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quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Como Jorge Ginja levou Mário Viegas e a poesia para a guerra



Em finais de 1968, o portuense Jorge Ginja (1940-2020) e o escalabitano Mário Viegas (1948-1996) conheceram-se no Teatro Universitário do Porto. A ligação comum ao teatro e à poesia foi responsável por um gesto que se manteve guardado durante meio século. No ano seguinte, o médico transmontano foi convocado para o serviço militar, com partida para Cabinda (Angola) no início de 1970 como oficial médico. Provavelmente, terá levado livros consigo, mas o que de certeza transportou foi quase meia centena de textos ditos pela voz de Mário Viegas, encadernados em bobine, além do respectivo aparelho leitor, claro.

Foi em 1969 que Jorge Ginja pediu ao amigo que gravasse esse conjunto - 47 poemas e 2 textos dramáticos - para os levar consigo para o cenário da guerra colonial. Em 2021, Catarina Ginja e Pedro Ginja decidiram partilhar essa memória, reunindo em livro os textos gravados e passando para cd os sons das fitas, num trabalho em que estiveram também envolvidas a livraria portuense In-Libris e a Direcção Regional de Cultura do Norte, editoras da obra, assim nascendo Voz Própria - Jorge Ginja e Mário Viegas - Poesia, Resistência e Liberdade.

Em nota introdutória ao livro, Manuela Jorge refere que a selecção dos textos coube a Jorge Ginja - “Recordo-me muito bem de me ter dito que ia marcar poemas nos seus livros e levar o Mário Viegas a casa da mãe, para gravarem os poemas que queria levar para a guerra.” No prefácio que assina, Manuel Alegre admite como “possível que Mário Viegas tenha sugerido alguns textos”. Temos assim uma antologia lida e dita, construída por dois nomes que partilhavam o gosto da representação e da poesia, mas também das ideias.

Entre os poetas representados, constam: Gastão Cruz, Guerra Junqueiro, José Gomes Ferreira e Sebastião da Gama (todos com um poema); António Gedeão, Armindo Rodrigues, Joaquim Namorado, Pablo Neruda e Vinicius de Moraes (dois poemas); Bertolt Brecht (quatro poemas); Ary dos Santos e Manuel Alegre (sete poemas); Alexandre O’Neill (quinze poemas). Os textos dramáticos devem-se a Máximo Gorki (excerto da peça “Pequenos Burgueses”) e a Anton Tchékhov (“Os malefícios do tabaco”).

Em tão vasto leque, consegue o leitor-ouvinte encontrar pontos fortes como: a força da palavra; o encorajamento e o incentivo à acção; a denúncia da guerra e da prisão; a ironia; o triângulo da emigração, do exílio e do longe; a ausência; a liberdade; a partilha e a busca da paz. E percebe-se o que seria a proximidade de ideias entre os dois amigos que recriaram a poesia, como se entende o subtítulo escolhido para o livro: desde a liberdade cantada por Armindo Rodrigues (“Ser livre é querer ter um rumo / e ir sem medo”), à memória de Manuel Alegre no dia de aniversário na prisão em Maio de 1963, à indignação do soldado por uma guerra que não dava sinais de paz nas palavras de Brecht, à ironia de Ary na descrição de um “país de luz” e de “pus”, para concluir no manifesto da personagem tchekhoviana - “Só apetece fugir não se sabe para onde” e deixar “esta vida estúpida e banal, esta vida medíocre, que fez de mim um deplorável pateta”.

A recolha dos textos, em obras publicadas entre 1885 e 1969, segue o critério dessa afirmação dos dois amigos. E, na voz de Viegas, então com 20 anos, percebemos já o fulgor do artista que era. Este livro é de antologia! Pela beleza do objecto, claro. Mas sobretudo pela poesia, pelo pensamento, pela arte, pela memória, pela história que o criou!

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 763, 2022-01-12, p. 9.


domingo, 15 de setembro de 2019

Bocage, 254 anos hoje


Bocage, em estore de estabelecimento comercial no centro de Setúbal

AO MEU FALECIDO IRMÃO MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

Meu sacana de versos! Meu vadio.
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.

Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio
têm joanetes culturais na tola.

Que diria Camões nosso padrinho
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?

O que me vale é que não estou sozinho
ainda se encontram alguns pés de linho
crescendo não sei como na estrumeira!


