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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

John dos Passos: entre a América, a Madeira e o Mundo


 

“Agora que cheguei à idade que ele tinha quando as escreveu, é possível que consiga ter a coragem de copiar delas o suficiente para que a sua figura sobressaia das sombras.” Olhar uma caixa de madeira, cujo interior guarda as cartas enviadas pelo pai nos seus últimos oito anos de vida, leva John dos Passos (1896-1970) a iniciar Os melhores tempos, memórias que finalizam na década de 1930, publicadas em 1966, traduzidas para português em 1968 (Editorial Íbis).

A história familiar parte da linha paterna - John Randolph dos Passos (1844-1917), abolicionista, advogado de sucesso em Nova Iorque, filho de Manuel Joaquim dos Passos, madeirense nascido em 1812, que “teve de abandonar Ponta do Sol muito à pressa, em consequência de um incidente relacionado com um crime de apunhalamento”, rumo a Baltimore, onde “trabalhou de chumeco”, passando depois para Filadélfia, aí constituindo família. Talvez a emigração do avô se devesse à fuga ao serviço militar e não ao que o neto invoca...

A primeira visita de Dos Passos à Madeira, em 1905, foi para se “restabelecer da operação a uma hérnia”. Instalado no Hotel Reids, o pequeno entregou-se “à tarefa de apanhar lagartixas para as domesticar”. Do Funchal, registou uma mistura de cheiros, entre o odor oleoso dos patins dos condutores dos transportes puxados por bois e o aroma das rosas e heliotrópios sentido nos “carros de vime em que deslizava pela íngreme calçada empedrada”.

A sua ligação à Europa intensificou-se durante a juventude e, na Grande Guerra, momento em que “a propaganda franco-britânica batia os tambores pela intervenção americana” e “odiar os alemães se tornou uma mania”, quis voluntariar-se para os serviços de ambulância na Frente, o que aconteceu em 1917, após o falecimento do pai, servindo em França e Itália. Por final da década de 1910, esteve em Lisboa - “Saí do país com uma impressão mais favorável da pintura portuguesa primitiva do que do governo republicano. Achei os políticos eloquentes e evasivos. O seu ar de benevolência ineficaz pôs-me o pêlo ao contrário.” Esta opinião poderia ser exagerada, mas Dos Passos justifica: “aos vinte e três anos, é-se intolerante”.

Em 1921, na companhia de Cummings, está de novo na Europa, numa viagem em que tentou decifrar Os Lusíadas e visitou os Açores e a Madeira. Portugal não entusiasmou Cummings: em Lisboa, “sentia repulsa pela exuberância do estilo manuelino” e disse preferir Rembrandt aos painéis de Nuno Gonçalves; em Coimbra, manifestou “uma fobia ancestral contra o catolicismo”, pois “os estudantes pareciam-lhe todos jesuítas à paisana”; no Porto, o tempo foi passado em busca de um dentista. Depois, Dos Passos viajou até ao Próximo Oriente, relato com dose substancial de aventura, que pintará também outros registos de viagem como a que fez pela Rússia.

Desde cedo, Dos Passos conviveu com os mais importantes autores, muitos dos quais, como Twain, Jiménez, Aragon, Valle Inclán, Machado ou Joyce, viria a conhecer, sendo o convívio com Cummings, Fitzgerald e Hemingway tema forte nestas memórias, aliando sempre o gosto de falar sobre eles, da sua relação com as obras lidas, do seu encarar o mundo através da arte, fosse pela escrita ou pela pintura. Importante também é o percurso ideológico, simultâneo com o seu conhecimento do mundo - a convicção contra o belicismo, a defesa de Sacco e Vanzetti, a desconfiança do regime soviético.

Em Os melhores tempos, o leitor acompanha intensamente o entusiasmo da juventude nas grandes causas assim como o percurso de uma Europa em busca da sua (re)construção.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 546, 2021-01-27, p. 9.

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Helena Marques: a vida, como a ilha, é um cais

 

Sobre o final da sua carreira jornalística no Diário de Notícias, publicou o primeiro romance, O último cais, obra premiada nesse 1992. Até 2010, mais quatro romances e um livro de contos constituíram a obra literária de Helena Marques (1935-2020, falecida há dias), que, na obra inaugural, trouxe um retrato da Madeira (a que estava ligada por razões familiares e por lá ter vivido) e da condição da mulher numa narrativa em que o amor e a morte caminham lado a lado.

