trabalho, para impressionar o seu leitor e o chamar para a dificuldade do mundo real, são ingredientes que prendem o leitor (ou o ouvinte), que despertam a proximidade, a curiosidade e a emoção. Da vida dos mineiros falará Agostinho da Silva nos parágrafos seguintes, chamando a atenção para a dificuldade de transporte dos materiais no subsolo, razão para o invento do transporte sobre carris.
O leitor descobre depois que foram inventados os carris, que assentaram sobre madeira, primeiro, e sobre pedra, depois, e que, só duas décadas após o invento dos carris, se chegou a uma forma que protegesse contra os descarrilamentos. Paralelamente, vamos seguindo a evolução da máquina a vapor desde Watt, passando por Robinson, Cugnot, Evans, Trewithick e Vivian, que foram adaptando o engenho mecânico ao antepassado do automóvel ou do comboio, até se chegar a Stephenson, construtor de uma locomotiva que “rebocava trinta toneladas, a uma velocidade de quase sete quilómetros” por hora, por meados da década de 1810.
Agostinho da Silva vai mostrando que os inventos e a técnica vão evoluindo e que as máquinas não surgiram de repente com a perfeição com que as conhecemos – a título de exemplo, a locomotiva “Foguete” (“The Rocket”), de Stephenson, pesando 4500 quilos e rebocando um comboio de 13 toneladas a 30 quilómetros à hora só surgiu por 1829. A lentidão dos progressos, sendo estes fruto do trabalho e do investimento, é marca que o jovem leitor vai assimilando, também não ficando de fora um olhar sobre as mentalidades e sobre o espanto e temores que tais máquinas causaram nas pessoas, fosse pela desconfiança perante a novidade, fosse pela adaptação necessária a novas formas de viver, fosse mesmo por razões económicas. Para lá da necessidade de cultivar o saber, destes escritos de Agostinho da Silva não está ausente a preocupação cívica e a formação humanista, pois, mesmo numa história do comboio, há uma veiculação de valores como a paz ou o relacionamento entre os povos – “Os primeiros construtores de caminhos de ferro tinham uma fé imensa nas possibilidades deste meio de locomoção e só assim lhes foi possível vencer as dificuldades técnicas e as que lhe opôs o ambiente; achavam que a causa era de uma importância essencial para a humanidade e por ela se bateram com uma inteligência e uma tenacidade admiráveis; um dos pontos que mais os entusiasmava era o pensarem que os comboios, pelas relações fáceis que estabeleceriam entre os homens de vários países, poderiam ser um meio de assegurar a paz universal que sempre desejaram os espíritos generosos”. E, depois de uma tal defesa, Agostinho da Silva não esquece o seu tom crítico relativamente ao andamento do mundo, rematando: “enganavam-se, claro, porque os motivos da guerra não vêm propriamente da falta de relações entre os homens: como te hei-de explicar um dia, são sobretudo causas económicas que provocam as lutas armadas”. E o leitor de hoje não esquecerá que se estava, nesta altura, a desenrolar a segunda guerra mundial…
O livro termina com datas e algumas curiosidades sobre o início dos caminhos de ferro em diversas nações, concluindo o historial com nota sobre a situação em Portugal, desde que, em 1844, foi projectada uma linha da margem do Tejo até à fronteira, passando pela inauguração do troço entre Lisboa e Carregado em 1856, chegando a 1943 com 3500 quilómetros de linha férrea. Escrita acessível, informada, despertadora da curiosidade, defendendo valores humanistas, alicerçada na história e no poder da inteligência e da criatividade humanas, esta História dos Comboios é marca de um tempo e de uma certa forma de educar (para) a sociedade, sob a intensidade de um poder de comunicação espantoso entre o autor (ou o narrador?) e os seus leitores (ou os ouvintes?), num ambiente quase familiar em que a vontade de divulgar despertava a vontade de saber…

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Máximas em mínimas (56)