José Carlos Ary dos Santos. VIII Sonetos, 1984 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Para a agenda: Setúbal celebra 80 anos de Ary dos Santos



Ary dos Santos, autor de poemas fortes de intervenção, completaria 80 anos neste mês de Dezembro. A efeméride vai ser assinalada pela Casa da Poesia de Setúbal numa sessão a ocorrer em 7 de Dezembro, pelas 18h00, na Biblioteca Municipal de Setúbal, em que intervirá Maximiano Gonçalves, que testemunhará sobre o seu convívio com o poeta. "As Portas que Ary Abriu" é o título da sessão, inspirado no título de Ary As Portas que Abril Abriu. Para a agenda!

sábado, 14 de outubro de 2017

Lendas e histórias tradicionais que se ouviram em Setúbal ontem




O final do dia de ontem foi passado no MAEDS (Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal) no encontro “Entre contos e lendas, uma viagem pela memória e pela literatura oral e tradicional”, orientado por Sara Loureiro e Joaquina Soares, com a participação de um grupo de contadores-leitores de histórias do Montijo (Fernanda Quintino, Graciete Correia, João Barbosa, João Jacinto) e de um grupo de músicos e cantadores (Alfredo Dias, Francisca Dias, Helena Queiroz).
Foi mais um encontro do programa “Sextas - Arte e Ciência”, promovido pelo Synapsis. Sala repleta, fantasia imensa, encontro com a memória e com a identidade em dose elevada.
Por ali passou a curta história do património imaterial da Humanidade, as imagens sociais na literatura oral (de que foi exemplo mais prolongado o estudo de Joaquina Soares sobre “A Imagem da Mulher na Literatura Oral do Torrão”, já publicado em 1986), o valor dos contos e das lendas. Por ali passaram narrativas e música, vozes e emoções. Por ali circulou literatura oral e tradicional à mistura com poema “Tempo da Lenda das Amendoeiras”, que Ary dos Santos publicou em 1964.
Deliciou-se o público com as histórias de “Pedro Malas Artes”, “O Regresso do Noivo Guerreiro”, “Conde Varão” e a “Lenda das Amendoeiras”, ao mesmo tempo que as vozes se encontraram em músicas populares como “Ó Laurindinha vem à janela”, “Os olhos da Marianita” e “Menina estás à janela”.
Foram momentos de encontro com a identidade e com as raízes. De alegria e de emoções. Muito bom!

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Setembro, mês de Bocage (8)



"Ao meu falecido irmão Manuel Maria Barbosa du Bocage", de José Carlos Ary dos Santos
(Poema publicado na obra VIII Sonetos, em 1984 - reproduzido na Obra Poética - Lisboa: Edições Avante, 1994)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sebastião da Gama e Ary dos Santos num encontro através da poesia

É possível que Sebastião da Gama e José Carlos Ary dos Santos se tenham encontrado em Vila Nogueira de Azeitão variadíssimas vezes. Com efeito, Ary dos Santos visitou frequentemente Azeitão, de onde sua mãe era natural.
Nascido em 1936, era cerca de 12 anos mais novo do que Sebastião da Gama. Mas, se não há registo de encontro entre os dois, há, pelo menos, registo de convívio poético entre ambos, conforme o prova a publicação Horizonte – Revista de Cultura e Arte, editada em Évora entre Março de 1951 e Setembro de 1952 e dirigida por Manuel Madeira.
No seu nº 3 (Julho-Agosto.1951), colaboraram com poemas nomes como Luís Amaro, Natércia Freire, António de Navarro e Sebastião da Gama, entre outros, enquanto Lima de Freitas, Túlio Espanca e Sant’Anna Dionísio participaram com textos ensaísticos sobre arte. De Sebastião da Gama seria publicado o poema “Crepuscular”, datado de Estremoz (“1951, pelo São José”), postumamente inserido no seu livro Pelo sonho é que vamos (1953). No final da revista, na rubrica “Intercâmbio cultural” (dedicada a respostas a cartas dos leitores), um novíssimo (para a época) poeta se revelava, de seu nome José Carlos Ary dos Santos, que escrevera de Lisboa, referindo a revista: “Envia-nos este amigo uma carta em que se mostra interessado por Horizonte, animado pela nossa chamada aos novos. Conta apenas 14 anos e credencia-se com dois sonetos e um poema.”
Assim apresentada a novidade, seguia-se um breve comentário: “Ficámos surpreendidos, não porque um jovem de 14 anos fizesse versos, mas pela transcendência e preocupação dos temas, sobretudo os dois sonetos que não nos dizem nada dos catorze anos do poeta. Nota-se uma facilidade no tão difícil soneto, um fecho excelente, remate tão exigido neste género, que ficamos suspensos augurando a este poeta de catorze anos o melhor futuro na poesia, se não enveredar por maus caminhos.” Depois, o organizador da secção transcrevia apenas dois versos do poema “Cântico ao Sol” (de que gostara menos) e reproduzia na íntegra os dois sonetos – “Altíssimus!” e “Cruz”. Estes dois poemas seriam, no ano seguinte, incluídos no primeiro livro de Ary dos Santos, Asas (Lisboa, 1952), obra que foi prefaciada por Ramiro Guedes de Campos.
Excluindo os textos de cunho escolar, os dois mais antigos poemas de Sebastião da Gama são também sonetos, que se mantêm ainda inéditos: “Meu amor” (de 29 de Junho de 1939) e “Conselho” (de Julho do mesmo ano), ambos datados de quando o poeta de Azeitão tinha 15 anos.
Num e noutro poeta, a adolescência lançou pistas sobre o destino de ambos…
Uns bons anos mais tarde, Ary dos Santos encontrar-se-ia de novo com a poesia de Sebastião da Gama: em 1960, num recital de poesia organizado pela Casa do Pessoal da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, os textos de Sebastião da Gama foram lidos por Ary dos Santos e por Germana Tânger (dessa sessão se reproduz foto, onde ainda se pode ver Joana Luísa da Gama, esposa do poeta de Azeitão).