O último cais conta uma história balizada entre 4 de Setembro de 1879 e 1904, iniciando-se com uma transcrição do diário de bordo da personagem Marcos, na costa de Moçambique em “fiscalização e repressão do tráfico de escravos” (como Raquel, a esposa, o apresentará mais tarde, ao defender o abolicionismo). O derradeiro capítulo, o décimo-terceiro, tem o título da obra, conjugação que implica um contacto próximo com o mar, com a viagem (real ou metafórica), ajudando na definição do que será viver numa ilha. Oito dos capítulos titulam-se com nomes femininos, cedidos por personagens da história, havendo três que tomam os nomes masculinos de outras tantas personagens, aspectos que valorizam a presença da mulher, por um lado, e o relacionamento entre personagens, por outro - surgindo uma família grande, com figuras modeladas exaustivamente, vincando-se a condição da mulher (na recusa de uma personalidade de Penélope) a partir do contributo de cada uma das personagens femininas do enredo.

Pelo romance passam o quotidiano (a vida nas quintas, as festas, o ambiente familiar, a relação com as criadas, a importância da casa) e as marcas dos tempos (a chegada do telégrafo, o aparecimento do fonógrafo, a presença estrangeira na ilha), a política (a libertação dos escravos em África, o tricentenário camoniano e os republicanos, o sufragismo) e a noção do que é a vida da família, nas suas aproximações e desencontros, “tecendo-se com o amor e a morte”.

As muitas referências literárias participam na definição das ideias e na caracterização das personagens: a garrettiana Maria, de Frei Luís de Sousa, ecoa na jovem Benedita, quando, aos quinze anos, expõe aos pais o seu “raciocinar como uma pessoa mais velha”; a relação amorosa de Maria dos Anjos e Xavier lembra  Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre; Raquel recebeu formação italiana, eternizando o afecto pela Divina Comédia, de Dante; a Bíblia é lida e interpretada criticamente; Luciana cruza-se com a flaubertiana Bovary, que a influencia; João de Deus é enaltecido pelo contributo da Cartilha Maternal; Clara aprende o inglês com as obras de  Lewis Carroll, não esquecendo as aventuras de Alice; o americano John dos Passos entra na história por uma relação familiar, merecendo um comentário irónico pelo seu quase esquecimento das memórias da Madeira; Marcos recorda-se de quando leu Guerra Junqueiro e das discussões sobre anticlericalismo com o cónego Nicolau.

A história, contada um século depois do diário de bordo que abre o livro, exige da narradora, herdeira de Carlota, frequentes recuos na narrativa, conciliadores dos tempos e das personagens. No final, Marcos está no “último cais”, como espectador, à espera da entrada no Paraíso. Assim, O último cais é o itinerário de uma viagem em múltiplos sentidos: no tempo, indo até aos ambientes do final oitocentista; na acção, em que se reconstitui a identidade de uma família; no “eu”, que busca permanentemente um sentido para a vida. Um romance em que a vida, como a ilha, é um cais.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 500, 2020-11-04, pg. 9.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Para a agenda - 250 anos de Bocage no mês de Janeiro



Eis Bocage, sobre quem se fala um pouco por todo o lado, não para contar as anedotas de que ficticiamente é protagonista, mas para evocar, relembrar e enaltecer, num trajecto que passa por Setúbal e pela Madeira. Eis o programa que ocupará o mês de Janeiro. Para a agenda.

sábado, 11 de outubro de 2014

Para a agenda - A descrição arrábida pelo Padre Inácio Monteiro



Uma Descrição da Arrábida pelo madeirense Inácio Monteiro. Um texto até aqui "desconhecido". Com o cuidado da revisão e da fixação de texto de António Mateus Vilhena e de Daniel Pires, em edição do Centro de Estudos Bocageanos. Na Biblioteca Nacional, em Lisboa, a ser apresentado por Miguel Real, depois de já ter sido apresentado no Funchal. Para a agenda!

