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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Joaquim Gouveia - Três perguntas para um universo de respostas



Desde 2011, Joaquim Gouveia, setubalense ligado ao jornalismo e a outras artes, tem vindo a publicar na blogosfera entrevistas com pessoas ligadas a Setúbal (por nascimento ou por adopção), a um ritmo de periodicidade variável. Escolheu para nome do blogue a designação “Gente gira da região”, sugerindo um misto de admiração, de beleza e de respeito, talvez porque seja isso mesmo que devemos ver em primeiro lugar em todas as pessoas.
Em finais de 2013, no Mercado do Livramento, Joaquim Gouveia expôs uma parte das entrevistas feitas até aí, mas o seu projecto prosseguiu e as conversas continuaram a ter lugar sob o céu de Setúbal, com aromas de Sado.
O modelo da entrevista tem-se mantido: as perguntas não se preocupam com a actividade actual do entrevistado ou com o seu estado, procuram perscrutar-lhe um caminho, encontrar linhas de pensamento, ainda que sem aprofundamento, mesmo porque o espaço para a escrita e para a leitura é o que é.
Dessas entrevistas, Joaquim Gouveia resolveu agora mostrar fragmentos daquilo que estes setubalenses pensam, na obra Como pensam os setubalenses (Setúbal: ed. Autor, 2014), enveredando por três áreas – o mundo, a crise, Deus. Uma centena de respostas é perfilada para cada um dos vértices deste triângulo, todas resultantes de momentos de reflexão súbita, proporcionados pela vertigem de uma entrevista, sem esboço ensaístico, sem análise de “prós” ou de “contras”, sem a medida das consequências do próprio pensamento. Primeiras ideias sobre um pensamento, sobre uma palavra, pois. Passos iniciais sobre algo com que todos nos confrontamos no quotidiano, na vida. Afirmações sem certezas, mas com a emoção de se olhar para o que rodeia este actor e agente que é o homem, que somos nós.
O mundo, o que se pensa do mundo? É sabido que todos olhamos o mundo em função do que somos e do que sentimos. Descobriremos coisas novas, absolutamente novas? Descobrimo-las para nós, mas elas já estavam lá antes da nossa descoberta. Olhamos o mundo pelos nossos prismas e ele é multifacetado. Escreveu algures o poeta José Fanha: “Que o mundo está todo do avesso já sabemos. Às vezes está do avesso para bem e outras para mal. Mas se resolvêssemos aparafusá-lo, deixava de rodar e isso é que não tinha graça nenhuma.” Assim, vamos achando graça ao mundo, isto é, vamos acreditando que podemos contribuir para que ele melhore, mas… o que sentimos depois de todo o esforço nem sempre é feliz! Perpassamos os olhos pelas respostas aqui presentes e elas não se distanciam do essencial da resposta de Fanha – sobrepõe-se, talvez, o tom do cepticismo, em que são valorizados os conflitos, as desigualdades, o (ir)respirável, à mistura com a constante dos recuos e dos regressos aos sonhos, com uma falta de reconhecimento do homem no mundo, com uma Europa que se desmorona (que o mesmo é dizer sobre as mudanças ou alterações de valores). A visão que os entrevistados apresentam do mundo, do planeta Terra em que habitam e com cuja organização convivem, não é feliz; é maioritariamente descrente, com um tom de decepção cuja responsabilidade é remetida para o ser criador que o homem poderia ser. Nostalgia do paraíso? Antes, talvez, a ideia de que o homem é pequeno para tanta coisa, apesar de ser latente a crença de que, como dizia Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos”…
