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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós juntos

 

Esculturas de Camilo Castelo Branco (Francisco Simões, no Porto) e de Eça de Queirós (Teixeira Lopes, em Lisboa)

Os últimos tempos têm andado de feição para Camilo Castelo Branco (1825-1890) e para Eça de Queirós (1845-1900), não fosse o trabalho da memória uma coisa que mexe com os povos e com a cultura...

Camilo veio à liça por causa de uma escultura no Porto, situada no largo que tem o nome de um dos seus mais conhecidos livros - Amor de Perdição. Há pouco mais de uma década, a obra de arte, assinada por Francisco Simões, foi ali colocada, mesmo em frente do edifício onde o escritor esteve preso. Os tempos passaram e um grupo de perto de 40 cidadãos apresentou documento a Rui Moreira, edil do Porto, a pedir a retirada da estátua por razões tão sublimes quanto o “desgosto estético” e a “desaprovação moral”... Pelo meio, discussão para muitos gostos chegando-se ao ponto de ter sido opinado que as duas figuras da escultura - Camilo e uma representação feminina - deveriam estar em jogo de igualdade: ou ambas nuas, ou ambas vestidas. E assim se discutiam os gostos e as ideias e outras coisas quase inomináveis. Rápido a decidir foi o presidente portuense que logo terá mandado recolher a obra de arte para os depósitos camarários. Rápido também foi o aparecimento de uma petição, com milhares de assinaturas, a contestar a decisão. E o presidente deu o dito pelo não dito e retrocedeu porque terá descoberto que, afinal, a estátua estava ali por decisão da Câmara, etc., etc. Mas, mesmo assim, Rui Moreira ainda veio escrever sobre o caso - no Público, de 18 de Setembro, lavrou o seu arrazoado: “Acresce que também eu tenho opinião. E, peço desculpa por o dizer assim, tenho uma legitimidade acrescida, porque presido ao município e tenho nas minhas mãos o pelouro da Cultura. Não sou especialista em estatuária, mas não gosto da estátua. Não por pudor ou moralismo. Felizmente, o nu e o erotismo fazem parte da arte, e estão presentes na cidade. Não considero aquela estátua erótica ou pornográfica. Apenas pornograficamente horrenda.”

É caso para dizer que mais teria valido não dizer nada, pois o emaranhado argumentativo esboroa-se por sua conta - o senhor tem opinião, acha que a sua opinião é agravada por ter a mão na cultura, não é especialista em estatuária, não gosta da estátua, não a considera erótica, mas acha-a “pornograficamente horrenda”. Isto é uma enciclopédia de saber, caramba! Só faltou a Rui Moreira dissertar sobre o conceito do “pornograficamente horrendo”, que deve dar uns bons quilos de prosa!...

Como quando se fala de Camilo também o nome de Eça salta para a ribalta, uns dias depois foi o turbilhão em torno da trasladação (ou não) dos restos mortais do autor de Os Maias para o Panteão Nacional. Eça esteve sepultado em Lisboa e, em 1989, foi trasladado para o concelho de Baião, onde se localiza a Fundação com o seu nome, instalada em lugar que ele tão bem descreveu e para o qual inventou um nome - Tormes.

É verdade que o Panteão honra e destaca. Mas qualquer cemitério é espaço de respeito e de honra - ali estão marcas de pessoas que fizeram vidas. Deverão os restos mortais de alguém andar ao sabor de momentos histórico-políticos? Pelos vistos, sim. O problema é que os contextos histórico-políticos variam e, 90 anos depois de falecer, Eça foi levado para Baião e, agora, passados mais cerca de 30 anos, querem fazê-lo regressar a Lisboa. Lá por Baião, um candidato derrotado a Presidente de Junta tem feito finca-pé quanto a mais esta viagem queirosiana, ajudando a que o caso seja um problema político e não uma questão cultural, alimentando a querela entre descendentes de Eça divididos quanto ao destino dos restos mortais (uns, pró-Panteão; outros, contra), mais discussões parlamentares e decisões judiciais pelo meio...

Eça e Camilo, lá por onde andam, devem rir-se a bandeiras despregadas destas diatribes caseiras que vão acontecendo... e que tão mal dizem da forma como encaramos a memória, que vai sendo algo para jogar quando dá jeito e pouco mais.

Deixe-se a estátua de Camilo onde está e fiquem os restos de Eça onde estão. Afinal, como se pode provar qual a facção que tem mais razão? Será que, nestas coisas da memória, também temos de andar a reboque dos “remakes”, das reconstruções, dos sabores de ocasião? Eça e Camilo estão condenados a andar juntos, por muito que alguns sobrevalorizem um ou outro - e, por estes dias, esse debate tem surgido de novo com adeptos ferrenhos da supremacia artística de um ou de outro. Na verdade, o que importa é que se conheça a obra dos dois e que as suas páginas sejam lidas, pois são bons retratos do que é ser português. Se assim fosse, talvez não tivéssemos de assistir a estes tristes espectáculos cheios de provincianismo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1154, 2023-09-27, p. 10 (acrescentado) 


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O monumento a Bocage e a “farpa” de Ramalho Ortigão



Ramalho Ortigão (1836-1915) e Eça de Queirós (1845-1900) formam o par que alimentou o projecto d’As Farpas - Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes (Lisboa: Tipografia Universal), conjunto de volumes de opinião iniciado em Maio de 1871 com um exemplar de 96 páginas e o custo de 200 réis, que durou até 1883 (nem sempre respeitando a periodicidade mensal), embora Eça só tivesse colaborado até Outubro de 1872 por ter ingressado na carreira diplomática (as suas crónicas foram reunidas em 1890 em Uma campanha alegre). 

Pel’As Farpas passou a crítica social, política, artística, religiosa, educativa, retratos de um Portugal pela lente dos que alimentaram a Geração de 70, de maneira a criticarem um certo marasmo. Os objectivos das crónicas com tão acutilante e cáustico título eram claros, como se pode ver logo no primeiro volume: “Leitor de bom senso - que abres curiosamente a primeira página deste livrinho -, sabe, leitor - celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil -, que foi para ti que ele foi escrito - se tens bom senso! E a ideia de te dar assim, todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra confusa dos factos alguns contornos do perfil do nosso tempo.” Recusando cumplicidade na situação, os autores decidem “apontar dia por dia o que poderíamos chamar o progresso da decadência”, recorrendo ao riso, ao humor, confessando: “não sabemos, talvez, onde se deva ir; sabemos de certo onde se não deve estar.”