terça-feira, 3 de julho de 2012

Memória: Jorge Figueira de Sousa (1931-2012)



Não conheci Jorge Figueira de Sousa pessoalmente. Conheci a obra dele, no âmbito do que é ser livreiro, através de pessoas amigas. Participei na “Carta de Gentes do Livro”, em Novembro passado, quando o blogue Encontro Livreiro promoveu uma homenagem ao livreiro madeirense, por dever de leitor, assinando a homenagem e levando outros a que o fizessem também.
Esperava tê-lo visto homenageado neste 10 de Junho, mesmo porque a carta assinada em Novembro apelava a instâncias e a figuras como o Presidente da República e o Primeiro-Ministro. Essa distinção no Dia de Portugal não aconteceu. Agora, o livreiro partiu. Qualquer homenagem póstuma será oportuna, mas podia ter tido mais oportunidade há uns tempos atrás. De resto, a revista Ler (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores), no seu último número, de Julho (nº 115), que não sei se ainda chegou ao conhecimento de Figueira de Sousa, lamentava a falta cometida no seu barómetro “Sobe & Desce” – “Homenagem – Apesar do abaixo-assinado, o livreiro da Esperança não foi distinguido no 10 de Junho. Devia.”
Umas páginas adiante, na mesma edição, Sara Figueiredo Costa faz reportagem sobre o livreiro do Funchal em pouco mais de duas páginas sob o título “O negócio dos Figueira de Sousa”, chamando a atenção para a “maior livraria de Portugal”, na rua dos Ferreiros, fundada em 1886, que redescobriu a originalidade de expor os livros mostrando-lhes a capa, não só das novidades, mas também das existências nos fundos bibliográficos, o que permite aos leitores (re)descobertas importantes.
Conheço várias pessoas que por esta livraria passa(ra)m, que ali começaram a formar as suas bibliotecas, que ali acorrem sempre que se deslocam ao Funchal. Todas me falam desse poder mágico, dessa energia que brota dos livros e que arrebata e faz leitores. Um sucesso devido também a Jorge Figueira de Sousa.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Nos 80 anos de Jorge Figueira de Sousa, o livreiro

O livreiro funchalense Jorge Figueira de Sousa completa hoje 80 anos de idade. De livreiro tem 65 anos, acrescidos dos genes e da história da livraria que mantém – “Tenho 165 anos de prática de livraria – 50 do meu avô, 50 do meu pai e 65 meus.” Parabéns!
Um caso. Sobretudo num tempo em que os livreiros escasseiam. Um caso. Que vale a pena partilhar e testemunhar. Em duas semanas, o blogue Encontro Livreiro promoveu uma exposição, dirigida a individualidades políticas várias reclamando a homenagem merecida para Jorge Figueira de Sousa, subscrita por leitores, livreiros, editores, tradutores, professores, etc. Entre os signatários, estão Marcelo Rebelo de Sousa, Viriato Soromenho-Marques, Miguel Real, Onésimo Teotónio de Almeida, José Agostinho Baptista, Maria do Rosário Pedreira, Pedro Tamen, Ernesto Rodrigues, José Tolentino Mendonça, Urbano Bettencourt e muitos outros. E dois nomes a não esquecer, pois foram eles o motor da iniciativa: Luís Guerra e Manuel Medeiros, um e outro com vidas dedicadas aos livros.
Até à meia-noite de hoje, ainda pode integrar este grupo… e ser mais um a felicitar Jorge Figueira de Sousa e o projecto da Livraria Esperança, no Funchal. Vale a pena participar nas homenagens das boas causas!