E entra-se na segunda questão seleccionada: como se ultrapassa a crise? Ambígua, esta ideia de crise! Por isso, alguns entrevistados se questionam quanto ao tipo de crise – portuguesa, mundial, económica, financeira ou de valores? Associadas andarão elas, porque as crises podem ser plurais e universais. Mas é verdade que a tónica dos entrevistados caminha no sentido da humanização, isto é, do respeito pelo homem, ao mesmo tempo que ressalta a ideia de haver um certo artificialismo nesta ideia generalizada de “crise”. Poderíamos ir buscar muitas citações de outros que neste livro não entram, mas bastará a lembrança do momento em que um político afirmou ser a crise uma situação de oportunidade. Perguntaremos: de quê? O balanço que se faz das respostas não é assim tão promissor quanto o dos discursos políticos. Depois, há ainda a ideia de que a crise assenta sempre sobre os mesmos. E, aqui, convém ir pedir emprestada uma citação à escritora Dulce Maria Cardoso, que, numa entrevista, a propósito dos sacrifícios impostos em nome das mudanças, referiu: “Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar outros.” Esta rejeição surge porque o princípio parece real. Isto é: não sobressai das respostas dos entrevistados que a crise seja ultrapassada por meio dos sacrifícios impostos. Pior: não ressalta das respostas dos entrevistados que, no que diz respeito a Portugal, a crise esteja a ser gerida no sentido de ser ultrapassada. E, sem convicções, o homem, mesmo que o mundo pule e avance, não constrói a sua salvação…
Finalmente: Deus. A pergunta joga com ideias, sugere respostas, impõe-se: “Deus criou o homem ou foi o homem quem criou Deus?” Algo entre a fé e o “big bang”, algo entre a religião e a ciência. As respostas valem o que valem, porque as dúvidas também se mostram. Nas respostas apresentadas, há a fé, a crença, a prática religiosa, como há a falta de tudo isto. Um mundo e um tempo em que cada qual pensa a sua relação com o divino ou a falta dela. Permita-se-me que regresse à entrevista de Dulce Maria Cardoso, quando afirma algo de tão sensível e de tão religioso como isto: “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus torna essa espera menos dolorosa.” Pelas respostas dos setubalenses entrevistados passam mesmo as causas pelas quais (des)acreditam. Embora não tenham de resolver a questão, os entrevistados partilham razões, pensamentos, momentos de fé, porque, na verdade… Deus continuará a ser uma interrogação, independentemente do lado em que se esteja. Pensar em Deus implica um encontro do homem consigo, diálogo cujo resultado será inesperado. Confessou-o Jorge de Sena, ainda que pela poesia: “Senhor, não peço mais do que o silêncio do mundo, / o silêncio dos astros, o silêncio das coisas / que outros homens fizeram, e o das coisas / que eu próprio fiz. E o teu silêncio / de senhor que foi. Não peço mais. / Não é nada o que peço. Dá-me / o silêncio. Dá-me o que não fui: / silêncio (porque calei tanto): / o que não sou (pois que calo tanto): / o que hei-de ser (já que falar não adianta): / silêncio. / Senhor: não peço mais.” E, na mesma senda da poesia, a insubstituível Sophia de Mello Breyner retratou: “Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.” Será, porventura, na resposta a esta pergunta que mais diferenças existem nas respostas que ornamentam este livro. Mas esse é o preço que se paga pela coragem que todos assumiram ao tentar justificar Deus ou ao ensaiar o contrário. Seja como for, Deus e o homem passeiam-se pelas respostas…
Daqui para a frente, fique o leitor com um plural conjunto de argumentos, de opiniões, de pensamentos, de ideias. Com que pode concordar ou de que pode discordar. Mas que lhe hão-de suscitar o diálogo e a sua própria resposta. Depois, é consigo…
[Prefácio à obra]