É assim que o volume relativo a Dezembro de 1871 (publicado em Janeiro seguinte) refere a inauguração do monumento a Bocage ocorrida em 21 desse mês em Setúbal, cerimónia presenciada pelos dois amigos, Eça e Ramalho, que integraram a comitiva vinda de Lisboa.

O texto (que, em 1889, foi integrado no volume 9 de As Farpas, dedicado ao “Movimento literário e artístico”), devido a Ramalho Ortigão, é contundente, pois aproveita o facto de o Marquês de Ávila e Bolama ter presidido à cerimónia para o criticar, na sequência de várias acções ligadas à sua governação. Chega Ramalho a admitir que a presença desta personalidade na presidência da cerimónia era o contrário do que Bocage mereceria - na memória estava ainda a proibição da manifestação cultural que foram as Conferências Democráticas do Casino, ocorrida em finais de Junho de 1871, assinada por Ávila e Bolama, acto entendido como de censura, contrariando o espírito livre do poeta sadino - “Bocage é a contestação acerba e crua de todos os títulos que concorrem no sr. Marquês de Ávila e Bolama”, escrevia Ramalho, que também felicitava Setúbal pela iniciativa - “Setúbal levantou uma estátua ao poeta Bocage, pelo que se nos não oferece senão fazer os nossos cumprimentos a Setúbal” -, embora lamente também que, em vida, Bocage não tenha recebido da sua cidade “um ceitil para o livrar da penúria”.

A imagem do “arrependimento” que a terra-natal de Bocage possa ter tido ao pagar-lhe a celebridade com uma estátua serve a Ramalho para estabelecer o paralelismo com o papel de Ávila ao presidir às cerimónias desse 21 de Dezembro - “Setúbal, levantando uma estátua a Bocage, testemunha o seu remorso pelo que deixou de fazer. O Sr. Marquês de Ávila, inaugurando essa estátua, declara o seu arrependimento por aquilo que tem feito.” E, ironia das ironias: “Àquela cidade e àquele cidadão, os nossos parabéns!” Não se podia falar melhor do aproveitamento político da inauguração de uma estátua!...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 754, 2021-12-15, pg. 7


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Castilho e a estátua a Bocage



Data de 20 de Março de 1867 a longa carta que António Feliciano de Castilho (1800-1875) dirigiu aos “Presidente e Vereadores da Câmara, Notáveis e Habitantes em geral da ilustre Cidade de Setúbal”, tendo como motivo a construção de um monumento que lembrasse Bocage na sua terra-natal. Homenagear o vate sadino cerca de seis décadas após o seu falecimento ganhara entusiasmo depois de, em 1864, Manuel Maria Portela ter conseguido pôr lápide na casa onde teria nascido Bocage, acto que aproximou e entusiasmou António Feliciano de Castilho. 

O primeiro motivo dessa carta é o agradecimento do subscritor por a Câmara o ter designado presidente honorário da comissão promotora do evento em honra do “Cisne do Sado”, satisfeito porque “os Shakespeares, os Molières, os Schillers, os Cervantes, os Camões e os Bocages pertencem a este número de eleitos” merecedores de serem imortalizados pelo cinzel.

A valorização de Bocage prossegue pela aproximação a Camões - se este “regulariza e fixa, com o adjutório do latim, do italiano e do espanhol, a arte do escrever claro e culto”, aquele, “outro Messias literário, ofusca, dispersa, quase aniquila de todo a sinagoga arcádica.” Se ambos recorrem à milícia para servir a Pátria, vão para o Oriente, são encarcerados, assistem à crise social e morrem na miséria, também as vivências privadas são paralelas: “Amores: qual dos dois levará nisto a palma ao outro? Nem um nem outro é Petrarca para uma só Laura ou Dante para uma só Beatriz”, pois “não amam a uma formosa, enleva-os a formosura” e “a feminidade, sob qualquer forma ou nome, é o seu íman perpétuo.”

Feliciano de Castilho antecipa depois a festa que Setúbal promoverá aquando da inauguração do monumento a Bocage: “Daqui me estou eu deliciando a antever essa festa nacional! Toda a vossa cidade de gala; a capital visitando-a com inveja; a praça alcatifada de loiros e murtas; a música alvoroçando ainda mais os corações; os edifícios colgados de púrpura; os representantes do município em toda a pompa oficial e, a convite dele, as damas indo coroar de flores seu escravo agora rei.” O entusiasmo leva-o a sugerir a realização de outeiros poéticos, retoma de prática do tempo de Bocage, e a insistir na construção de uma “escola-asilo”, verdadeiro monumento ao poeta, o que levaria Setúbal a ser “uma cidade famosa”.

Uma semana depois, em 27 de Março, o executivo camarário respondia: “É esplêndida a maneira como V. Exª expressa os seus elevados conceitos; será modesta a nossa resposta, porque modestos são os nossos recursos.” No entanto, a mensagem de Castilho calara fundo nos decisores locais: “Aquela carta, Exmo. Senhor, devera ser lida em assembleia aonde concorresse o maior número possível dos conterrâneos de Bocage, se não fosse ainda mais útil dá-la à estampa e distribuí-la com profusão para que fique bem gravada na inteligência e no coração de todos e seja um poderoso talismã que avive mais e mais neste povo o amor às instituições humanitárias”. Dois dias depois, Castilho respondia a autorizar a publicação, numa curta carta em que também defendia o método de ensino que criara, apesar de saber que muitos o desprestigiavam.

As três missivas foram publicadas nesse mesmo ano sob o título Cartas do Exmo. Sr. António Feliciano de Castilho e da Câmara Municipal de Setúbal a respeito do Monumento a Bocage, impressas na Tipografia de José Augusto Rocha, em Setúbal.

O monumento a Bocage, na praça que já tinha o seu nome, foi inaugurado em 21 de Dezembro de 1871, com festejos, muito público e comitiva grande, que integrava nomes como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 688, 2021-09-08, p. 5


quarta-feira, 16 de junho de 2021

António Torrado, em histórias cúmplices


 

“Era uma vez...” um comboio, um risco, uma parede, um cacto, uma sílaba, um passaporte, um peregrino, um móvel, um sonho, um fio de luz, um repórter, um pinheiro. E assim podíamos ir juntando elementos, cada um deles dando origem a uma diferente narrativa, até perfazermos as sessenta histórias que compõem o livro Almanaque lacónico (Edições O Jornal), de António Torrado (1939-2021), ilustrado por Espiga Pinto, publicado em 1991.