sábado, 12 de novembro de 2011

Jorge Figueira de Sousa, a homenagem para o livreiro

O Luís Guerra e o Manuel Medeiros arrancaram com a ideia. Que rapidamente alastrou. É uma “carta aberta” das gentes do livro, dirigida a personalidades da vida política portuguesa, chamando a atenção para a necessidade de ser homenageado o livreiro Jorge Figueira de Sousa, da Livraria Esperança (do Funchal), nos seus 80 anos, a acontecerem em 21 deste mês. O início da mensagem é a justificação desta lembrança:
«No próximo dia 21 de Novembro de 2011 o livreiro Jorge Figueira de Sousa, da Livraria Esperança - 'primeiro estabelecimento comercial no Funchal e na Madeira a vender exclusivamente livros' - completa 80 anos de vida.
Continuador de um sonho e de um projecto iniciado pelo seu avô, Jacintho Figueira de Sousa [1860-1932], e mantido pelo seu pai, José Figueira de Sousa [1899-1960], Jorge Figueira de Sousa, nascido no Funchal no dia 21 de Novembro de 1931, continua firmemente no seu posto e é para todos nós, 'gentes do livro', um exemplo de vida e uma figura que muito honra a classe profissional dos livreiros portugueses, por vezes tão esquecida, não obstante o lugar central que ocupa no que deveria ser um fundamental desígnio nacional: a promoção do livro e da leitura como alicerce de um País mais culto, logo mais justo, mais livre e mais feliz.»
Num tempo em que se deve defender o livro – porque assim se defendem muitas outras coisas – é pertinente que se valorize a dedicação a uma profissão em extinção (infelizmente!), é pertinente que se homenageie uma forma de exercer cultura.
Venha daí e associe-se à lista, que, no espaço de uma semana, já congregou uma centena de nomes, dos mais diversos sectores e do país inteiro! Jorge Figueira de Sousa, o livro e a cultura portuguesa merecem! Passe pelo Encontro Livreiro e torne-se mais um(a) do grupo!

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Madeira: funcionários dispensados para verem a tomada de posse do governo

Lê-se e não se sabe se se deve acreditar ou não… Por cá, por Portugal, no continente, fala-se do fim de alguns feriados, independentemente de serem civis ou religiosos. E os vários responsáveis mostram-se disponíveis para tal. E percebe-se, claro.
Por lá, pela Madeira – que é Portugal, note-se! –, o senhor Jardim liberta os funcionários na tarde de amanhã para assistirem à tomada de posse do governo regional! Exactamente, como consta na edição online do Público: «O despacho assinado por Alberto João Jardim determina a dispensa ao serviço, a partir das 14h de amanhã, dos trabalhadores dos serviços públicos e dos institutos e empresas públicas sob tutela do Governo Regional. A ‘tolerância’ é dada para “permitir aos mesmos assistirem, pessoalmente ou através dos meios de comunicação social”, ao acto solene marcado para as 17h, na Assembleia Legislativa da Madeira, com transmissão em directo pelo centro regional da RTP.»
Quem paga a boda? E tem Portugal – nós, todos, continentais, madeirenses ou açorianos, portugueses – de suportar estas “jogadas”, de suportar este hiperbólico fair-play como se nada estivesse a acontecer? Não há forma de impedir estas coisas? Só temos de aceitar, aceitar, aceitar e... olhar para o lado, suportando isto como mais uma do senhor Jardim?

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Do discurso de Jardim

O senhor Jardim voltou a garantir o seu lugar de presidente no governo regional da Madeira. O discurso de vitória foi confrangedor, mesmo com aquela rábula dos óculos que lhe faltavam… Leu o discurso – triste discurso – com as armas apontadas a Lisboa. Sem novidade. Continua igual a si mesmo…
Questiono-me como é que um homem que terá dito que se arrependeu de não ter feito ainda mais dívida, que chama vigaristas aos governantes nacionais, que lhes garante luta e oposição por uma Madeira que é a sua e não a portuguesa, que os acusa de facadas nas costas… continua a merecer a confiança político-partidária.
Não me venham com questões de estilo e outras que tais! É apenas uma questão de decência democrática e de respeito pelos portugueses, inclusive os madeirenses (todos os madeirenses, que é impossível que vejam o continente com o tom grotesco com que o senhor Jardim o descreve!); o que se lhe tem ouvido é tanga!

