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quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Manuel Mendes na rota do Douro



“A terra e os homens reduzi-os à fruste expressão da arte que é meu ofício. Apenas uma molhada de singelas páginas de ‘roteiro’, colhidas pelos montes, ao sabor do acaso, a que à falta de melhor chamei ‘sentimental’, decerto por me haver tocado o coração quanto vi no meu deambular por essas serranias e esse prodigioso rio.” Assim Manuel Mendes (1906-1969) apresenta o seu livro Roteiro Sentimental - Douro (1964), o primeiro de uma trilogia que manteve a expressão “roteiro sentimental” no título, conjugando viagem e afecto pela via da escrita.

São quinze crónicas produzidas entre 1961 e 1963, inspiradas pela paisagem duriense, fortemente dominadas pela figura humana, sofrida e olhada de uma perspectiva de que não está alheio o neo-realismo - em São Salvador do Mundo, perante a dificuldade de exercer o cultivo no alcantilado da paisagem, o viajante anota: “Com assombro e com angústia, fica-se a pensar no destino desta mísera gente, na sua existência de bichos abandonados e bravios”, numa serra que é “teatro das dores e infortúnios deste homem tão indigente como heróico, diante de cujo trabalho e sacrifício temos de nos respeitar com respeitosa admiração.”

Manuel Mendes não se deixa impressionar apenas a partir do longe e a sua curiosidade leva-o a demandar os aspectos da vida naquele cenário que escorre desde Barca de Alva até ao Porto, com pormenores do quotidiano humano. Exemplo perfeito é o registo “Douro abaixo”, a mais longa crónica, relato da descida do Douro desde Pinhão até ao Porto num barco rabelo, diálogo com a Natureza e com os homens, dando conta do vocabulário específico dos “marinheiros” do rio e da sua arte, aproximando o leitor das conversas do arrais, o mestre Colino, homem que vai explicando e se sente a entrar para a história, não querendo que o ouvinte perca pitada e advertindo o viajante: “Pegue no livrinho e assente!” À mistura, são tecidas considerações sobre o que viria a ser o amargo futuro destes homens e desta região por razões tão diversas como a preferência por outros meios de transporte do vinho ou o papel dos ingleses sobre a economia local.

Estas viagens são pretexto para evocações de figuras como Camilo Castelo Branco (que andou fugido por Sabrosa cerca de 1848), Barão de Forrester (o inglês que pugnou pela qualidade do vinho do Porto, desenhou um mapa do Douro e acabou afogado no rio num acidente de barco), Fanny Owen (a jovem protagonista de uma história de amor dramática), Aquilino Ribeiro (cuja obra “será por longo tempo recordada”), Guerra Junqueiro (na visita a Quinta da Batoca, nas imediações de Barca de Alva) e Raul Brandão (no derradeiro texto, em olhar sobre a Cantareira, onde o Douro tem a foz).

Em torno do rio, há também a oportunidade para a lembrança do que foi a praga da filoxera no século XIX (lembrada pelos “mortórios” na paisagem), da destruição das cheias (sem se saber se “é o rio que transborda” ou “as coisas que por si irremediavelmente se afundam”), do movimento da vindima (e do retrato social dos homens e mulheres que ali labutam), da arte dos pedreiros fixadores dos socalcos com a participação das mulheres, dos trabalhos durante o inverno. E há também a evocação do momento de festa que é consoada (e da “roupa velha”) ou dos sabores, como as histórias em torno da alheira.

A dado passo, classifica Manuel Mendes estes seus escritos como “páginas de estudo e evocação”, resultantes de “empenho do espírito, amor à cultura”. E o leitor não pode deixar de se impressionar por estas telas que eternizam momentos do passado da região duriense, talvez indispensáveis para a fixação da identidade.

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 966, 2022-11-23, pg. 9.


quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Jorge Costa e a condição do “sem-abrigo”


 

“Imaginem o que é viver constantemente na rua, sem um sítio nosso para nos sentarmos a descansar um pouco, sem uma casa de banho para nos lavarmos e fazer as nossas necessidades mais básicas, e sem acesso pessoal a energia eléctrica, sem sítio para arrumar a roupa, guardar a comida, sem nada. Expostos a tudo e a todos, sem privacidade e com uma crescente falta de dignidade.”

Este parágrafo desafiador inicia o relato que Jorge Costa (1967-2022) nos faz na obra Diário de um sem-abrigo (Oficina do Livro, 2022), com prefácios de Marcelo Rebelo de Sousa e de Nuno Markl, narrativa que retrata o quotidiano de um sem-abrigo, não seguindo o género diarístico, mas cultivando a crónica autobiográfica, em catorze textos (inicialmente publicados no jornal Mensagem de Lisboa) que peregrinam pelos dias e noites que o autor viveu nas ruas de Lisboa e pelos sentimentos que o dominaram, cada vez mais próximos daquilo que foi conhecer a ausência de dignidade.

Jorge Costa, contabilista, que não foi sem-abrigo por não ter tentado outras oportunidades (operador de caixa numa gasolineira, operário na construção civil), despedido quando já passara os cinquenta anos, desamparado pelos amigos, rapidamente se confronta com uma dura aprendizagem  - “A sociedade em que estamos inseridos ajuda quem está a subir. Quem está a descer leva um ‘empurrão’ para descer ainda mais.”, sentenças que repetirá no livro por ter sido sentida na pele, num mundo dominado pelas “leis da rua”.