Mitos
“Os grandes mitos morrem cedo, morrem na glória, não esperam a decadência, a velhice, o esquecimento. Os grandes mitos não envelhecem, eternizam-se na juventude, na plenitude.”
Ana Ferreira. Carne crua. Parede: Edições Saída de Emergência / Chá das Cinco, 2006, pg. 113.

domingo, 4 de outubro de 2009

Sobre "Que cena, professor!", de Thalita Rebouças

Pelas páginas de Que cena, professor!, de Thalita Rebouças (Lisboa: Editorial Presença, 2009), passam as memórias da personagem Maria de Lurdes, aliás, Malu, jovem com 22 anos que está a partilhar um apartamento com mais duas amigas e que, um dia, depois da visita da mãe, que não aprovou a (des)ordem vivida no apartamento, entabulou conversa com as amigas sobre uma possível arrumação da casa. Que não, que ela lhes fazia lembrar um professor do passado, sempre muito apostado nas arrumações. E estava lançado o desafio para a memória: lembrando um, outro e outro professor nos seus percursos, será Malu a confessar: “Eu tive tantos professores à maneira… Giros, queridos, apaixonados. Inesquecíveis. Lembro-me do Afonso, do Gordo, da Graciete, do Joaquim, da Angélica, da Valéria, da Fátima… Histórias com professores… Tenho a memória cheia delas.”
Intitula-se este capítulo “22 anos”, dando indicação sobre a idade da personagem, mas também sobre as experiências que por esta personagem já passaram e sobre o efeito que a memória nela tem. O capítulo seguinte intitula-se “3 anos”, indicando recuo longo no tempo, até à infância a partir da qual se reconhecem lembranças, tempo de “primeiro dia de aulas”, o primeiro dos primeiros, num mês de Setembro em que Malu ingressava no colégio infantil. Depois, os capítulos garantem a sequência das idades, um para cada ano de vida, com o que de mais marcante aconteceu nesse ano no percurso escolar da protagonista, até chegar, de novo, aos “22 anos”, outra vez título no derradeiro capítulo do livro.
Assim, a história é um longo “flashback” pelo itinerário em que Malu se encontrou com professores – no infantário, na escola de ballet, nos vários níveis de ensino frequentados, na escola de condução. De cada ano ficou pelo menos uma marca para a vida, em episódios lembrados pelo que significaram na relação com professores, com colegas, no crescimento e nas aprendizagens havidas, passando por coisas tão simples quanto a existência do Pai Natal, o (não) gostar do nome, as crises de identidade, as brigas com amigos, os sentimentos em torno das fotografias do conjunto turma, as visitas de estudo, os namoros, a estética e o cuidado com o corpo.
Por esta história vão passando situações particularizadas na vida de Malu, que bem podem ser as sentidas e vividas por todos os jovens. Contando a vida segundo um ponto de vista feminino, o de Malu, esta história bem pode ser uma leitura de género em que a rapariga se dá também a conhecer. Cada momento retratado através da memória tem relato curto, conciso, com economia descritiva, fortemente povoado de diálogo e de acção.
No final, o subtítulo “a vida continua” estabelece a ponte entre o narrado (e lembrado) e o aprendido que ficou para o futuro – “É muito bom olhar para trás e recordar todas estas histórias. Que saudade dos meus professores… São pessoas que marcam a nossa vida, os nossos conceitos, os nossos medos, as nossas inseguranças, as nossas emoções. E incentivam-nos a formar opiniões, testam-nos e deixam-nos ansiosos, curiosos; muitas vezes revoltados, outras empolgados, interessados.” O capítulo terminal é um canto de entusiasmo em honra dos professores tidos, que retrospectiva, lembra e lança a corrente dos afectos, numa junção dos momentos felizes evocados e do papel que os outros desempenha(ra)m na construção desse trajecto, final feliz, portanto – “A vida continua. E o importante é saber que a convivência com cada um dos meus professores foi óptima enquanto durou. Mas que queria muito dar um beijo repenicado na bochecha de muitos, ah, queria mesmo! E depois do beijo eu abriria o meu melhor sorriso e diria, sinceramente, do fundo do coração, aquilo de que me arrependo amargamente de nunca ter dito: Muito obrigada. Por tudo.”
As questões de crescimento e de formação de homens e de mulheres sobrepõem-se às latitudes e a vida também se faz com memórias. Este livro contém uma história com histórias para ler. Com um sorriso, pelo que retrata e pelo que sugere e pela graça com que os retratos nos chegam.