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Ary dos Santos, 71 anos

José Carlos Ary dos Santos, conhecido na poesia pelos seus dois últimos apelidos, faria hoje 71 anos (Lisboa, 1936-18.01.1984). Filho de Carlos Ary dos Santos (n. 1905) e de Maria Bárbara de Miranda e Castro Pereira da Silva (1899-1950), foi por parte da mãe que o poeta teve ligações a Vila Nogueira de Azeitão. Aqui, nascera a mãe e estava estabelecida a família já desde longa data: o avô materno, José Barbosa Pereira da Silva (1868-1932), e o bisavô e trisavô, ambos com o nome de José Pereira da Silva e ambos tendo sido provedores da Misericórdia azeitonense. Também a bisavó Maria Joaquina Morais Barbosa de Oliveira era natural de São Lourenço de Azeitão, freguesia de onde era natural seu pai (e trisavô de Ary dos Santos), Joaquim Pedro Gomes de Oliveira.
É este último nome que nos permite contar uma história do cruzamento de amizade de um antepassado de Ary dos Santos com Bocage. Com efeito, Gomes de Oliveira era casado com Carlota Emília Morais Barbosa (1803-1849), senhora que faleceu em Azeitão e cujo pai, tetravô de Ary dos Santos, era Tomé Barbosa de Figueiredo de Almeida Cardoso (1755-1820), nascido na América do Sul, de pai para ali emigrado oriundo do Minho (Paredes de Coura). Foi este Tomé Barbosa, a trabalhar na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, que se tornou, em dada fase, não só amigo, mas também protector de Bocage, havendo mesmo um soneto que o poeta sadino compôs em sua honra – “Dos tórridos sertões, pejados de ouro…” (cf. Bocage. Obra Completa – Sonetos. Org.: Daniel Pires. Edições Caixotim, 2004, pg. 275).
Ary dos Santos deixaria também na sua obra uma aguarela bocagiana quando considerou o poeta sadino um seu “irmão”, poema já evocado num postal aqui editado.
Desde que publicou A liturgia do sangue, em 1963, Ary dos Santos foi autor de Tempo da lenda das amendoeiras (1964), Adereços, Endereços (1965), Insofrimento in sofrimento (1969), Fotos-grafias (1970), Resumo (1972), As portas que Abril abriu (1975), O sangue das palavras (1978) e VIII sonetos (1984). Poemas seus foram cantados por Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Simone de Oliveira e Tonicha, entre outros intérpretes.
Musicado por Paulo de Carvalho e cantado por Carlos do Carmo, aqui se deixa a palavra de “Os Putos”, poema de Ary dos Santos de 1978:

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
E o céu no olhar, de um puto

Uma fisga que atira, a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser, criança
Contra a força dum “chui”, que é bruto

Parecem bandos de pardais, à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai, vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta

E ouvem-no falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens

As caricas brilhando, na mão
A vontade que salta, ao eixo
E um puto que diz, que não
Se a “porrada” vier, não deixo

Um berlinde abafado, na escola
Um pião na algibeira, sem cor
E um puto que pede, esmola
Porque a fome lhe abafa, a dor
[foto a partir de: Ary dos Santos. As palavras das cantigas. 2ª ed. Lisboa: Edições Avante, 1993]

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Dois confrades bocagianos

ALEXANDRE O’NEILL (1924-1986), em Poemas com endereço (1962)

AUTO-RETRATO

O’Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada…)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…

José Carlos ARY DOS SANTOS (1937-1984),
em VIII Sonetos (1984)

AO MEU FALECIDO IRMÃO MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

Meu sacana de versos! Meu vadio.
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sargeta. É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.

Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio
têm joanetes culturais na tola.

Que diria Camões nosso padrinho
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?

O que me vale é que não estou sozinho
ainda se encontram alguns pés de linho
crescendo não sei como na estrumeira!