Toda a narrativa é dominada pela emoção, havendo momentos mais intensos - o encontro com a personagem Zé, outro sem-abrigo, que foi “padrinho” e conselheiro; a consciência dos subterfúgios para sobreviver, dramáticos, como o da prostituição nas casas de banho da gare do Oriente; a primeira ida ao contentor do lixo para procurar algo para comer; o assalto de que foi vítima, violento, e o desprezo sentido no mundo dos sem-abrigo; a necessidade de roubar comida nas lojas, contrariando os princípios e as convicções; a constatação de que a única coisa que une os sem-abrigo “é não terem casa para morar, vivendo de forma igual e sendo observados por uma sociedade que lhe coloca uma espécie de rótulo”.

As crónicas deste Diário de um sem-abrigo não pintam as realidades com metáforas. Consegue o leitor sentir o desprezo visto nos olhares, a razão de ser da moeda que é dada, a crueza da linguagem, o abandono e a falta da capacidade de sonhar. O mundo que Jorge Costa frequentou durante oito meses, depois que deixou o seu quarto em Alverca por não ter dinheiro para pagar a mensalidade, ensinou-o a não chorar, a “não revelar aquilo que vai cá dentro”, gestos que só passou para a escrita quando, depois desse tempo, teve direito a uma casa através do projecto “Housing first”, que o mesmo foi ter encontrado um pouco do sonho que o animara no percurso - “só sonhava em viver dignamente.”

No final das catorze crónicas, Jorge Costa reconhece a crueldade da escrita - apesar do equilíbrio físico-emocional reconquistado, “foi duro, foi muito duro escrever estas crónicas”, refere na última, à maneira de balanço e de caução da sinceridade que pôs na escrita. E reconhece também que a sua identidade não podia deixar de fora o que passou nas ruas, tentando definir-se como “um sem-abrigo com casa”. E, da mesma forma que iniciou a série com um desafio ao leitor, conclui com outra provocação - “Um dia destes, dei por mim a pensar que se todos nós sentíssemos a miséria dentro de nós, talvez a miséria não existisse.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 903, 2022-08-03, p. 21.


terça-feira, 6 de outubro de 2020

Os dias de Emília Bravo, aliás, Maria Judite de Carvalho



Entre 13 de Janeiro de 1971 e 19 de Junho de 1974, Emília Bravo foi assídua no suplemento “Mulher” do Diário de Lisboa, colaboração que passou por três fases: a primeira, sob o título “Diário de uma dona de casa”, até 29 de Setembro de 1971, espaço semanal com anotações de cada um dos dias da semana; a segunda, entre 6 de Outubro de 1971 e 6 de Fevereiro de 1972, “Diário”, registos publicados ao ritmo de um por dia; a terceira, a partir 7 de Fevereiro de 1972, que, não abandonando o tom dos textos anteriores, passou, contudo, a atribuir título próprio a cada um deles.

Emília Bravo, pseudónimo criado por Maria Judite de Carvalho (1921-1998),  personifica a autoria destas notas do quotidiano, reunidas desde 2002 no volume Diários de Emília Bravo, organizado por Ruth Navas (com reedição em 2019).

A forma diarística que estas crónicas apresentam desde logo se deixa marcar pelo problema do eu que escreve, um eu ficcional. Por outro lado, a autora não fala de si, mas dos outros, do mundo, o que anula a marca do diarismo que é o relato do eu. Assim, o livro é um miradouro de onde se vê o mundo, particularmente a cidade (Lisboa) e as personagens que a fazem, mulheres e homens inseridos numa vida urbana, onde ganha espaço a “dona de casa”, mulher que luta (pela vida), que caminha na sua solidão, cabendo a Emília Bravo reflectir e questionar o observado.

Os motivos chegam à cronista através de três fontes importantes: o que observa nas suas caminhadas pela cidade, o que recebe via televisão, o que apreende nos jornais e revistas que lê. O discurso gira em torno das situações do quotidiano, aquelas que fazem parte de todas as vidas - a casa, o estatuto da mulher e do homem, a moda, a sobrevivência, os saldos, as prestações, a confusão, o supérfluo, o consumo, o tempo, os piropos, o sonho. Frequentemente, as considerações feitas surgem a partir de vozes de pessoas com quem Emília se cruza (amigas, conhecidas, anónimas), normalmente num tom pessimista, mas também de denúncia de ocorrências menos boas numa sociedade de que ela mesma faz parte.

O leitor assiste a um progressivo construir da imagem da mulher interventiva e autónoma, independentemente das razões que o provocaram: quase no final, em crónica de 23 de Janeiro de 1974 intitulada “Como vai ser?” (pergunta indicadora da alteração), a sociedade confronta-se com a mudança - “é que as senhoras de sua casa, as donas de casa e mais nada têm vindo a desaparecer, e não só por causa da emancipação da mulher, mas também (mas principalmente) devido ao custo de vida.”