domingo, 28 de junho de 2009

Olhar a adolescência

Daniel Sampaio. "Os jovens e os valores". Público ("Pública"): 28.Junho.2009.
(para ler, clicar sobre a imagem)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Camões e "Os Lusíadas" para os mais novos

Com a edição do Público de ontem foi vendido, como opção, o livro Os Lusíadas – Episódios fabulosos, com selecção e adaptação do texto feita por Elsa Pestana de Magalhães e ilustrações de Jesús Gabán (Sintra: Girassol Edições).
Em nota introdutória, a autora da adaptação dirige-se ao “pequeno grande leitor” para curta biografia de Camões e para justificar a obra – “Ao adaptarmos esta obra para ti, quisemos que começasses a ter contacto com Os Lusíadas e a conhecer o seu conteúdo. Foi por isso que seleccionámos apenas alguns episódios e lhes demos uma forma reduzida e simplificada, procurando, porém, ser fiel ao sentimento de Camões.”
A intenção é a melhor e o livro afigura-se agradável. As ilustrações são elucidativas e equilibradas e acompanham a história. A selecção dos episódios é adequada, com excertos de todos os cantos e inserindo, por vezes, versos camonianos sem dificultar a compreensão e sem forçar o conjunto do texto. Frequentemente, o discurso não se distancia do registo de Camões, utilizando até as mesmas imagens ou palavras, mas com simplificação e explicação a propósito. O leitor ora se julga perante o texto original, ora se confronta com a adaptação, sem que haja cortes abruptos.
Há, no entanto, algumas dificuldades que seriam bem escusadas, tais como: nem sempre ser evidente quem é o narrador do que está a ser contado; o discurso directo assumir vários parágrafos sem que se perceba no imediato que se continua a "ouvir" a mesma personagem; frequência de mistura de formas verbais no tempo pretérito e no tempo presente no mesmo parágrafo, respeitando a mesma acção; manutenção no texto de alguns termos não usuais que poderiam ter sido substituídos, sem necessidade de recorrer aos significados em rodapé.
Esta é mais uma das obras que vem juntar-se à fortuna editorial em torno de Camões e da adaptação da sua vida e obra visando um público juvenil. Deixo aqui, sem exaustiva preocupação, alguns exemplos, nem todos recentes, mas em que vale a pena manter a aposta: Aventuras do Trinca-Fortes – Pequena história de Camões e do seu poema, de Adolfo Simões Müller (Porto: Livraria Tavares Martins, 1946), com ilustrações de Júlio Resende (em 1980, houve nova edição a cargo do Círculo de Leitores, com ilustrações de Antunes); Os Lusíadas contados aos jovens, de Adolfo Simões Müller (Mem Martins: Publicações Europa-América, 1980), com ilustrações de Fernando Bento; Os Lusíadas de Luís de Camões contados às crianças e lembrados ao povo, de João de Barros (Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1930), com ilustrações por Martins Barata (em 2008, houve nova edição, com ilustrações de André Letria); Camões, poeta mancebo e pobre, de Matilde Rosa Araújo (Lisboa: Prelo, 1980), com ilustrações de Maria Keil; Chamo-me… Luís de Camões, de Zacarias Nascimento (Lisboa: Didáctica Editora, 2007), com ilustrações de Ernesto Neves; Barbi-Ruivo – O meu primeiro Camões, de Manuel Alegre (Lisboa: Dom Quixote, 2007), com ilustrações de André Letria; "Os Lusíadas" para os mais pequenos, de Alexandre Honrado (Porto: Âmbar, 2008), com ilustrações de Maria João Lopes; Era uma Vez um Rei que Teve um Sonho: Os Lusíadas Contado às Crianças, de Leonoreta Leitão (Lisboa: Dinalivro, 2007). Quanto a adaptações em bd, lembro: Os Lusíadas em banda desenhada, por José Ruy (Lisboa: Editorial Notícias, 1983); Camões aos quadradinhos, por Rui Pimentel e Jorge Serrão (Lisboa: Aguiar & Dias, s/d) e Camões, por Carlos Alberto Santos (Porto: Edições ASA, 1990).
[A ordem por que se reproduzem as capas dos livros segue a da entrada dos mesmos no texto.]