O título logo nos conduz para dois vectores importantes: por um lado, a questão dos princípios essenciais; por outro, a concisão. De facto, António Torrado, que conhecia bem a obra queirosiana (para jovens e para o teatro adaptou alguns dos seus títulos), bem concordaria com o escrito de Eça datado de 1896: “O Almanaque contém essas verdades iniciais que a Humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que lhe não é benévola, se mantenha, se prossiga toleravelmente.” A esta característica, Torrado associou a brevidade na extensão das histórias, despertando a curiosidade do leitor pelo desenvolvimento de uma ideia que acaba por ficar mais pela sugestão, pela economia discursiva, para que o leitor navegue no que não é dito, assim reforçando com ele uma certa cumplicidade.

As histórias não têm título e todas começam por esse perscrutar de mistério dado pelo indicador temporal “era uma vez”, sendo depois apresentadas personagens - elementos do mundo das coisas (a maioria) ou representações humanas, sendo que, nas primeiras, raramente a identificação vai além do nome (frasco, duna, baluarte, corda, romance), enquanto nas segundas há necessidade de acrescentar modificador identitário (“homem que estava a urinar”, “homem que valia pouco”, “homem que ouvia foguetes”, “mulher que teve cinco filhos”, “criança particularmente dotada”).

Tão curtas histórias favorecem a prática aforística, preenchendo o espaço das explicações e demonstrações, desafiando o leitor para o conteúdo das tais “verdades iniciais” a que se referia Eça - “um pequeno risco pode transformar-se num grande risco, se não for apagado a tempo”, “aqueles que hoje cercam podem ser amanhã os cercados”, “as soluções de recurso são sempre ilusórias”, “as peças soltas da nossa vida nunca nos abandonam”, “não ser tomado a sério é uma das rubricas terminais na escala dos suplícios”.

Por estas histórias passam as referências que vão alimentando a humana forma de ser - o sonho, a ambição, a vaidade, o ilusório, a dúvida, o desgaste, o mistério, o amor, os dogmas, a fragilidade. Os enredos tecem-se de uma ironia requintada, muitas vezes formatados pelas histórias tradicionais e dominados pelo insólito das situações. São marcas destas que não deixam o leitor indiferente perante histórias como aquelas em que um escândalo é protagonista (levando a um suicídio a partir do 25º andar), em que Deus e um homem embatem num cruzamento (por desrespeito pela prioridade e numa explicação do destino), em que um robot trocou as asas por uma hélice (tendo um desfecho próximo do que sucedeu a Ícaro) ou em que uma menina perguntava aos burros que via se não seriam príncipes encantados (acabando por se inverter a sorte da pequena quanto ao encontro com um milagre).

Assim, Almanaque lacónico é constituído por histórias divertidas, curtas, intensas, na sua capacidade de desconstruírem ideias feitas, contribuindo para a descoberta de verdades que fazem a Humanidade.

OBS.: Há 20 anos, em Junho de 2001, integrando a Associação de Pais da Escola das Amoreiras, convidei António Torrado para vir à Escola. Foi uma sessão memorável de cumplicidade que criou com os alunos. Homenageá-lo é lembrá-lo e também continuar a ler as suas obras.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 643, 2021-06-16, p. 9


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

História(s) do Bairro de Troino

 

Em 10 de Janeiro de 1867, no Distrito de Évora, Eça de Queirós escrevia: “Na história, o povo deve ser tudo; as individualidades, pouco.” E justificava: “O que nós queremos saber é o espírito das gerações. O que a nossa curiosidade pede é ver como o passado compreendeu as coisas vitais da humanidade: a família, o trabalho, a educação, as instituições.” A questão relacionava-se com aquilo que era (é) designado por “história oficial”, versão de que Eça convidava a desconfiar.

Vem esta evocação a propósito do mais recente livro de história local dedicado a Setúbal, O Bairro de Troino - Contributos para a sua História, assinado pelos historiadores Diogo Ferreira e João Pedro Santos e pelo “troineiro” Eduardo Silva, que também patrocinou a edição.

A obra, fortemente ilustrada e sobre um acervo bibliográfico vasto, assenta em dois vectores: o primeiro, de investigação histórica, em cinco capítulos, apresenta a narrativa do bairro desde a origem toponímica, passando pela sua ligação e inserção na urbe, pela estrutura social, por episódios da resistência política do século XX e pelo património construído, e tem a assinatura de Diogo Ferreira e de João Santos; o segundo, de cunho eminentemente memorialístico, assente numa visão emotiva e vivida, traz o testemunho de Eduardo Silva, nascido no bairro no final da década de 1930.

O leitor pode assistir à evolução e papel daquele território na construção da cidade, desde o tempo em que era considerado um espaço mais ou menos marginal, de arrabalde, até ao momento em que se impôs como espaço privilegiado de uma comunidade ligada à pesca, chegando à identidade administrativa de freguesia, desenvolvendo-se industrial e comercialmente. Interessante se torna visualizar o “caleidoscópio social”, abordando as áreas profissionais predominantes e a sua identidade: a indústria do mar (o pescador e a sua comunidade, condições de vida, operariado conserveiro, construção naval - havendo espaço para um dos autores homenagear um seu antepassado que na construção de embarcações se destacou), o pequeno comércio (com destaque para a mercearia “Confiança”, hoje recuperada e funcionando como mostra musealizada, ou para espaços de convívio como os cafés, alcançando particular interesse testemunhal e evocativo o texto sobre os matraquilhos na “Taberna do Luciano”, devido a Paulo Anjos), a religiosidade (presente no historial e registo de vivências da festa de Nossa Senhora da Arrábida). Igualmente importante é o capítulo dedicado àqueles que foram incomodados por defenderem mudanças e ideias, sempre com a perseguição policial no seu encalço: de grevistas ou libertários a revolucionários ou heróis, os seus nomes saltam de uma consciência de classe e de humanidade com a qual nem sempre o poder concordou. Sobre o património arquitectónico, percebe-se que a Anunciada (freguesia a que pertence Troino) é rica de história e detém marcos que configuram a identidade setubalense, haja em vista referências como a igreja da Anunciada, a Fonte Nova, o Convento de Jesus, a Casa dos Pescadores ou o Orfanato Municipal, entre outros, em descrições que englobam a história e as histórias que lhes estão associadas.