Sobre o início da década de 1970, tempo destas crónicas, passou meio século. Contudo, muitas das observações poderiam ser transpostas para hoje, prova de que outras tantas questões não tiveram resolução nestes 50 anos. Um exemplo? Este, de Junho de 1971: “Poluição é uma palavra que está na ordem do dia em todo o mundo. Muito se fala de poluição. Mas dar-nos-emos nós conta do seu valor de ameaça? Não pensaremos para connosco, encolhendo os ombros, que se trata de uma coisa vaga, mais um papão que, decerto, não é no fundo tão mau como o pintam ou talvez nem exista? Alguém há de dar um jeito, pensamos. Há sempre alguém que dá um jeito, não é verdade? Pois esperemos que haja esse alguém, porque ela caminha a passos largos.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: 476, 2020-09-30, p. 5.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A leitura e o prazer, por Miguel Esteves Cardoso



No Público de hoje (pg. 45), Miguel Esteves Cardoso escreve sobre a leitura e o prazer de ler. Vale a pena ler - por obrigação e por prazer!


sábado, 11 de julho de 2015

António Cagica Rapaz - A memória e a identidade nas crónicas



É reedição recente a obra Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz (1944-2009), que a Câmara Municipal de Sesimbra levou a cabo, quando passam quinze anos sobre a primeira publicação. Na verdade, trata-se de noventa e sete textos, que o próprio autor, em nota de abertura, hesitava em classificar quanto ao género: “não sei se são contos, se são crónicas, memórias, olhares ou retratos”, para logo acrescentar “se calhar é um pouco de tudo isso ou nada disso”, porque, “no fundo, são simplesmente coisas que, ao longo dos anos, fui buscando no sótão desarrumado que é esta minha cabeça e que fui escrevendo, ao correr da pena que tenho de não saber fazer melhor”.
E, na verdade, assim é. Os textos respeitam a modalidade da crónica pela sua extensão, pela forma de tornar actuais muitas histórias, por se cruzarem com o quotidiano de personagens com as quais o autor também se cruzou, por partirem para pequenas reflexões sobre a memória e as formas de vida, os exemplos, as convivências, os tempos. Havendo apenas um dos textos sem data, os mais antigos remetem-se para 1972, com publicação no jornal Record, enquanto os mais recentes surgem datados de 2000.
O estilo de Cagica Rapaz é vivo, intenso, medido ao pormenor, eficaz, levando o leitor a comungar os instantes e as situações, a viver aquilo que o próprio narrador quer fazer reviver. São histórias de Sesimbra, das suas gentes, do sítio. São narrativas de tempos recuados, assentes na infância do seu contador, que vogam até às figuras que fizeram parte do seu universo e que povoaram o tempo e a geografia entre Caixas,  Cotovia e Sesimbra. São relatos que vivem sobretudo pela sua humanidade, pelas relações que tal evocação gera entre as pessoas, todas protagonistas de vidas e da vida do narrador, que nunca se esconde atrás de um memorialista distante, antes insiste em tornar presentes os momentos que sentiu e as personagens que os condimentaram, sempre levado por um apego à terra, uma Sesimbra em que a paisagem tem de ser dominada, sem dúvida, pelo mar – “O mar e os barcos fazem parte da nossa vida, dos nossos sonhos. Por isso, no campo, mesmo sem searas a ondular, nos parece ver barcos onde, afinal, só há uma casa cercada por um muro pontiagudo, à beira da estrada.”
A pouco e pouco, ao longo da quase centena de crónicas, o autor vai revelando o seu propósito: vencer o tempo, revivendo-o pela memória, que se torna escrita. É assim que, poucas páginas de leitura volvidas, o leitor começa a entrar no desvendamento do porquê desta escrita: “foi-se o tempo, fica-nos a fantasia e a memória vacilante…” Um pouco adiante, ao fixar o retrato de uma personagem, um pouco mais de confissão – “é o passado que penetra o presente com ingénua autenticidade”. As histórias vão-se acumulando e, uns encontros à frente, é dito que “ficam as recordações aqui e ali reavivadas”. Já quase no final desta colectânea de crónicas, uma surge em que o autor cimenta o seu gesto de caminhar pela memória – refere-se à colaboração de António Lobo Antunes num periódico, entretanto recolhida sob o título de Crónicas, que, relidas, merecem de Cagica Rapaz a seguinte reflexão: “Sentimos quão vivas estão as recordações da infância, a ternura com que fala dos familiares, dos amigos, dos lugares, das coisas e de um tempo.” O leitor percebe que este narrador sente a felicidade da identificação, que cauciona o seu trajecto, mas, num gesto de simplicidade, conclui, linhas adiante: “Desta leitura acabei por extrair uma satisfação adicional que é o paralelismo que, vagamente, a espaços, a grande distância qualitativa, me atrevo a vislumbrar entre algumas das suas crónicas e um ou outro dos meus pobres escritos.”
A dimensão pictórica no traçado das personagens é intensa em António Cagica Rapaz, como se pode ver pela descrição de memória que faz de Maria Amália, sua familiar, impressão que quase nos remete para Arcimboldo: “Com os meus oito ou nove anos, eu via nela um fruto autêntico da terra, feito de trigo maduro, de sol cor de romã, de uva generosa, de bom pão amassado com amor e cozido em forno de tijolo moreno”. Impressionante também é a caracterização de uma outra personagem, que se manifesta em vários textos, o padre João, a quem está associada uma construção literária – “foi, para todos nós, o senhor abade das aldeias poetizadas do Júlio Dinis” –, resultante de um retrato todo ele eivado de sentimento – “felizmente, acima dos dogmas rígidos e tenebrosos, havia o Padre João, com a sua bondade, a sua jovialidade, a sua ternura, o seu sorriso cativante, a calorosa cumplicidade que estabelecia connosco”. Intenso também é o passeio na memória através de uma professora, Auzenda Pereira, que leccionava Francês no Liceu de Setúbal no início dos anos 60 e revelou aos alunos os caminhos da beleza e da arte – “Pessoas como a Dona Auzenda acompanham-nos ao longo das nossas vidas, ensinando-nos a apreciar as coisas bonitas da existência, com amor e o mesmo tacto poético com que nos levava pela mão através dos campos da Provença, em manhãs de evasão na biblioteca acolhedora do velho Liceu…” O recorte no tratamento das personagens é fino e sensível e assistimos a um desfile que integra o sapateiro, o pescador, o condutor do autocarro, o barbeiro, os amigos do café, aqueles que chegam e se deixam tornar íntimos de Sesimbra (terra de recepção também) e todos quantos acabam por fazer parte de uma vida, de uma comunidade, com ligação aos sítios (o café, a praça, a praia, o campo), aos momentos (a infância, a escola, a igreja, o futebol, as festas) e aos afectos. No fundo, são os contares do que alimentou o quotidiano, do que foi a epopeia de cada um – não por acaso, será a propósito da narração da matança do porco que o narrador dirá que, nesse dia, “se escrevia mais um capítulo dos muitos que compõem a epopeia do campo”…
Se dúvidas tivéssemos quanto ao que motivava António Cagica Rapaz nestas crónicas, o mistério seria desfeito por este curioso parágrafo que registou no texto “Omar” (designação vinda de poeta persa do século XI, evocado por Amin Maalouf), de 1999: “O que resta da nossa urbe é o olhar melancólico que alguns teimosos palermas, como eu, teimam em pousar sobre Sesimbra, tentando descobrir, desenterrar, trazer à superfície restos de beleza, de poesia, do encanto do passado.” E, quase no final do livro, mais um contributo para ajudar a desvendar o porquê destas evocações: “continuaria a fazer o que faço com as pessoas de quem gosto, evocando-as aqui e mais logo, por isto, por aquilo, como quem diz adeus de longe, do muro da lota…” Duzentas e poucas páginas de um livro que, dizendo adeus, traz o passado até ao presente, assumindo-se como um percurso que (re)constrói a identidade!