terça-feira, 28 de abril de 2009

"Mágoas da escola", de Daniel Pennac

Mágoas da escola, de Daniel Pennac (Porto: Porto Editora, 2009, com edição original datada de 2007) é relato autobiográfico e memorialístico do aluno que foi, do professor que veio a ser e do escritor que é Pennac. A escola e os professores vistos pela lupa de um aluno cábula ou as reflexões sobre o(s) sentido(s) da escola constituem motivos suficientemente fortes para esta leitura. Mas há mais: lemos e somos levados a assumir o confronto ou a concordância com o aluno que fomos ou com o docente que somos. Não sei se será um livro de leitura indispensável para os professores, mas que é um livro a ser lido por quem na educação tenha interesse (pais, alunos, políticos, jornalistas, professores, entre outros)… disso não tenho dúvidas. Os relatos e as considerações pensam e retratam, quais espelhos, pistas para que se olhe a escola, as pessoas que a habitam, numa prática em que os métodos, os saberes, as atenções, os progressos, as reformas, as atitudes, a pedagogia e os comportamentos ganham... se houver amor. Tão simples (?) quanto isto! E, seja permitida a quase “intromissão”, Sebastião da Gama já o defendia (e praticava) há 60 anos, conforme está registado no seu Diário.
O que fica
1. “Todo o mal que se diz da escola esquece o número de crianças que salvou das taras, dos preconceitos, do desprezo, da ignorância, da estupidez, da cupidez, do imobilismo ou fatalismo das famílias.”
2. “O nascimento da delinquência está no investimento secreto de todas as faculdades da inteligência na astúcia.”
3. “Sempre encorajei os meus amigos e os meus alunos mais espertos a tornarem-se professores. Sempre pensei que a escola é feita, em primeiro lugar, de professores. Quem me salvou na escola, senão três ou quatro professores?”
4. “Ensinar (…) é recomeçar até ao nosso necessário desaparecimento como professores. Se não conseguirmos instalar os nossos alunos no presente do indicativo da nossa aula, se o nosso saber e o gosto de o levar até eles não pegarem nesses rapazes e nessas raparigas, no sentido botânico do verbo, a sua existência descambará para as fendas pantanosas de uma carência indefinida.”
5. “Um ano de escolaridade perdido: é a eternidade numa redoma.”
6. “Na sociedade em que vivemos, um adolescente instalado na convicção da sua nulidade (…) é uma presa fácil.”
7. “A presença dos meus alunos depende intimamente da minha: da minha presença na turma toda e em cada aluno em particular, da minha presença na minha disciplina, também, da minha presença física, intelectual e mental, durante o (…) que dura a aula.”
8. “Seja qual for a matéria ensinada, um professor descobre rapidamente que, para cada pergunta feita, o aluno interrogado dispõe de três respostas possíveis: a certa, a errada e a absurda. (…) Classificar [a resposta absurda] – na correcção de um teste escrito, por exemplo – é aceitar classificar seja o que for e, por conseguinte, cometer um acto pedagogicamente absurdo.”
9. “A nossa época assume deveres em prol da juventude: importa ser jovem, pensar jovem, consumir jovem, envelhecer jovem, a moda é jovem, o futebol é jovem, as rádios são jovens, as revistas são jovens, a publicidade é jovem, a televisão está cheia de jovens, a Internet é jovem, os colunáveis são jovens, os últimos baby boomers vivos souberam manter-se jovens, os nossos políticos acabaram por ter de rejuvenescer. Viva a juventude! Glória à juventude! É preciso ser jovem!”
10. “São as marcas que vos dão cabo do juízo, e não os professores! (…) Dão-vos cabo do juízo, do dinheiro, do vocabulário, e ainda do corpo, como um uniforme, transformam-vos em publicidade viva, como os manequins de plástico das lojas! (…) Se as marcas fossem medalhas, os adolescentes das nossas ruas tilintavam como generais de opereta.”
11. “Apresentar a escola como local criminogénico é, em si mesmo, um crime insensato contra a escola.”
12. “São infames aqueles que fazem da juventude mais desgraçada um objecto fantasmático de terror nacional! São a escória de uma sociedade sem honra que perdeu o próprio sentimento de paternidade.”
13. “Em vez de coleccionar e publicar as pérolas dos cábulas, que tanto divertem as salas de professores, devia escrever-se uma antologia dos bons professores. (…) Se, para além do retrato dos professores célebres, esta antologia apresentasse o retrato do inesquecível professor que quase todos nós encontrámos pelo menos uma vez durante a nossa escolaridade, talvez alguma luz nos iluminasse sobre as qualidades necessárias à prática deste estranho ofício.”
14. “Os professores passam o tempo a refugiar-se nos métodos, quando, no fundo, sabem perfeitamente que o método não basta. Falta-lhe qualquer coisa. (…) Amor.”