sábado, 24 de setembro de 2011

De dedo em riste para o Continente

O caso “Jardim – Madeira” continua a massacrar-nos. Em cada dia que passa, é dito o contrário do que foi dito no dia anterior… Ontem, era independência; hoje, já não era independência que queria dizer. É caricata a figura e tornamo-nos um país caricato a dar ouvidos a este tipo de oratória.
Já todos sabemos desde longa data o que é o discurso de Jardim, sempre de dedo em riste para os outros, para o Continente. Porquê dar-lhe cobertura? É tão inadmissível ter de suportar a telenovela jardinesca, como é inadmissível o silêncio que os governantes têm feito, ao longo dos anos, relativamente aos dislates que todos temos de ouvir deste senhor ou relativamente à dívida madeirense. Não temos de suportar a demagogia no seu estado mais larvar, com insinuações e ameaças de independência, com impropérios e tonalidades de insulto, não temos!
Pode o senhor ganhar eleições a rodos, pode o senhor gritar e apelar às emoções com a sua torrente discursiva… nada disso atesta a sua qualidade, a sua seriedade, o seu compromisso (que até podem existir); apenas fica certificada a falta de tempo para algum discernimento e respeito! Mas em democracia isso também é exigido!

domingo, 18 de setembro de 2011

Entre as bandeiras e os buracos

Na Ribeira Brava, Alberto João Jardim disse que omitiu 1113 milhões “em legítima defesa da Madeira”. E um buraco mais aí está, agora explicado com princípios de “engenharia”, em que a política põe e dispõe. Entretanto, há dias, lá para as bandas da Europa suprema, um responsável, o comissário Gunther Oettinger, alvitrou a hipótese de os países incumpridores verem a sua bandeira a meia haste, outra questão de “engenharia” da política.
Num e noutro caso, os factores comuns são o dinheiro e a independência. Ou a falta dos dois. E vai parecendo que a Europa, como nós, vai andando a conta-gotas, ao sabor dos dias, dependendo do artificial… Depois, só temos de nos surpreender (ou não) com estas “iniciativas” e… pagar umas e outras!
Que união é esta, afinal?

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Raul Brandão: de que cor são os Açores?