Finalmente, a escrita mais memorialística de Eduardo Silva percorre muitos dos aspectos que forjaram a infância e juventude do autor, indiciando forte ligação ao bairro - por ali passa um sentido de pertença muito visível, a informação toponímica, os jogos infantis, alguns naturais do bairro que se têm destacado em diversas áreas, bem como diversas profissões entretanto desaparecidas.

Esta obra consegue aliar o que existe em anteriores investigações a novas histórias e juntar o rigor pretendido na informação histórica e a emoção dos que a escrevem, regendo-se por uma leitura acessível, levando o leitor a estar muito próximo do mundo e da história de que se fala.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 496, 2020-10-29, pg. 10.


quarta-feira, 22 de março de 2017

Hoje é o Dia Mundial da Água! E o velho Afonso sabia a importância dela...




"Afonso ainda ia longe, como ele dizia, de ser um velho borralheiro. Naquela idade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a pé, saindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na água fria. Sempre tivera o amor supersticioso da água; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem - que sabor de água, som de água e vista de água. O que o prendera mais a Santa Olávia fora a sua grande riqueza de águas vivas, nascentes, repuxos, tranquilo espelhar de águas paradas, fresco murmúrio de águas regantes... E a esta viva tonificação da água atribuía ele o ter vindo assim, desde o começo do século, sem uma dor e sem uma doença, mantendo a rica tradição de saúde da sua família, duro, resistente aos desgostos e anos - que passavam por ele tão em vão, como passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olávia, anos e vendavais."
Lembrar-se-á o leitor desta personagem, Afonso da Maia de seu nome, figura carismática do romance Os Maias, de Eça de Queirós, cuja primeira edição apareceu em 1888... Pois bem, Afonso, se real fosse e se ainda hoje vivesse, celebraria com garra este Dia Mundial da Água. Bendito Afonso! Sagaz Eça!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Nos 150 anos do "Diário de Notícias": um suplemento a ler (e a guardar)