sexta-feira, 13 de março de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 96
Internet tem tudo? – O rapaz só gosta de futebol. A propósito de tudo e de nada, o futebol, especialmente o seu clube, é base para todas as sustentações. Com isto, distrai-se do essencial. Ler? Difícil para o que esteja para lá dos jornais desportivos… Recomendei-lhe um livro com uma história passada no universo do futebol: Desporto Rei, de Romeu Correia. Que o procurasse em biblioteca, porque já há muito tempo que não era reeditado. “Não faz mal, vou à net e faço uma cópia…”, disse-me orgulhoso com a solução. E lá está como se generalizou a ideia de que a net é a salvação de todas as almas! Não é, não. Absolutamente. Não tem tudo, não ensina tudo, não informa tudo. Expliquei-lhe e admirou-se. Ficou mesmo decepcionado com a revelação… Paciência!
Solidariedade – Aproximam-se no intervalo, dizendo que me querem falar. Era por causa de um amigo, colega de turma, que, argumentando querer curtir a vida, estava a transitar em caminhos um pouco esconsos: tabaco e outros fumos, agressividade nas respostas, descida na qualidade de trabalhos realizados na escola, um ar estranho e de solidão e álcool à mistura. Era a minha vez de demonstrar estupefacção… ou de comprovar aquilo de que suspeitava… “Mas tem que se fazer alguma coisa por ele, professor!” “Pois é, somos amigos e amigas dele e não gostamos de o ver assim.” “Lembrámo-nos de vir ter consigo, embora muitas coisas se passem fora da escola…” “Os pais dele não sabem, mas era melhor o professor fazer alguma coisa…” “Connosco, ele também já não liga e quer que o deixemos em paz…” E lá se parte para mais uma história em pedaços, engrenando na solidariedade e amizade dos colegas de turma. É o mínimo a fazer.
Língua Portuguesa – O tratamento que lhe foi dado pelo computador “Magalhães” é inacreditável. Não porque fosse impossível (não foi); não porque seja caso único. O semanário Expresso descobriu-lhe, nas instruções de actividades, 80 erros de ortografia, de acentuação, de sintaxe. Estas instruções eram para ser lidas por alunos. Não houve nenhuma tarefa de revisão linguística, que era o mínimo que devia ter sido feito. Incompetência a vários níveis, claro!
Vida – “A vida dos homens, a sua transformação, é rápida, vertiginosa; a da terra, a das coisas, leva séculos e dá-nos por isso uma impressão de eternidade.” (Américo Olavo, Na Grande Guerra, 1919).