Sublinhados
Felicidade – “Se calhar, a felicidade é apenas meia dúzia de horas felizes, momentos espaçados e fugidios, uma sensação de paz, uma ilusão de eternidade, um riso de criança…”
Vida – “A nossa vida é um filme de que somos actores, de que nos julgamos realizadores e do qual, muitas vezes, somos apenas espectadores incapazes de interferir, impotentes para reagir.  Até ficarmos sozinhos na sala escura quando toda a gente já saiu, olhando para o relógio. Lá fora, na rua, já começa outro filme, outras vidas. Ou talvez seja apenas o mesmo filme que continua, em trinta e uma partes…”
Outro – “Andamos anos a cruzar-nos com pessoas de quem gostamos, a falar-lhes de raspão, ao dobrar a esquina, e não somos capazes de arranjar tempo para elas, para nós, para estarmos juntos, sempre a deixar para um qualquer dia que, quando e se chega, não é o que sonhámos. (…) Importante é gostarmos das pessoas e das coisas, sermos capazes de partilhar sentimentos e emoções.”
Escrever – “Escrever não é indispensável, faz parte das coisas supérfluas. Ninguém morre se não escrever e todos passam sem ler. Apenas acontece que alguns de nós, com ou sem razão, com mais ou menos jeito, julgam ter coisas para dizer. E escrevem. Por gosto, com paixão, por amor, escrevem.”

sábado, 23 de maio de 2015

O paraíso, segundo Miguel Esteves Cardoso



O título é original: "Algumas verdades fofas e nuas sobre o paraíso que de modo algum precisavam de ser ditas". Outra forma de dizer que o paraíso está ao nosso alcance... assim o queiramos! E o início do texto é forte: O paraíso é a repetição esperada do desejo e inesperada do prazer. O paraíso nunca pode ser imaginado. Se é preciso imaginar é porque não se está lá. O paraíso pode ser sonhado mas nunca satisfaz porque, para ser um paraíso, é preciso consciência que se está lá, acordado, cheio de toda a sorte do mundo. (…) O paraíso é uma extrema felicidade passageira que promete poder voltar, talvez. Se nunca mais pudesse voltar, fosse de que forma fosse, seria uma tragédia.”
Quem o diz é Miguel Esteves Cardoso, na revista "Fugas" que acompanha o Público de hoje (pg. 3) e é dedicada à temática do paradisíaco. A ler! E a construir!