Em 13 de Maio de 1924, Raul Brandão escrevia a Teixeira de Pascoaes carta em que dizia: “Vou partir para Lisboa dentro de alguns dias e no dia 5 de Junho para os Açores (…). Conto demorar-me por lá dois meses e trazer notas para Os Pescadores e Os Lavradores e naturalmente um volume As Ilhas Desconhecidas sobre o Corvo, as Flores e o Pico.” Quando regressou, já datada da casa do Alto, de 7 de Setembro, Brandão enviava missiva ao amigo, rejubilando: “A viagem aos Açores foi esplêndida. Deve dar um livro interessante – quando eu o puder escrever.” (Raul Brandão – Teixeira de Pascoaes: Correspondência. Org.: António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano. Lisboa: Quetzal, 1994).
Dois anos depois saía, com efeito, As Ilhas Desconhecidas, conjunto de momentos e de retratos dessa viagem noticiada a Pascoaes, com registos datados do período entre 8 de Junho (a bordo do “S. Miguel”, rumo ao Corvo) e 29 de Agosto de 1924 (embarcado na Madeira para regressar ao continente). Na abertura, “em três linhas”, Brandão explica: “Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões. (…) Não poder eu pintar com palavras alguns dos sítios mais pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o desejo de os verem com os seus próprios olhos!...”
As notas reunidas por Brandão assinalam as emoções do viajante, mesmo aquelas que dão para reflexão sobre os mais caros temas ao homem, como a vida e a morte e a fronteira que as une – logo no primeiro capítulo, para descrever a fragilidade do barco, refere: “Toda a noite esta coisa complicada que é um transporte a vapor range pavorosamente como se fosse desconjuntar-se; toda a noite sinto a água bater no costado e a máquina pulsar contra o meu peito. A ideia da morte não nos larga: separa-nos do caos um tabique de não sei quantas polegadas.” O título do livro deixa adivinhar o que era o conhecimento destas ilhas na década de 1920 e todos os registos brandonianos caminham no sentido de anular esse desconhecimento, seja pelo tempo lá passado (longo, ainda que por causa dos transportes, cheio de minúcia e de descobertas), seja pela observação e chegada ao interior das pessoas e traçado dos elos que as ligam à paisagem.
As imagens das ilhas são surpreendentes – sobre S. Jorge: “Esta ilha esguia, que parece um grande bicho à tona de água, mostra-me no focinho penedos aguçados como dentes”; sobre o Pico: “uma nuvem branca e esguia cortou o Pico pelo meio e o cone sai da nuvem suspenso no ar por milagre” ou “está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial”; sobre as Sete Cidades: “as Sete Cidades é também a alma duma paisagem. As grandes paisagens que morrem a alguma parte hão-de ir ter… Deus colocou-a aqui, delicada e virgem, no fundo desta cratera tremenda, entre o fogo e o caos; rodeou-a de solidão e de montes; pôs-lhe à volta, para a defender, o mar”; sobre o Corvo: “O Corvo é uma democracia cristão de lavradores”; sobre as ilhas: “o espectáculo imenso que se desenrola diante de meus olhos atónitos dá-me impressão de que as ilhas nascem do mar e se vão formando à nossa vista pela mão do criador”.
As figuras humanas merecem um tratamento de proximidade, quer pelo relato das histórias de vida ouvidas, quer pelo tratamento das personagens pelo seu nome real, quase dando a impressão de que o narrador-viajante se integrara na família e se apropriara dos seus segredos. Outra coisa não seria de esperar de quem, a dada altura, estipula como princípio seu: “Aqui só uma coisa a fazer: não é olhar para fora, é olhar para as almas”. E é o mundo do trabalho, a dificuldade de viver, a comunidade, a solidão, a ligação da homem ao território, um conjunto de recursos da paleta humana ao dispor do observador.
Da paisagem açoriana sobressaem a cor, os campos, as quintas e jardins. Circulando no Faial, deixa-se cativar pela tonalidade das hortênsias para desabafar: “O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas devia ter uma estátua na ilha”. Aliás, esta preponderância das hortênsias e do seu azul-ferrete levá-lo-á a definir a cor açoriana – “o azul que enche a terra e nunca mais acaba e que é talvez o verdadeiro céu dos Açores”.
É um viajante sequioso de conhecimento e de contemplação que se vai conhecendo a si próprio até ao ponto de dizer, inebriado pela maravilha e sensibilizado: “Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente”. Esta ideia de infinito, de resto, perpassa várias vezes e, conjugada com o deslumbramento que sente pela riqueza dos caracteres humanos – haja em vista o capítulo sobre a caça à baleia ou aqueloutro em que fala dos pescadores, por exemplo – o viajante nestas ilhas deixa-se arrebatar: “Oh! Quem me dera ser patrão dum barco e ir de ilha em ilha abicar aos portos, de barrete azul adebruado de vermelho na cabeça e a mão no leme”…
À Madeira dedica Brandão capítulo curto, em que, apesar de apreciar a cor, mais quente, lhe fica a sensação dominante de algum desconforto – “Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo o que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado para inglês ver e abrir a bolsa.” Esta conclusão servir-lhe-á para um retrato social impiedoso dos madeirenses: “Cada vez se cava mais funda a separação entre as classes chamadas superiores e as outras. O que se faz neste país é um crime que havemos de pagar muito caro”. Em causa estavam também conceitos de turismo, entre a familiaridade e a indústria que começava a ser: “Detesto o turismo e adoro a hospitalidade. (…) Uma nação não deve ser um hotel – e Deus nos livre que o seja!”
Apesar desta sensibilidade na apresentação do que eram as “desconhecidas” ilhas, Brandão não se consegue desviar do seu estatuto de visitante. Ainda em S. Miguel, no início desse Agosto, escreverá: “Devo dizer que já me cansa um pouco e que anseio por outra luz… Começo a ter saudades do velho muro do meu quintal, tostado do sol, onde se criam as sardónicas, os líquenes amarelos e rosados, e até mesmo as pedras amadurecem como as uvas!...” E o relato desta viagem terminará com essa homenagem à luz, quando, já na bacia de Cascais, fotografa: “a luz irrompe, uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas e vem direito a mim como uma flecha de oiro. No céu imenso e livre, o sol bóia como num grande fluido. Portugal!...”
O que entusiasma na escrita de Brandão é essa multiplicidade da cor, fortemente matizada, intensamente definida, algo que decorre de uma escrita que navega sobre a sensibilidade. Como António M. B. Machado Pires referiu no prefácio de As Ilhas Desconhecidas (Col. “Obras Completas de Raul Brandão”. Lisboa: Editorial Comunicação, 1987), “Raul Brandão era um emotivo, no que esta palavra, de semântica vaga, quer significar de predomínio das primeiras impressões e sentimentos sobre a elaboração cerebral, uma espécie de ‘matéria-prima’ de sentimento, ‘em bruto’, passada ao papel: assim escrevia principalmente Brandão.”