sábado, 7 de março de 2009

António Barreto - mais umas dicas sobre leitura

A revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores), na sua saída mensal, é referência indispensável pela vida que dá aos livros, à leitura, à opinião e à cultura. O número de Março, o 78, já está nas bancas. E motivos de interesse não lhe faltam. Destaco a entrevista a António Barreto, figura de capa também, feita por Carlos Vaz Marques, num estilo em que a personagem (se) fala, (se) diz e (se) pensa. E, dela, sete excertos. Que são análise, leitura e conselhos.
Leitura online –O modo de leitura, a pausa, o sossego, a ponderação, a moderação, a reflexão, a nota, a posição pessoal, geográfica, física com que você lê jornais e lê livros, tudo isso está em vias de extinção, a benefício dessas novas formas que são mais rápidas, que seguramente proporcionam menos reflexão. (…) O que você lia no comboio, o que lia num sítio fora de casa, sem o computador na mão, o que lia voltando para a frente e para trás, escrevendo notinhas, escrevendo no canto dos livros, escrevendo num caderninho que tem ao lado, não creio que seja possível fazê-lo com um palm (…) ou com um laptop, onde tudo está feito para ter uma informação rápida. Com um telemóvel, você, hoje, já consegue ter inúmera informação: tudo sintético, tudo compacto, tudo resumido. Os sentimentos são resumidos, são condensados. As palavras, as frases, o discurso, a narrativa – é tudo cada vez mais concentrado. Porque já se está a viver de uma maneira diferente, a correr.
Ler –Ler implica ter uma vida para a leitura; que na sua vida tem de haver espaço para a leitura. Quando você já não tem espaço para a leitura, não é o cheiro [do livro] que vai substituir o que quer que seja, não é o objecto físico que conta.
Ler em Portugal –Os portugueses aprenderam a ler muito tarde. (…) Eu não tenho nenhuma crença mística nas nações, mas elas existem. Os povos existem. Há uma memória colectiva. Quando, na nação portuguesa, metade ou dois terços das pessoas souberam ler, isso aconteceu com mais de um século de atraso, pelo menos, em relação a países como a Inglaterra, a Dinamarca, a Suécia.
Escola e leitura, dantes –A escola foi uma ajuda muito madrasta da leitura, em Portugal. (…) Se não fosse a minha família (…) e se não fosse um ou dois professores cujos nomes mais de 50 anos depois eu recordo, a escola não me tinha ajudado. A escola do meu tempo não incitava à leitura. Os que gostavam de ler era por outras razões, não era por causa da escola.
Escola e leitura, hoje –Passaram 50 anos e, por razões diferentes, a escola hoje destrói a leitura. Seja com a análise estruturalista e linguística dos textos, seja pela ideia de que a escola tem de ser mais a acção e tem de ser mais projecto e mais mil coisas que fazem a nova escola. A leitura na escola é a última das preocupações.
MagalhãesDa maneira como o Governo aposta na informática, sem qualquer espécie de visão crítica das coisas, se gastasse um quinto do que gasta, em tempo e em recursos, na leitura, talvez houvesse em Portugal um bocadinho mais de progresso. O Magalhães, nesse sentido, é o maior assassino da leitura em Portugal. Chegou-se ao ponto de criticar aquilo a que chamaram cultura livresca. O que é terrível. É a condenação do livro. Quando o livro é a melhor maneira de transmitir cultura. Ainda é a melhor maneira. (…) O Magalhães (…) foi transformado numa espécie de bezerro de ouro da nova ciência e de uma nova cultura, que, em certo sentido, é a destruição da leitura.
Levar um jovem até à leitura –No essencial, chamar-lhe a atenção para o sentido, para a narrativa, para a história. É como o amor – ou o sexo, para ser mais bruto e cru: você sabe que os sentimentos amorosos e sexuais têm, algures, uma componente bioquímica. São uns produtos que se chamam feromonas ou lá o que é e que desencadeiam umas operações no cérebro, no hipotálamo, no sistema nervoso, mas não é isso que faz o amor. (…) Você não diz a ninguém: as minhas feromonas e as tuas… Não é isso que conta. O que conta é o sentimento, o ver, o beijar. Isso é que conta. É isso que se deve ir buscar à literatura, não a química.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Saúde na escola?