domingo, 10 de maio de 2015

"Que coisa são as nuvens", de José Tolentino Mendonça



Algumas crónicas (quase uma centena) de José Tolentino Mendonça que viram a luz no Expresso ao longo dos anos de 2013 e de 2014 estão agora ao alcance do leitor sob o título Que coisa são as nuvens (Lisboa: “Expresso”, 2015). Não é experiência nova do autor, uma vez que já em 2010 dera à estampa a colecção O Hipopótamo de Deus e outros textos (Lisboa: Assírio & Alvim), reunião de crónicas saídas nos “media”, entre os quais se contava também o semanário Expresso.
De crónicas não se pode esperar o que vá além de uma reflexão sobre algo do quotidiano; mas das crónicas se pode esperar tudo isso que é a reflexão, uma maneira de olhar o mundo, de o sentir, de nele reparar. O título da colectânea, vindo de uma filme de Pasolini (1967), alberga pensamentos que foram “uma iniciação, mesmo que imprevisível, à arte do espanto”; daí que o título do texto introdutório passe mesmo por essa virtude do olhar reforçada com o verbo “reparar”: “Para quem não tiver reparado”.
As crónicas de Tolentino Mendonça passam por esse espanto com as coisas do mundo e da vida, algo que nos surpreende e cativa, que se constrói sobre a estética, venha ela da escrita ou das outras artes, corra ela desde os sentimentos ou decorra dos acontecimentos, conflitue ela com as nossas  formas de vida ou abra-nos caminhos de descoberta.
Tanto é merecedor da crónica o bolo de bolacha como o bolo de arroz ou o chocolate, os prazeres experimentados como as descobertas, o sentido poético como as grandes obras. E o leitor vai saltando de Eugénio de Andrade para Ana Teresa Pereira, pensando sobre a morte ou sobre a poesia ou sobre os avós, entrando na pedagogia de Ruben Alves ou no fascínio de El Greco, convivendo com Van Gogh ou com José Saramago, ouvindo Rosenzweig ou Cesariny, pensando com Sophia ou com Simone Weil (dois dos nomes que emergem com mais frequência).
Estes pensares de Tolentino Mendonça vão ao encontro de formas de ser e de viver o mundo e a vida, congregando a espiritualidade inerente a cada gesto ou a cada momento, convidando a entradas por reflexões de outros, povoadas por citações exemplares do lido e do conhecido como se fossem ingrediente ou condimento. São textos curtos, que não vão além das duas páginas mas que nos deixam à porta das descobertas, no limiar do que é “reparar”, lá onde as nuvens mostram as suas diferenças e as suas consistências.
Uma boa iniciativa do Expresso, numa luta contra a efemeridade, em prol de momentos de encontro do leitor com o pensamento e com o mundo!

Sublinhados
Abraço – “Um abraço é uma hipótese de equilíbrio que a hospitalidade dos corpos é chamada a inventar. Qualquer abraço começará por ser uma coreografia instável. Se calhar, a primeira forma do abraço é só um agarrar-se para não cair. Pouco a pouco, o abraço deixa de ser uma coisa que tu me dás ou que eu te dou e surge como um lugar novo, um lugar que não existia no mundo e que juntos encontramos.”
Acabar – “O momento de viragem acontece quando olhamos de outra forma para o inacabado, não apenas como indicador ou sintoma de carência, mas condição irrecusável do próprio ser. Ser é habitar, em criativa continuação, o seu próprio inacabado e o do mundo. O inacabado liga-se, é verdade, com o vocabulário da vulnerabilidade, mas também com a experiência de reversibilidade e de reciprocidade.”
Amigo – “A banalização da palavra amigo produz uma incapacidade de compreender (e de viver) amizades verdadeiras.”
Arte – “Há três dimensões fundamentais (e esquecidas) na arte, companhia que importa recordar: a gratuidade, a aceitação e a capacidade de partilhar o silêncio.”
Casa – “As casas são uma máquina de habitar e desempenham um papel chave na construção da nossa experiência humana. Mas todas as casas falam, pela presença ou pela ausência, de outra coisa que está para lá delas. Falam disso que um humano é, matéria ao mesmo tempo sucinta e imensa, de fazer espanto. Falam do conhecimento que só é verdadeiro se alojar em si a consciência do que ignora hoje e ignorará até ao fim. Falam da luta pela sobrevivência, com a sua rudeza, a sua dor e tumulto, mas também da excedência que experimentamos, porque se a vida não transbordar não é vida. Falam da intimidade, aquém e além da pele. Falam do silêncio e da palavra, que umas vezes se contradizem e outras não. Falam do cumprido e do adiado, do sono e da vigília, do fraterno e do oposto, da ferida e do júbilo, da vida e da morte.”
Desgraça (íntima) – “A nossa cabeça de pessoas crescidas é complicada. Descobrimos que há um prazer em listar achaques e traições, e se a minha chaga puder ser maior do que a tua tanto melhor, isso reforça o meu estatuto. A verdade é que, se não tomarmos atenção, a desgraça íntima torna-se um escanzelado pódio onde nos blindamos.”
Dinheiro – “O dinheiro não se fica a orientar apenas o ordenamento material da vida comum, mas contamina indelevelmente a dimensão imaterial da vida, as suas aspirações mais profundas. (…) Quer dizer, passou a ser um poderio, pois actua por si mesmo, detendo uma autonomia que só conhece como lei a sua. O dinheiro só tem respeito pelo dinheiro: nas relações que estabelece, tudo se compra e se vende, e é nessa espécie de delírio totalitário que ele prefere viver.”
Futuro – “Embora nos pese toda a indefinição ou os maus prognósticos, conservamos em relação ao futuro uma expectativa que nunca é completamente fechada. Quem sabe? – insistimos nós.”
Lentidão – “A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.”
Passado – “O passado é, em grande medida, um tempo confortável, mesmo quando nos esmaga. Provoca-nos o alívio, (…) está num lugar certo, mesmo se nos espaventa de tão completamente errado.”
Presente – “Do presente, da pressão do presente, da sua irrefutável factualidade, desatamos facilmente a escapar.”
Reparar – “Reparar introuz-nos por si só numa lentidão, porque aquilo a que alude não é um observar qualquer: é um ver parado, um revisar porventura mais minucioso do que o mero relance; é uma visão segunda, uma nova oportunidade concedida não apenas ao objecto, nem sequer apenas ao olhar, mas à própria visibilidade. [Reparar] põe também em prática uma reparação, um processo de restauro, de resgate, de justiça. Como se a quantidade de meios-olhares e sobrevoos que dedicamos às coisas fosse lesivo dessa ética que permanece em expectativa no encontro com cada olhar. Por isso, de certa forma, só quando reparamos começamos a ver.”
Saber – “Reconhecer que ‘não se sabe’ pode trazer desconforto, mas traz também saúde interior e criatividade.”
Silêncio – “Aquilo a que chamamos silêncio só se torna real e efectivo através de um processo de despojamento interior, e de nenhuma outra maneira.”
Simplicidade – “Nada nos pede mais trabalho e arte do que a simplicidade.”
Vida – “A vida é completamente artesanal. Não é possível reproduzi-la em série, nem encontra-la feita noutro lado. A vida requer a paciência do oleiro, que, para fazer um vaso que o satisfaça, faz duzentos só a treinar o gosto, a habilidade, a testar a sua ideia.”
Vida – “Privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia o que é senão isso? As nossas sociedades medem infelizmente o seu progresso esquecendo, quando não obliterando, domínios da vida humana que não são mensuráveis e que têm a ver com a interioridade, a criação, o dom, a alegria, o sentido.”