quinta-feira, 25 de julho de 2013

"Eça agora" - nos 125 anos de "Os Maias"



A passagem dos 125 anos sobre a publicação de Os Maias, de Eça de Queirós (1ª ed., 1888), obra cuja presença no cânone português é indiscutível, constitui o pretexto para as releituras ecianas ou para leituras do país e da nossa contemporaneidade, na peugada de Eça.
Exemplo é o projecto do semanário Expresso, designado “Eça agora”, constituído por sete volumes: três deles reproduzindo a obra que se celebra; outros três apresentando ficções que continuarão Os Maias num percurso temporal até 1973 (em textos devidos a José Luís Peixoto, José Eduardo Agualusa, Mário Zambujal, J. Rentes de Carvalho, Clara Ferreira Alves e Gonçalo M. Tavares); o último divulgando esse estudo indispensável sobre a saga da família Maia, intitulado Introdução à leitura d’Os Maias, devido a Carlos Reis (1ª ed., 1978).
Um outro exemplo do destaque dado ao romance maior de Eça é a edição do Jornal de Letras – JL, de ontem (nº 1117, 24.Julho.2013), que revisita Os Maias, através de Carlos Reis (dando a sua experiência de leitor da obra, num texto de marcas pessoais, que o leva a considerar a sua releitura como “uma aventura sem fim”); de Kyldes Batista Vicente (universitária brasileira que reflecte sobre a recepção da mini-série que a TV Globo produziu a partir de várias obras de Eça); de Maria do Rosário Cunha (investigadora ligada à edição crítica d’Os Maias, que ajuiza sobre esse trabalho); de José-Augusto França (revelando o fascínio pela construção de uma personagem como Maria Eduarda); de Filomena Oliveira (analisando a versão dramatúrgica da obra, de que foi co-autora, com Miguel Real); de Carolina Freitas (no resultado de uma conversa com o realizador João Botelho, que vai rodar nova película sobre esta obra); de um painel constituído por Manuel Jorge Marmelo, Miguel Real, Nuno Camarneiro, Fernando Venâncio, Teolinda Gersão, Mário de Carvalho e Mário Cláudio, que se aventuram no gizar do que seria o plano ou o capítulo inicial da obra Memórias de um átomo, jamais escrita mas sempre prometida por João da Ega; de cinco dos seis continuadores d’Os Maias (não participa Gonçalo M. Tavares) do projecto do Expresso, que respondem a inquérito a propósito do trabalho em que se envolveram – destaco o testemunho de Clara Ferreira Alves, assumida como “queirosiana confessa, inabalável”, que revela a sua surpresa de cada vez que relê Eça e considera as personagens queirosianas como integrando a sua “família espiritual”.
No entanto, o título dado a este projecto, “Eça agora”, existe já desde 2007, ano em que foi publicado o romance Eça agora – Os herdeiros d’Os Maias (Lisboa: Oficina do Livro), obra colectiva devida a sete autores: Alice Vieira, José Jorge Letria, José Fanha, Luísa Beltrão, Mário Zambujal, Rosa de Lobato Faria e João Aguiar.
Obra forte, que conquista o humor eciano e critica fortemente os hábitos sociais do século XXI, nela, “herdeiros” são os autores, que seguem a via queirosiana, seja pelos reflexos evidentes dos incidentes com as personagens, seja pelo papel que essas mesmas personagens vão desempenhar na obra, seja pelo ambiente em que a trama vai acontecendo; “herdeiros” são as personagens, elas mesmas, intensamente marcadas pelos nomes, determinadas por um Afonso e um Carlos da Maia, decalcados do original, figuras que surgem rodeadas por outras que, pelas atitudes e pelas aproximações fonéticas aos nomes queirosianos, nos dão a aguarela em que assenta esta narrativa – João da Régua, Dodô Varinho, Damásio Malcede, Palma Cavalito, Além Mar, Maria Moncorvo, Maria Hermengarda, entre outras – nomes que se cruzam com a Lisboa e o Portugal contemporâneos, matizados nos partidos políticos, no Gambrinus, na Quinta da Marinha, nos concertos, em organizações como a Populus Dei, no periódico 48 horas, nos clubes desportivos, numa capital efervescente de socialite; “herdeiros” ainda pelas intenções, já que é evidente a crítica social e política sobre o momento em que a obra foi produzida, eivada de nomes que fazem lembrar os do “Contra-Informação”, como são exemplos Aristides Platão, “primeiro-ministro”, ou Procónio Guterros, Morcão Lamoso, Sanlopes Tana, Marcos Arquimendes, Luís Filipe Menelau ou o Dr. Saulo Cortas, ou mesmo o Presidente Vassilva Caco…
No final, como “delicada alusão”, Carlos da Maia e João da Régua vão apanhar o metropolitano e, enquanto se lamentam pelo facto de tudo continuar na mesma e verificam que “nada vale a pena”, decidem correr na gare rumo ao comboio que estava para partir. “Corre, que ainda o apanhamos!”, aconselhava João da Régua. E “saltaram degraus a quatro e quatro, entraram de roldão na carruagem de trás. O comboio pôs-se em movimento e desapareceu no túnel.”
Os sete autores, que foram construindo os seus capítulos na sequência do legado pelo autor anterior, em duas voltas (catorze capítulos, sem que nenhum tivesse sido autor de dois capítulos seguidos), juntam-se no fecho do romance (ou da telenovela), o “epílogo”, assumindo o estatuto de personagens que, numa reunião clandestina, têm um encontro com “um rosto humano, um rosto humano que eles conheciam de fotos antigas, de quadros e estátuas, um rosto afilado, com um monóculo entalado num dos olhos trocistas…”, Eça, ele mesmo. Eça, agora. Sinal de que se estava perante uma reunião de “herdeiros” de Eça. E a obra podia terminar.
No 125º aniversário de Os Maias, estas adaptações caucionam a actualidade de Eça de Queirós, indo muito além da citação em diferentes contextos e provando que a única alteração e actualização decorre dos cenários, originários da alteração da paisagem citadina ou social, porque o interior das personagens… ou, como o narrador de Os Maias acentuava no derradeiro capítulo, quando Carlos regressou do seu afastamento de uma década da capital, tudo permanece na mesma. Dê-se-lhe a voz: “Foram descendo o Chiado. Do outro lado, os toldos das lojas estendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados às mesmas portas, sujeitos que lá deixara havia dez anos, já assim encostados, já assim melancólicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas ombreiras, com colarinhos à moda.” Ainda por lá andam, 125 anos depois…