Helena Matos, no artigo "Lista de assuntos a discutir com paixão" saído no Público de hoje, sugere quatro temas para discussão, habituados que andamos a acaloradas discussões, apesar do frio, sobre assuntos da maior importância, correndo mesmo o risco de cairmos no rol dos "obscuros" se nesta discussão não participarmos... Humor, eu sei, que brinca com esta herança dualista de termos que ser uma coisa ou outra, isto é... progressistas ou reaccionários! Onde e há quanto tempo a gente já ouviu isto?
Que podemos então discutir, discutir, discutir? Segundo Helena Matos, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os direitos dos animais, a educação sexual nas escolas e a eutanásia. Tudo, tudinho, temas de suma importância para uma visão pessoal da vida, já sabemos.
Vou deixar três deles para essa discussão a vir ou que já vai andando por aí. Vou chamar para aqui, transcrevendo, aquilo que Helena Matos diz sobre a educação sexual nas escolas, uma coisa que deveria passar por cuidados mais evidentes na área da saúde, por exemplo, na educação para a saúde, com técnicos nas escolas para resposta. Recordo-me de, numa das escolas em que estudei e onde fiz o meu ensino secundário, haver o gabinete médico e de, de vez em quando, haver lá um técnico, provavelmente médico (não lembro bem), para responder ou aconselhar; recordo-me também de uma escola inaugurada há poucos anos, construída de raiz segundo um projecto que contemplava um gabinete médico, cujo Presidente da Comissão Instaladora da altura se teve que impor por ter recebido indicações no sentido de ocupar aquele gabinete para um outro fim, algo parecido com espaço de arrumações... A questão é que a saúde na escola - chamem-lhe educação para a saúde ou saúde escolar ou outra coisa qualquer - não tem sido muito contemplada, apesar de todos os problemas que esta civilização, por que também somos responsáveis, tem criado à saúde.
Vem isto a propósito do comentário de Helena Matos sobre educação sexual nas escolas, que faz todo o sentido e que, por essa razão, aqui reproduzo.
«(...) Os professores efectivos reformam-se em catadupa; começam-se reformas curriculares como a da Língua Portuguesa que ninguém sabe em quê e onde pára; a violência banalizou-se e chama-se agora a polícia para impor a crianças aquele mínimo de ordem que os professores e funcionários já não conseguem, não podem e também desistiram de tentar que exista nos estabelecimentos escolares; as alterações ao estatuto dos professores levaram a uma situação de bloqueio... mas nós, portugueses, se esta lista-propaganda funcionar, vamos discutir nos próximos meses, graças aos bons ofícios da JS, algo de tão importante e crucial quanto a educação sexual nas escolas. E como o que tem de ser tem muita força e a propaganda ainda mais força tem, será importante começarmos por perceber o que se entende por educação sexual nas escolas. Até agora tem vigorado nesta área uma perspectiva muito "Ciências da Natureza/funcionamento do corpo humano" que não satisfaz a JS e sobretudo aqueles que, através desta temática, pretendem fazer proselitismo ideológico nas escolas, tanto mais que se prevê que estes conteúdos passem a ser ministrados por membros de organizações não-governamentais que certamente da Opus Dei à Maçonaria se farão representar. Como é óbvio, não cabe no espírito libertador da JS que os cidadãos tenham outras opiniões sobre aquilo que realmente precisam na escola. Por exemplo, que achem que a Educação Sexual é um dos vários assuntos que os alunos poderiam ver abordados de forma muito mais eficaz por técnicos nos infelizmente desactivados gabinetes médicos das escolas. A população adolescente, que já não vai ao pediatra e ainda não vai ao médico de família, acaba por ter pouco acompanhamento clínico. Seria excelente integrar na rotina das escolas gabinetes com técnicos de saúde - e não activistas de ONG regra geral tão activos quanto incultos - onde os alunos, além de informações sobre planeamento familiar, doenças sexualmente transmissíveis e outras questões da sexualidade, pudessem também ser acompanhados de modo a detectarem-se distúrbios alimentares, problemas de crescimento, má audição ou os casos de abusos e maus tratos. Claro que nada disto em termos de propaganda rende o material telegénico de um Dia da Educação Sexual por período, como propõe a JS, mas como são os contribuintes que vão pagar tanto activismo, terá a JS de aceitar que alguns de nós tenhamos dificuldades em passar cheques em branco. (...)»