domingo, 5 de outubro de 2014

Vale sempre a pena a passagem para Tróia...


A crónica de Miguel Esteves Cardoso no Público de hoje versa a travessia do Sado de Setúbal para Tróia e volta. Uma travessia pessoal, com paisagem, vistas e sabores, com sensações e com reparos. Vale sempre a pena a travessia...


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Duas marcas da prática política no nosso país


1) «Em matéria de reformas sou licenciada já assisti a reformas do ensino da linguagem da administração do vocabulário dos costumes e sei lá que mais e só uma coisa é certa essa coisa é que “atrás de reforma vem reforma” tão certo como dois e dois serem quatro e que para reformar não há como os portugueses que reformam rerreformam e rerrerreformam e está tudo sempre a pedir reforma enfim como já percebi que a reforma é a vocação natural da Pátria (…) sento-me na minha cadeira e deixo-as passar porque as reformas são como o vento passam sempre até vir outra mais tarde ou mais cedo embora para dizer a verdade venham quase sempre mais cedo.»

2) «Está tudo na mesma e estar tudo na mesma quer dizer que os partidos não se entendem e os partidos não se entenderem é estarem a ter conversas uns com os outros para depois mandarem comunicados a dizer que não se entendem eu cá por mim acho que eles podiam poupar as línguas eliminando as conversas e mandando logo os comunicados sempre se poupava papel nos jornais e sempre se poupava a nossa paciência que está a rebentar.»

Os leitores mais atentos reconhecerão o estilo: as redacções da Guidinha, essa personagem criada pelo Luís de Sttau Monteiro (1926-1993), que compunha crónicas humorísticas e apimentadas sobre os hábitos sociais, lidas avidamente no Diário de Lisboa ou em O jornal. Os dois excertos que apresento mantêm-se oportunos, apesar de terem data: ambos foram publicados em O jornal, o primeiro em 22 de Junho de 1979 e o segundo em 8 de Setembro de 1978. Isto é: 35 anos não alteraram algumas práticas políticas do nosso país!
Algumas crónicas da Guidinha podem ser lidas em Redacções da Guidinha (Lisboa: Areal Editores, 2003), que recolhe uma selecção de algumas saídas no Diário de Lisboa entre 1969 e 1970, e em A Guidinha antes e depois (Lisboa: "O Independente", 2004), compilação de vários textos surgidos entre 1972 e 1979 em ambos os jornais.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

As bibliotecas, segundo Valter Hugo Mãe


No JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias de ontem (nº 1112, pg. 34), um belo texto de Valter Hugo Mãe sobre as bibliotecas. A ler.

domingo, 10 de julho de 2011

André Brun e o "Sumário de Várias Crónicas"