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

José Fanha veio à Escola

Hoje, foi dia de José Fanha na Escola. Já lhes tinha lido vários textos do poeta, designadamente de A porta (Alfragide: Gailivro, 2009) e de Diário inventado de um menino já crescido (4ª ed. Alfragide: Gailivro, 2009), excertos que mexeram com eles, na ondulação dos sentimentos e da leitura. Hoje, foi dia de José Fanha na Escola, uma década depois de aqui ter estado com Francisco Fanhais (em Junho de 1999) numa actividade que celebrava o 25º aniversário da instituição.
José Fanha veio à Escola com o Pedro Reizinho (setubalense, com dois livros infantis publicados, editor de obras de sucesso). Ouviram-no com atenção e participaram nos desafios. O poeta contou histórias, leu poemas (seus e de outros – de António Lobo Antunes, de António Ramos Rosa, de António Jacinto, de João Roiz de Castelo Branco, de Ary dos Santos, de Lawrence Ferlinghetti). E os alunos riram, ouviram, participaram. E Fanha aconselhou sobre necessidade de ler, de ler, de ler (e também de ter cuidado com as informações da net, muitas delas falsas). E houve palmas. E sempre poesia. E houve apontamentos biográficos – “Vou contar-lhes a história deste livro, de um jovem de um tempo em que não se mamava e não se comia a ver televisão”, a lembrança da avó, as pinturas do filho parecido consigo “30 quilos atrás”. E houve atenção e sorriso. E autógrafos. E alunos contentes e surpreendidos.
À noite, a mensagem de uma mãe (de um jovem que não é meu aluno) para o telemóvel: “Obrigada pelo momento proporcionado hoje na escola. O meu filho não pára de falar dos poemas, das histórias e da maneira diferente de as contar.” Ora ainda bem! A poesia faz disto: imiscui-se, infiltra-se e faz com que se manifestem. Com a ajuda do artista, claro! E o agradecimento vai direitinho para o José Fanha… Creio que muitos destes alunos recordarão com prazer o tempo em que estiveram no anfiteatro a ouvir literatura.

terça-feira, 26 de maio de 2009

A partir de "A porta", de José Fanha

1. “Que o mundo está todo do avesso já sabemos. Às vezes está do avesso para bem e outras para mal. Mas se resolvêssemos aparafusá-lo, deixava de rodar e isso é que não tinha graça nenhuma.”
2. “Uma pessoa só se perde se não souber para onde quer ir.”
3. “Não há que ter vergonha por chorar. Às vezes até é bom. Faz falta quando sentimos saudades de alguém, ou ouvimos uma música especial, ou estamos simplesmente tristes. Toda a gente chora ou já chorou. Mesmo os mais fortes, os mais valentes.”
4. “Há tantas coisas que nós fazemos porque sim ou porque não. Bem… Lá no fundo temos sempre uma razão, mesmo quando não sabemos qual é.”
5. “É bom que as paredes dos castelos sejam, por vezes, bem reais e sólidas, metade de pedra, metade de sonho.”
José Fanha. A porta. Alfragide: Gailivro, 2009.