Há 150 anos, no dia de hoje, saía em Lisboa o primeiro número do Diário de Notícias, assinalando como proprietários os nomes de Tomás Quintino Antunes e de Eduardo Coelho, também redactor. Tinha quatro páginas, textos curtos e sem título e um editorial que ainda hoje tem todo o sentido no que à coerência a imprensa deve – pretendia “interessar a todas as classes, ser acessível a todas as bolsas e compreensível a todas as inteligências”, queria afirmar-se por uma “compilação cuidadosa de todas as notícias do dia, de todos os países e de todas as especificidades, um noticiário universal” e prometia um “estilo fácil e com a maior concisão”, visando informar “o leitor de todas as ocorrências interessantes”. Na sua estrutura da primeira página, não fugia à tradicional supremacia da família real e da religião, os dois pólos que garantiam os primeiros textos – o primeiro, dizendo que “Suas Majestades e Altezas passam sem novidade em suas importantes saúdes”, uma não notícia que sossegava as preocupações; os seguintes, informações de teor religioso, fossem informações ou registos de efemérides; depois, informação sobre as férias natalícias dos tribunais. A seguir, um pouco de tudo, com destaque para algo que constituía marca do tempo, como a aprovação de orçamento para apoio a construção de via férrea em França.
Olhando para a edição do Diário de Notícias de hoje, dirigido por André Macedo, as quatro páginas passaram a quarenta, isto é, dez vezes mais, e se repararmos no suplemento, com 144 páginas, a proporção vai para 36 vezes mais.
O suplemento que hoje é publicado é um documento histórico para guardar, não sendo por acaso que lhe é dado o título de capa de “150 anos de Portugal”. Com efeito, um diário com a idade de século e meio será um bom repositório do correspondente tempo da história do país, tal como, no final do editorial desta edição de aniversário, escreve André Macedo: o jornal, bem como o seu director, servem “para defender um património que pertence aos leitores e ao país, sem esquecer os accionistas, sem os quais nada disto pode acontecer”.
Um suplemento para guardar… porquê? É verdadeiramente um suplemento festivo, por onde passa a história, a criação, o retrato, assente sobre três vectores: o assinalar de 50 efemérides, com curto registo a propósito; os dias da História de quinze escritores portugueses contemporâneos; ensaios, reportagens e entrevistas de 15 áreas temáticas.
Relativamente às efemérides, registam-se: nascimento do Diário de Notícias (29-12-1864), carta de Vítor Hugo ao jornal a propósito da abolição da pena de morte para crimes civis em Portugal (10-07-1867), Comuna de Paris (27-05-1871), Ultimato inglês (13-01-1890), morte da rainha Vitória (22-01-1901), regicídio em Portugal (01-02-1908), exposição pública dos Painéis de S. Vicente depois de descobertos na igreja de S. Vicente de Fora (06-05-1910), implantação da República (05-10-1910), fim da Grande Guerra (11-11-1918), assassínio de Sidónio Pais (14-12-1918), chegada de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral aos rochedos de São Pedro e São Paulo (19-04-1922), golpe do 28 de Maio (28-05-1926), chegada de Oliveira Salazar a chefe de Governo (05-07-1932), revolta na Marinha Grande (18-01-1934), início da Segunda Grande Guerra (01-09-1939), inauguração da nova sede do Diário de Notícias na Avenida da Liberdade (24-04-1940), exposição do Mundo Português (23-06-1940), rendição da Alemanha (07-05-1945), bomba atómica (06-08-1945), entrada de Portugal na ONU (14-12-1955), ataque de nacionalistas angolanos à Casa de Reclusão e ao quartel da PSP em Luanda (04-02-1961), conquista da Taça dos Campeões Europeus pelo Benfica (31-05-1961), queda da Índia portuguesa depois da operação Vijay lançada por Nehru (18-12-1961), assassinato de Kennedy (22-11-1963), incêndio do Teatro D. Maria em Lisboa (02-12-1964), centenário do Diário de Notícias (29-12-1964), eliminação de Portugal do Mundial de 1966 e lágrimas de Eusébio (26-07-1966), inauguração da ponte sobre o Tejo em Lisboa (06-08-1966), presença de Paulo VI em Fátima no que foi a primeira visita papal ao santuário (13-05-1967), chegada de Marcelo Caetano a presidente do Conselho na sequência de avc sofrido por Salazar (26-09-1968), chegada do homem à Lua (20-07-1969), morte de Salazar (27-07-1970), revolução “dos Cravos” (25-04-1974), “fim” do processo revolucionário em Portugal (25-11-1975), morte do Primeiro Ministro Francisco Sá Carneiro em desastre aéreo (04-12-1980), Carlos Lopes com medalha de ouro em Los Angeles (12-08-1984), entrada de Portugal na CEE (12-06-1985), eleição de Mário Soares como Presidente da República (16-02-1986), primeira maioria absoluta em eleições obtida pelo PSD com Cavaco Silva (19-07-1987), incêndio no Chiado (25-08-1988), derrube do Muro de Berlim (09-11-1989), libertação de Nelson Mandela (11-02-1990), início da Expo 98 com publicação do “Diário da Expo” a cargo do Diário do Notícias (22-05-1998), atribuição do Nobel da Literatura a José Saramago (08-10-1998), morte de Amália Rodrigues (06-10-1999), ataque às Torres Gémeas nova-iorquinas (11-09-2001), independência de Timor-Leste (20-05-2002), derrota de Portugal na final do Euro 2004 (04-07-2004), eleição de Barack Obama (04-11-2008) e morte de Eusébio (05-01-2014).
Os quinze escritores portugueses convidados a participar no dossiê intitulado “A que dia é que eu queria regressar?”, coordenado por João Céu e Silva, foram: António Lobo Antunes (n. 1942), sobre o dia em que soube do nascimento da sua primeira filha (22-06-1971); Afonso Cruz (n. 1971), sobre “hoje”; António Mega Ferreira (n. 1949), sobre o 5 de Outubro de 1910; Gonçalo M. Tavares (n. 1970), sobre o dia do assassinato do arquiduque austro-húngaro por Gavrilo Princip, que deu início à Grande Guerra; Hélia Correia (n. 1949), sobre a estreia de “Ballets Russes”; J. Rentes de Carvalho (n. 1930), sobre o dia do fim da Segunda Guerra Mundial (08-05-1945); Lídai Jorge (n.1946), sobre uma memória da infância, em 1954, 3m dia de nevão; Luísa Costa Gomes (n. 1954), sobre a inauguração do monumento a Cristo Rei (17-05-1959); Manuel Alegre (n. 1936), sobre a campanha de Humberto Delgado (31-05-1958); Maria Teresa Horta (n. 1937), sobre várias datas relacionadas com o feminismo; Mário de Carvalho (n. 1944), sobre a campanha de Humberto Delgado em Lisboa (16-05-1958); Mário Cláudio (n. 1941), sobre a sua data de nascimento (06-11-1941); Miguel de Sousa Tavares (n. 1952), sobre o desembarque dos Aliados na Normandia, em texto epistolar usando a assinatura de Salazar (07-06-1944); Nuno Júdice (n. 1949), sobre o dia da morte de Fernando Pessoa (02-12-1935); Valter Hugo Mãe (n. 1971), sobre o dia que constou como sendo o do fim do mundo (12-08-1978).
Relativamente à terceira área, em que se destacam alguns ensaios relacionados com a história e com o espólio do Diário de Notícias, é preenchida com os textos: “Um país de emigração maciça e baixa literacia”, de Manuel Villaverde Cabral; “Do censo dos 5 réis a um futuro com chips no bolso”, de Patrícia Jesus; “Antigos, porcos e maus: retrato passado menos que perfeito”, de Fernanda Câncio; “Quando o submarino Hunley afundou um navio da União e acabou a inspirar Júlio Verne”, de Leonídio Paulo Ferreira; “Eduardo Coelho, a vida dele dava um jornal”, de Ferreira Fernandes; “A caixa-forte dos seis milhões de mistérios”, de Artur Cassiano; “Títulos diários mais do que centenários”, de Abel Coelho de Morais; “A língua portuguesa como princípio e fim, numa universidade aberta ao mundo”, de Rui Marques Simões, incluindo entrevista com João Gabriel Silva, reitor da Universidade de Coimbra; “’Do prémio que lhe sair por sorte na extracção da loteria’ à crise que atinge a classe média”, de Miguel Marujo, com entrevista a Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas; “Torre do Tombo: Quase cem quilómetros para contar a nossa história”, de Maria João Caetano, com entrevista a Silvestre Lacerda, director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo; “Um ‘excesso de natureza’ talhado pelo homem com vista para o mundo”, de David Mandim, com entrevista a Manuel Cabral, presidente do Instituto dos Vinhos Douro e Porto; “A associação para funcionários, famílias e ‘credores de gratidão’ que se tornou o sexto maior banco”, de Céu Neves, com entrevista a Paula Guimarães, directora do Gabinete de Responsabilidade Social do Montepio Geral; “Eça de Queirós – De Port Said a Suez”, com reprodução das quatro crónicas ecianas de  1870 a propósito da viagem para assistir à inauguração do canal de Suez; “Caça à entrevista de Hitler pelas cervejarias de Munique”, de Ferreira Fernandes, com reprodução da entrevista de António Ferro a Hitler; desenhos de André Carrilho sobre o que será o mundo em 2164.
O suplemento finda com a reprodução do número inaugural do Diário de Notícias, que acrescenta mais uma razão às oitenta anteriormente indicadas para um assinalar interessante de uma efeméride que, mais do que marcar a longevidade, destaca o a função do jornalismo e da informação.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

"Eça agora" - nos 125 anos de "Os Maias"