Dedicado a João Chagas, Sumário de Várias Crónicas (Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1923), de André Brun, é constituído por quatro partes, todas reunindo uma centena de crónicas publicadas nos jornais entre Setembro de 1907 e Março de 1922 – “A Menina dos Meus Olhos”, com 15 textos, dedicada “a minha filha, Dona Aninhas”; “Factos e Momentos”, consagrada “à memória de Paulo Barreto”, coligindo 31 crónicas; “Homens de Letras e Aves de Pena”, dirigido a Gualdino Gomes, reunindo 25 memórias; “Alfaciadas”, oferecido a Alfredo Mesquita, juntando 30 composições.
O que levou André Brun a reunir estes textos em livro di-lo ele no texto introdutório: “pareceu-me curioso ressuscitá-las do natural olvido em que estavam sepultadas, por isso que, à míngua de um valor literário que as recomende à posteridade, me interessam particularmente, ou pelo momento em que foram escritas, ou pelo que nelas pus do meu coração ou do meu espírito ou, ainda, porque fixam uma atitude da minha vida e contribuem assim para desenhar a minha fisionomia moral”. O tempo, os afectos e as atitudes constituem, assim, as três motivações fortes que levaram Brun a esta antologia, três ingredientes que têm muito de pessoal, de tal maneira que, umas linhas adiante, escreverá que as crónicas aqui reunidas constituirão “o primeiro volume das [suas] Memórias”.
Na primeira parte, os textos acompanham a evolução e crescimento de Dona Aninhas, a filha, desde o nascimento, dando conta de cada nova manifestação – quando se sentou, o nascimento do primeiro dente, o reconhecimento da imagem no espelho, a ida ao teatro, a ida ao colégio. Surpreendido pelas diversas manifestações, alguns dos momentos constituem ocasião para uma missiva destinada à herdeira, quase em jeito de ensinamento a legar para a posteridade, como sucede no texto “O Relógio”, de Janeiro de 1916, motivado pelo facto de a criança ter encostado o ouvido ao mostrador: “À medida que fores crescendo, verás que te não pertences. Pertences ao relógio. Ele te dirá a que horas te deves levantar, quando te deves deitar, o momento em que deves comer, o instante em que chegarão as tuas alegrias e aquele em que despontarão as tuas amarguras. (…) Acabarás por te acostumar e deixar-te-ás conduzir, na impossibilidade de te resgatares dessa prisão, dessa galera. Vai-te entretendo com ela agora. Outros dias chegarão em que deixarás parar o teu relógio na doce intenção de o não ouvir, para afinal lhe dares corda, poucos momentos volvidos, ao reconheceres a tua insignificância perante o Tempo, que a todos nós governa.” São crónicas de ternura paternal e de descoberta, onde nem falta uma “Carta das Trincheiras” a explicar à filha o porquê da sua ausência, a participar na Grande Guerra – “Bem vês, ó meu bem, ó minha Aninhas linda, que, sendo eu um soldado, entre os soldados tinha obrigação de estar e na primeira linha”. A explicação poderá não ser suficiente para a criança destinatária, mas fica a promessa de mais coisas serem contadas “um dia, no regresso”.
A Primeira Grande Guerra constitui, de resto, o eixo central das crónicas da segunda parte, seja para elogiar combatentes de Naulila, seja para ir comentando os acontecimentos na Europa – enaltecimento da coragem belga e do rei Alberto, a batalha de Verdun (em que “a fera quebrou os seus melhores dentes contra a mole de aço da resistência francesa”), o sentimento de solidariedade devida pelos portugueses (“Nenhum português tem o direito, seja qual for a latitude política em que se encontra, de se manifestar insensível ao momento que vivemos. (…) Estamos em guerra e estamos todos em guerra. Daqui não há que sair.”), a impressão causada pelo relato de um marinheiro francês participante na defesa de França, tristeza pelo abandono a que o Corpo Expedicionário Português foi votado pelo governo português, sofrimento perante a destruição da catedral de Reims, a alegria perante o desfile dos vencedores em Paris, o sacrifício dos soldados mortos e a sua entrada na memória. Ainda que algumas crónicas tenham data anterior à partida de Brun para a Flandres (em Abril de 1917), elas demonstram o espírito que animou muitos adeptos da participação de Portugal no conflito, designadamente André Brun, apelando para uma consciência do que nessa região europeia acontecia.
A sua obra maior, em termos de memorialismo da sua participação na guerra, publicara-a André Brun em 1918, A Malta das Trincheiras (que já ia na 3ª edição em 1923). Além desta obrigação de partir para a Flandres por ser militar, Brun cumprira também uma promessa feita a seu pai, André Regis Brun, combatente francês em 1870, quando a França perdeu território a favor da Alemanha – se voltasse a guerra, o filho entraria para dar continuidade à desforra desejada pelo progenitor…
A terceira parte do livro contém capítulos memorialísticos e notas de leitura sobre Mercedes Blasco, Teófilo Braga, Bulhão Pato, António Bandeira, D. João da Câmara, Augusto Gil, Fialho de Almeida, Olavo Bilac, Rafael Pinheiro, Henrique Trindade Coelho, Gabriel d’Annunzio, Júlia Lopes de Almeida, Camões, Manuel de Arriaga, Coelho Neto, Paulo Barreto (João do Rio), José Queirós, Mário Pederneiras, João Chagas, Campos Monteiro, Eduardo Schwalbach, José Duro, Augusto de Castro, Eugénio Vieira, Chagas Franco (a propósito de um romance relacionado com a Grande Guerra) e Henri Bataille. Por estas crónicas passa a leitura atenta e sensível, a apreciação fundada, o testemunho de momentos únicos e o cruzamento da cultura portuguesa com o Brasil.
Na quarta parte, surgem as crónicas sobre costumes, sobre a Lisboa de bairro, de onde não estão ausentes as festas, os dizeres, a graça, a ironia, podendo o leitor de hoje encontrar ali motivo de boa gargalhada, quer pela forma de dizer, quer pela parecença com situações que ainda hoje vivemos.
Esta obra de André Brun faz jus àquela verdade que sobre si mesmo escreveu quando, um dia, alguém lhe observou que ele andava sempre sorridente e bem disposto: “A vida não me poupa e o meu quinhão de aborrecimentos não é menor que o dos outros. Porém, em vez de o contar ou comentar de lágrima na voz e rancor na boca, relato-o ou analiso-o com o sorriso nos lábios e a serenidade no coração.” (in Os Meus Domingos). Além desta razão, a visita a este livro justifica-se pela qualidade dos textos, pela abertura com o leitor, pelo estilo praticado, pelo tom de mestre que Brun reflecte na estrutura das crónicas.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O Charroque chegou a "O Setubalense"