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

As histórias de Caidé, o cão que António Torrado contou

Chama-se Caidé e relata as suas memórias. É o herói de Caidé – Aventuras de um cão de sala contadas pelo próprio, obra de António Torrado que teve segunda edição em 1998 (Porto: Livraria Civilização Editora), quando passavam 15 anos sobre a sua primeira apresentação, com ilustrações de Manuel Mouta Faria.
A história, contada na primeira pessoa, leva o leitor a assistir às aventuras que Caidé lembra com prazer – “o mistério da mala desaparecida”, “o naufrágio do veleiro”, “à beira da glória”, “rei dos animais” e “cão prodigioso e o menino prodígio”, todas desenvolvidas em torno da personagem que as recorda, ora com humor, ora jogando com palavras, ora mostrando o mundo segundo um ponto de vista distante do dos humanos. “O meu livro é um registo de confidências (aliás, cão fidências). Tenho de ser sincero até ao fim, nem que pelo meio me custe um bocado.” Tal é a intenção inicial do narrador, mantendo-se fiel a uma pretensa escrita memorialística…
É um cão que vive com os seus donos. Domesticado. Que sabe viver na cidade, mas, no campo, a correr à descoberta da toca de um coelho, fica a olhar o perseguido, deixando-o ir embora por ter pena da história que lhe é contada… Conhece os jardins da cidade, participa em concursos de canídeos, põe-se ao serviço das crianças enquanto resgata brinquedos e posa para um retrato. Percebe os homens, mas age com as regras e as medidas do mundo dos cães – “A quinta do Doutor Aldo era muito maior do que o jardim público, defronte da nossa casa. Para aí umas quinze mijas mais, calculo eu. Para quem não souber, esclareço que mija é uma medida de comprimento de exclusivo uso canino. Os homens usam metros, léguas, milhas. Nós, mijas. Compreende-se. Quando virem um canídeo em posição selecta, a alçar a perna para uma árvore, não julguem que ele está só a aliviar-se das águas. Está também em cálculos de medição. Não o interrompam. Não o distraiam.”
As histórias correm, contadas com prazer. “Pelo-me por aventuras”, diz. Pelas suas aventuras, coisas insignificantes aos olhos dos outros, mas coisas importantes aos olhos de um cão, deste cão, de Caidé. Do lado de cá, o ouvinte ou o leitor estão sempre presentes, numa interpelação contínua – “Espero, no fim, os vossos juízos”. E o leitor sente-se compelido a seguir atento para poder ajuizar. Pelo menos, foi esse o desafio. Mas, no final, a conclusão é apresentada pelo protagonista – “Se, depois destas narrativas, alguma conclusão querem tirar, fiquem-se com esta: nós, os cães, somos todos uns heróis ao lado dos homens, de quem aprendemos a língua, as vontades e até os caprichos. Já era altura de os homens começarem a perceber-nos mais um poucochinho. O que é que acham?” E Caidé acaba o seu discurso.
Afinal, o pequeno cocker, que, no início, “dava tudo para ser um desses cães felizardos que passam o tempo a correr e a ladrar, de uma ponta à outra do écran da televisão (…), sempre a saltarem às canelas dos bandidos, a combaterem com ursos, a escalarem montanhas, a avisarem de fogos, a salvarem gente”, tem uma história recheada de acção, assente nas aventuras do quotidiano, grandes para um cão de companhia.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Uma questão de geografia (e de localização)

"A minha geração quer mais velocidade, quer chegar a Madrid no tempo em que agora chega ao Porto" - disse Duarte Cordeiro, líder da Juventude Socialista (citado na edição on line do Público).

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

A escola é muito mais do que a discussão que por aí tem andado...

Desidério Murcho. "Falta de educação?". Público: 23.Dezembro.2008.
[clicar sobre o texto para ler]