A passagem dos 125 anos sobre a publicação de Os Maias, de Eça de Queirós (1ª ed., 1888), obra cuja presença no cânone português é indiscutível, constitui o pretexto para as releituras ecianas ou para leituras do país e da nossa contemporaneidade, na peugada de Eça.
Exemplo é o projecto do semanário Expresso, designado “Eça agora”, constituído por sete volumes: três deles reproduzindo a obra que se celebra; outros três apresentando ficções que continuarão Os Maias num percurso temporal até 1973 (em textos devidos a José Luís Peixoto, José Eduardo Agualusa, Mário Zambujal, J. Rentes de Carvalho, Clara Ferreira Alves e Gonçalo M. Tavares); o último divulgando esse estudo indispensável sobre a saga da família Maia, intitulado Introdução à leitura d’Os Maias, devido a Carlos Reis (1ª ed., 1978).
Um outro exemplo do destaque dado ao romance maior de Eça é a edição do Jornal de Letras – JL, de ontem (nº 1117, 24.Julho.2013), que revisita Os Maias, através de Carlos Reis (dando a sua experiência de leitor da obra, num texto de marcas pessoais, que o leva a considerar a sua releitura como “uma aventura sem fim”); de Kyldes Batista Vicente (universitária brasileira que reflecte sobre a recepção da mini-série que a TV Globo produziu a partir de várias obras de Eça); de Maria do Rosário Cunha (investigadora ligada à edição crítica d’Os Maias, que ajuiza sobre esse trabalho); de José-Augusto França (revelando o fascínio pela construção de uma personagem como Maria Eduarda); de Filomena Oliveira (analisando a versão dramatúrgica da obra, de que foi co-autora, com Miguel Real); de Carolina Freitas (no resultado de uma conversa com o realizador João Botelho, que vai rodar nova película sobre esta obra); de um painel constituído por Manuel Jorge Marmelo, Miguel Real, Nuno Camarneiro, Fernando Venâncio, Teolinda Gersão, Mário de Carvalho e Mário Cláudio, que se aventuram no gizar do que seria o plano ou o capítulo inicial da obra Memórias de um átomo, jamais escrita mas sempre prometida por João da Ega; de cinco dos seis continuadores d’Os Maias (não participa Gonçalo M. Tavares) do projecto do Expresso, que respondem a inquérito a propósito do trabalho em que se envolveram – destaco o testemunho de Clara Ferreira Alves, assumida como “queirosiana confessa, inabalável”, que revela a sua surpresa de cada vez que relê Eça e considera as personagens queirosianas como integrando a sua “família espiritual”.
No entanto, o título dado a este projecto, “Eça agora”, existe já desde 2007, ano em que foi publicado o romance Eça agora – Os herdeiros d’Os Maias (Lisboa: Oficina do Livro), obra colectiva devida a sete autores: Alice Vieira, José Jorge Letria, José Fanha, Luísa Beltrão, Mário Zambujal, Rosa de Lobato Faria e João Aguiar.
Obra forte, que conquista o humor eciano e critica fortemente os hábitos sociais do século XXI, nela, “herdeiros” são os autores, que seguem a via queirosiana, seja pelos reflexos evidentes dos incidentes com as personagens, seja pelo papel que essas mesmas personagens vão desempenhar na obra, seja pelo ambiente em que a trama vai acontecendo; “herdeiros” são as personagens, elas mesmas, intensamente marcadas pelos nomes, determinadas por um Afonso e um Carlos da Maia, decalcados do original, figuras que surgem rodeadas por outras que, pelas atitudes e pelas aproximações fonéticas aos nomes queirosianos, nos dão a aguarela em que assenta esta narrativa – João da Régua, Dodô Varinho, Damásio Malcede, Palma Cavalito, Além Mar, Maria Moncorvo, Maria Hermengarda, entre outras – nomes que se cruzam com a Lisboa e o Portugal contemporâneos, matizados nos partidos políticos, no Gambrinus, na Quinta da Marinha, nos concertos, em organizações como a Populus Dei, no periódico 48 horas, nos clubes desportivos, numa capital efervescente de socialite; “herdeiros” ainda pelas intenções, já que é evidente a crítica social e política sobre o momento em que a obra foi produzida, eivada de nomes que fazem lembrar os do “Contra-Informação”, como são exemplos Aristides Platão, “primeiro-ministro”, ou Procónio Guterros, Morcão Lamoso, Sanlopes Tana, Marcos Arquimendes, Luís Filipe Menelau ou o Dr. Saulo Cortas, ou mesmo o Presidente Vassilva Caco…
No final, como “delicada alusão”, Carlos da Maia e João da Régua vão apanhar o metropolitano e, enquanto se lamentam pelo facto de tudo continuar na mesma e verificam que “nada vale a pena”, decidem correr na gare rumo ao comboio que estava para partir. “Corre, que ainda o apanhamos!”, aconselhava João da Régua. E “saltaram degraus a quatro e quatro, entraram de roldão na carruagem de trás. O comboio pôs-se em movimento e desapareceu no túnel.”
Os sete autores, que foram construindo os seus capítulos na sequência do legado pelo autor anterior, em duas voltas (catorze capítulos, sem que nenhum tivesse sido autor de dois capítulos seguidos), juntam-se no fecho do romance (ou da telenovela), o “epílogo”, assumindo o estatuto de personagens que, numa reunião clandestina, têm um encontro com “um rosto humano, um rosto humano que eles conheciam de fotos antigas, de quadros e estátuas, um rosto afilado, com um monóculo entalado num dos olhos trocistas…”, Eça, ele mesmo. Eça, agora. Sinal de que se estava perante uma reunião de “herdeiros” de Eça. E a obra podia terminar.
No 125º aniversário de Os Maias, estas adaptações caucionam a actualidade de Eça de Queirós, indo muito além da citação em diferentes contextos e provando que a única alteração e actualização decorre dos cenários, originários da alteração da paisagem citadina ou social, porque o interior das personagens… ou, como o narrador de Os Maias acentuava no derradeiro capítulo, quando Carlos regressou do seu afastamento de uma década da capital, tudo permanece na mesma. Dê-se-lhe a voz: “Foram descendo o Chiado. Do outro lado, os toldos das lojas estendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados às mesmas portas, sujeitos que lá deixara havia dez anos, já assim encostados, já assim melancólicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas ombreiras, com colarinhos à moda.” Ainda por lá andam, 125 anos depois…

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Paulo Castilho, o património, a língua portuguesa, o inglês e o francês