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“As figuras horríveis da vida e do inferno não são as atormentadas – são aquelas cujos traços se esquecem.”
“Nenhum sonho se chega a concluir – o sonho não cabe no mundo.”
“A exuberância, quando é impetuosa, fica a dois dedos da destruição.”
“O mar é a vida – mas o mar é também a imagem da realidade ou do inferno, que é tudo a mesma coisa.”
“Quem pode acreditar na morte, no frio horrível e eterno, diante da natureza que nos estende os braços cheia de flores e de perfumes em pleno inverno?”

domingo, 1 de março de 2009

Rostos (111)

Monumento aos "carreiros", no Funchal (Monte)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Minudências (30)

Bizantinices
Não tenho a certeza se o deputado José Manuel Coelho, que integra a Assembleia Legislativa da Madeira pelo Partido da Nova Democracia, tem razão nas observações que fez sobre os homens do PSD regional quanto à forma de relacionamento com os outros, com os opositores políticos. Mas sei que o gesto de lhes chamar "nazi-fascistas" e de coroar o atributo com o desfraldar da bandeira nazi em plena sessão não tem justificação, quer pelo que o qualificativo implica, quer pelo acto propagandístico associado à exibição do símbolo. Para esquecer. E também para lembrar que a política só vale quando é um gesto de nobreza. Lamentável!

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Rostos (94)

"Luís de Camões lê Os Lusíadas a D. Sebastião", em painel de azulejo alusivo à época
de D. Sebastião, por Alberto Cédron, no Jardim Tropical do Monte (Madeira)

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Rostos (88)


Vendedoras (azulejos de 1940, da Fábrica Battistini, pintados por João Rodrigues),
no Mercado dos Lavradores, no Funchal

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Rostos (79)

Painel alusivo a D. João II (parte), no Jardim Tropical do Monte, na Madeira, por Alberto Cédron
(o acontecimento retratado ocorreu em Setúbal quando corria o ano de 1484)

sábado, 10 de maio de 2008

Máximas em mínimas (26)

Encontrar o silêncio
"Está na sabedoria muda, incomunicável. está na pergunta simples e na resposta impossível. Na espuma que se forma contra o costado de um navio em alto mar. É um prémio de consolação, um privilégio como quando andamos a altas horas numa rua deserta. Há silêncio no desânimo e quando temos frio, muito frio. Há ruído nas evidências, silêncio no seu desprezo. Nas mais obscuras paixões e nas súplicas que as alimentam. Há silêncio nas fábulas onde os animais, porque sabem muito, só dizem o que é preciso e decisivo. Quando se vai ver um filho preso ou a mãe morta. Quando no metropolitano se ouve o violino de um refugiado da fome ou de um cego e um senho de gravata deposita uma moeda sem se baixar um pouco. Há silêncio nos cais de embarque. Há sossego quando se morre tarde; ruído, agitação e lágrimas quando se morre jovem.
O silêncio está na véspera e no dia seguinte. Na confidência e na conspiração. Na sumptuosa sombra de uma árvore antiga e quieta quando há calor e ervas pobres ondulam à nossa volta. No alto voo dos pássaros e numa casa em ruínas. Está na rotina e na grande ambição. No pasmo e no desaire. No vício quando é grande e na virtude quando é imensa.
Há silêncio na voz dos vagabundos, na sua muda heresia. Há silêncio quando algum desistente pára a meio do mais alto aqueduto da cidade. Há silêncio na astúcia, na tenacidade e no desgosto. Há silêncio no primeiro botão apertado da tua blusa."
Fernando Gandra. O silêncio como problema (peregrinatio ad loca utopica), 2008.
[foto: desde Seixal, Madeira]

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Rostos (45)

O homem do vinho, em Porto da Cruz (Madeira)