O JL de hoje (Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1101, 12.Dez.2012) , na sua habitual rubrica "Diário", deixa que Paulo Castilho, escritor e diplomata, nos revele alguns dos fragmentos dos seus dias, em registos ocorridos entre 20 de Outubro e 28 de Novembro. Desse diário se retiram as observações que seguem, retrato sentido e verdadeiro da cultura que vamos perdendo e da cultura que nos vai colonizando... Ou a questão linguístico-cultural no centro da discussão, no mesmo momento em que outros dizem que a língua portuguesa significa quase 20 por cento do PIB! Sinais dos tempos, em que tudo se substitui por valores, mais-valias, investimentos, economias, rendimentos... Eis, então, uma mostra das reflexões de Paulo Castilho:

«O património cultural do nosso país, que nasceu há quase 900 anos, está em grande medida votado ao esquecimento e ao desinteresse generalizado, sobretudo quando se trata de literatura. (...) Namora, alguém o lê? Tirando o Eça, alguém lê os escritores do passado? E o Pessoa está transformado em 'celebrity', uma espécie de Paris Hilton das letras lusas, famoso, festejado, mas pouco lido. Quanto à língua,, vivemos na regra do desleixo e do vale tudo - incluindo o acordo ortográfico, que entre muitas outras calamidades, faz tábua rasa da origem latina da nossa língua. Mais um fenómeno de aculturação. É irónico que tenhamos agora de ir a outras línguas, como por exemplo o inglês, que é essencialmente germânico, para encontrar muitas das raízes latinas que deitámos fora nas nossas palavras. (...)
É uma pena que actualmente em Portugal se despreze o francês e já quase ninguém o fale ou leia. Foi e é a língua de uma grande cultura, ainda hoje com um movimento editorial de um enorme vigor, em muitas áreas superior ao inglês. Agora corremos atrás da língua inglesa e de tudo o que tenha um ar de Inglaterra ou de América sem nos darmos conta de quanto nos encontramos longe da mente anglo-saxónica. Não os compreendemos plenamente e eles não nos compreendem a nós e, na verdade, tendem a tratar-nos com alguma condescendência. (...)»

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Rostos (148) - Eça de Queirós




Eça de Queirós, em painel de azulejos de Nando (Fernando da Silva Gonçalves),
na Póvoa de Varzim

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Agora, que o ano lectivo está a começar... (2)

Desidério Murcho escreve no Público de hoje uma crónica interessante intitulada "Lavoisier e a Escola", que pode constituir motivo de reflexão para o que vai ou pode ser o contributo de cada um para alguma felicidade na escola (clicar sobre a imagem para ler).
A propósito da leitura de Os Maias, Desidério Murcho traz García Marquez, traz o seu tempo de estudante, traz o quão perniciosas foram as análises "formalistas", traz memórias de falsa literatura, traz a luta entre a paixão de ler e o desinteresse pela cultura... Esta história passa um pouco pelas memórias de todos e também todos nos lembramos do professor Keating (de O Clube dos Poetas Mortos) a aconselhar os alunos que rasgassem as páginas introdutórias de um manual escolar pelas "aberrações" que ali eram ditas, por pretenderem ensinar a "medir" a poesia presente num texto literário... Desidério Murcho foi buscar a leitura d'Os Maias, mas podia ter ido buscar a d'Os Lusíadas, em que muita gente perdia o gosto da leitura em favor do desgosto da divisão das orações... Obviamente, o que tem faltado no meio de tudo isto é o encontro com a razoabilidade, algo que tem que estar entre o prazer de ler e de imaginar e recriar e o estudo da construção de uma obra de arte, um bom desafio, de resto, para todos...

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Rostos (70)

Eça de Queirós e a Verdade, em Lisboa, no Largo Barão de Quintela

O monumento actual é réplica de um outro, em pedra, de Teixeira Lopes, inaugurado em Novembro de 1903, que foi levado para o Museu da Cidade [de Lisboa] devido aos sucessivos actos de vandalismo. Está legendado com uma máxima da obra queirosiana A Relíquia - "Sob a nudez forte da Verdade o manto diáfano da Fantasia". A homenagem a Eça resultou de uma comissão à frente da qual estava o Conde de Arnoso, mas a forma como o monumento foi encarado não se revelou pacífica, pois os costumes levaram contestatários a manifestarem-se contra o desnudamento, como o fez um leitor do Correio Nacional em finais de Novembro de 1903: "Achei aquela obra por tal forma provocadora e lasciva, que entendo ficar mal a uma cidade consenti-la numa das suas praças. (...) Uma mulher de peregrina beleza, quase nua e naquela posição de lascívia pode, se quiserem, representar a Verdade, mas essa Verdade é daquelas que nem o decoro nem a polícia permitem que se descubram e a seriedade exige que se tapem com pano mais denso que o véu diáfano da fantasia."

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

DIÁRIO DA AUTO-ESTIMA – 76
Sem resposta – No final de Janeiro, o Público noticiou que “dois terços das perguntas dos deputados ao Governo estão sem resposta”, explicando que, “desde 1 de Setembro do ano passado, os partidos fizeram 501 questões, mas o executivo ainda só deu resposta a pouco mais de um terço (169)” e que, “dos dois terços que ficaram por responder, 130 ainda estão dentro do prazo - 30 dias, como fixa o Regimento”. Mas, “descontadas estas, o Governo deixou definitivamente sem resposta, nos últimos quatro meses, duas centenas de perguntas feitas pelos partidos com assento parlamentar.” Mais acrescentava que, “nas duas sessões legislativas anteriores (Setembro de 2005 a Setembro de 2007), cujas estatísticas já estão fechadas, 1787 dos 6831 requerimentos apresentados ficaram sem resposta, o que equivale a 26 por cento.” Se a Assembleia da República tem capacidade para decidir pelos portugueses (e essa foi uma justificação apresentada para a ratificação do Tratado de Lisboa sem recurso a referendo), as perguntas saídas da Assembleia da República, independentemente do seu emissor e do seu destinatário, são também perguntas feitas pelos portugueses ou, se se preferir, cujas respostas interessam aos portugueses. Que respeito merecemos, pois?
Suspensão – Ainda relacionado com a Assembleia da República, o Correio da Manhã informou também que “quando ainda falta mais de um ano para o termo da actual legislatura, mais de metade da composição inicial de deputados na Assembleia da República já mudou”, pois “de um total de 230 parlamentares eleitos em Fevereiro de 2005, 117 já suspenderam o mandato e 37 abandonaram mesmo o Parlamento”. De que serve então aos partidos esforçarem-se por arranjar “cabeças de lista” que sejam convincentes para os eleitores? Como defendeu Manuel Alegre, em considerações sobre o assunto no mesmo jornal, deveria “haver um período de nojo” para os deputados que suspendem ou renunciam às suas actividades no Parlamento. O que está em causa é o prestígio da instituição, é verdade, mas também a confiança que as listas merecem aos eleitores. Vale a pena acreditar nas figuras em quem (também) se vota?
Clássicos – O semanário O Sol começou a editar uma colecção de autores clássicos da literatura portuguesa em versão adaptada para crianças. O primeiro dessa dúzia de títulos foi Os Maias, de Eça de Queirós, em adaptação feita por José Luís Peixoto. A ideia é simpática e insere-se numa tradição que no nosso país existe de captação do público infanto-juvenil para a leitura dos clássicos – bastará lembrar o êxito de adaptações feitas por Adolfo Simões Muller, por João de Barros, por Jaime Cortesão ou por Aquilino Ribeiro ou mesmo em banda desenhada por José Ruy, para só referir alguns exemplos rápidos –, mas a edição de Os Maias não é feliz em tudo: se o início da história e a descoberta de que a relação entre os protagonistas não poderia continuar devido ao incesto estão bem urdidas, o mesmo cuidado não houve no tratamento de algumas situações decorrentes do uso da língua portuguesa, como algum abuso na utilização pronominal, gestão difícil no uso de formas verbais e uma ou outra construção que não abona muito a sonoridade da língua – estou a lembrar-me da cacofonia em “tinha ouvido contar acerca dela e acerca do pai dela”. Tudo isto nos chama a atenção para a necessidade de a edição infanto-juvenil ser mais cuidada no que respeita ao tratamento da língua portuguesa, porque, como me escrevia há tempos um aluno, “se não formos nós a tratar da língua que falamos, quem a preserva?”

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Clássicos para as crianças - "Os Maias" adaptado por José Luís Peixoto

“Colecção de Clássicos da Literatura Portuguesa contados às Crianças” é um projecto de doze títulos com que o semanário Sol começou a fazer acompanhar a sua edição desde ontem, com a marca editorial da Quasi e ilustrações de André Letria. Os autores escolhidos são Eça de Queirós (Os Maias, A Cidade e as Serras e A Relíquia), Gil Vicente (Auto da Barca do Inferno), Júlio Dinis (A Morgadinha dos Canaviais e Os Fidalgos da Casa Mourisca), Camilo (Amor de Perdição e A Queda de um Anjo), Padre António Vieira (Sermão de Santo António aos Peixes), Fernando Pessoa (O Banqueiro Anarquista) e Almeida Garrett (Frei Luís de Sousa e Viagens na Minha Terra). As adaptações das obras estão a cargo de José Luís Peixoto, António Torrado e Ana Luísa Amaral (para Eça), Rosa Lobato de Faria (para Gil Vicente), Possidónio Cachapa e Francisco José Viegas (para Júlio Dinis), Pedro Teixeira Neves e Albano Martins (para Camilo), Rui Lage (para o Padre António Vieira), Clara Pinto Correia (para Pessoa) e José Jorge Letria e Rui Zink (para Garrett).
O primeiro título saído foi a adaptação de Os Maias, de Eça, por José Luís Peixoto. Logo à partida, fiquei com curiosidade quanto à forma como seria resolvido todo o tempo da história anterior ao aparecimento de Carlos já com a formatura médica e quanto à maneira como sairia a história no caso da relação incestuosa, tendo em conta o destinatário. O início da narrativa recorre ao modelo do “era uma vez”, contado de forma feliz, a cativar o leitor (ou o ouvinte): “Foi há muito tempo. Foi antes de tu nasceres, foi também antes de eu nascer, foi antes de os teus pais nascerem e mesmo antes de os teus avós nascerem. Foi no tempo em que as casas tinham nomes. Nesse Outono distante…” e começa a história com o regresso da família Maia ao Ramalhete. A estratégia seguida no que diz respeito ao destino dos irmãos Carlos e Eduarda minimiza os efeitos, pondo Carlos a partir para Santa Olávia logo que sabe da proximidade familiar entre os dois (que impossibilitaria a continuidade do relacionamento), numa sucessão rápida e sem considerandos. Depois, Ega põe Eduarda ao corrente da descoberta e esta decide "partir para Paris e nunca mais regressar”, enquanto Carlos opta por "partir numa longa viagem, onde visitou grande parte do mundo”. Não tão bem conseguido é o final, graças à mudança brusca do ritmo da história e à quase impossibilidade de ligação das situações – “[Carlos] voltou então a reencontrar amigos e regressou aos lugares onde a sua vida se decidiu, Santa Olávia e Ramalhete. / Desencantado, na rua, junto do seu grande amigo Ega viu um eléctrico. Disseram os dois: / ‘Ainda o apanhamos!’ / E apressaram o passo. (…)”
Se o projecto destas adaptações parece interessante (e, felizmente, em Portugal temos alguma tradição na adaptação de obras literárias clássicas para a juventude), a verdade é que, ao ler esta versão de Os Maias, me lembrei várias vezes do que, há dias, o Público noticiou quanto a um estudo sobre os cuidados que muitas vezes são relativizados no tratamento da língua nas edições destinadas ao público infanto-juvenil: não seria de evitar a cacofonia em “tinha ouvido contar acerca dela e acerca do pai dela”? não seria de haver uma revisão que levasse ao não abuso dos pronomes? não seria recomendável, por vezes (quando a narrativa refere dois acontecimentos do passado, não simultâneos), usar também o pretérito mais-que-perfeito (simples ou composto) em vez de apenas o pretérito perfeito para os dois diferentes momentos? não seria necessário um maior cuidado na utilização de tempos verbais, de forma a não ser alterada a lógica do discurso por uso indiferenciado de tempos verbais diferentes para um mesmo tempo da história [“Castro Gomes chegou do Brasil e foi imediatamente falar com Carlos sobre uma carta anónima que recebeu no Rio de Janeiro. Quando os dois se encontram, Castro Gomes leu-lhe a mesma carta (…).”]?
O projecto é interessante. Os autores têm créditos. Há curiosidade quanto às saídas encontradas para algumas obras na adaptação. As ilustrações dão boa nota do ambiente. Mas, já agora, um pouco mais de cuidado no tratamento da língua também é (era) esperado.