O “Charroque da Prrofundurra” chegou ao jornal O Setubalense. A primeira crónica com a personagem sadina saiu na edição de hoje e intitula-se “O Chique Zarroulhe”, suposto primo do narrador.
Crónica com humor, imitando o falar setubalense, o seu espírito vem no seguimento do que aconteceu no livro O Charroque da Prrofundurra e do que tem sido o blogue com o mesmo nome.
Prometida está colaboração semanal do Charroque, com vistas e leituras sobre Setúbal, num quase auto-retrato que dispõe bem.
Ora veja-se o início da crónica de hoje: “O mê prrime Chique quié zarroulhe é um ganda maluque por esse famouse tipo de transporte quié os matavélhes, aquelas motas trricicles que só há em países do terrceirre mundo e aqui em Porrtugal.”

quarta-feira, 18 de maio de 2011

“Histórias daqui e dali”, de Luis Sepúlveda

Vinte e cinco crónicas compõem o volume Histórias daqui e dali, de Luis Sepúlveda (Porto: Porto Editora, 2010), numa ponte que nos remete para espaços, para os lugares, que se estende entre a América Latina e a Europa, pontos de fixação do próprio cronista.
Em grande parte dos casos, estas crónicas são visitações a tempos passados, num percurso através da memória, insistentemente mostrando a faceta do exilado. Por elas passam convicções, recordações, amigos, experiências, reencontros, histórias de livros, ironias da vida, chamadas de atenção, não esquecendo um pendor crítico sobre formas de viver de hoje.
Por Portugal e pela literatura em português passam também estas crónicas, havendo uma delas que toma o cenário do “Correntes de Escritas” poveiro e o contador de histórias que é o angolano Nelson Saúte.
Estas crónicas caminham sempre no sentido da procura de pontos de apoio, cimentados por referências comuns, independentemente das latitudes, atitude talvez justificada por esta afirmação de identidade – “Nós, os exilados, somos como os lobos, para onde vamos juntamo-nos às alcateias que não são as nossas, mas convivemos, caçamos juntos, e, no entanto, a lua convida a afastar-nos para uivar de solidão.”
Marcadores
Velhos textos - “Quando nos deparamos com velhos textos é como se nos encontrássemos de novo connosco, e estes reencontros são sempre comoventes.”
Exílio - “Todos os exílios duram demasiado tempo e cada experiência é única.”
Viajar - “O direito de viajar ou de permanecer é inerente ao ser humano. O visto para ir ou ficar é um golpe cruel e planificado na liberdade do indivíduo.”
Alfarrabistas - “As lojas de livros usados são pátrias especiais e necessárias.”
Ficção - “A ficção é sempre um prolongamento da realidade.”
Jornalismo - “A precariedade em que caiu o jornalismo faz com que ninguém seja responsável pelo que se escreve, diz, ou emite, salvo raras excepções, e com que sejam poucos os jornais feitos por jornalistas que, com absoluto rigor, assistem ao funeral de uma profissão tão bela quanto necessária.”

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Que presente é este?

Perguntei-lhe pela neta, nascida há meses, e lá me disse que ia estando bem, que se ia afeiçoando ao mundo, que os pais estavam muito contentes, mas que não iriam para o segundo filho e, assim, não havia esperanças de ter também um neto. “A vida está difícil, cada vez mais difícil…Sabe que eu e o meu marido já nem vemos televisão quando é tempo de notícias?”
Fartaram-se de ver e de ouvir notícias, vozes, opiniões alarmistas, duras, rígidas, pairando pouca verdade. “Nada sabemos ao certo, parece que ninguém quer dizer o que realmente interessa, só se desmentem e nada corresponde ao que sentimos todos os dias”, explicou. “Não vê o que se passou com os medicamentos? Numa semana, iam descer não sei quanto e, na semana seguinte, já se dizia que as comparticipações iam acabar e iam ficar mais caros a quem deles precisar… Mal de quem precisa, não é? Dantes, as notícias eram um chorrilho de calamidades, de desastres, de azares… agora, é só economia, dinheiro, intriga e nós a termos cada vez menos… Deixámos mesmo de ver notícias… Não acreditamos…”
Há quem meta a cabeça na areia, há quem se revolte e manifeste essa revolta de forma visível, há quem se revolte e se remeta ao silêncio. Não será ainda desespero o sinal máximo, não. Mas é a desesperança que nos está a invadir, qual onda de areia que tudo vai secando e impedindo que o olhar sorria para o futuro.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Mia Couto, "Pensageiro frequente"

São 26 crónicas de Mia Couto que tiveram já um primeiro aparecimento na revista Índico, das Linhas Aéreas de Moçambique, e agora dão corpo a Pensageiro frequente (Alfragide: Editorial Caminho, 2010), datando a mais antiga de Janeiro de 1999 (“Zambezeando”) e sendo a mais recente de Maio deste ano (“Fintado por um verso”, texto que abre o livro).
Em “Nota Introdutória”, Mia Couto não esconde o propósito que esta sua colaboração na revista teve: “fazer com que o meu país voasse pelos dedos do viajante, numa visita às múltiplas identidades que coexistem numa única nação”. Esta apresentação acaba por sintetizar alguns pontos comuns às crónicas ora reunidas em livro – a viagem pelas várias facetas de uma identidade, a mística dos lugares e das gentes, a poesia dos sítios, a partilha do mundo com a natureza, tópicos que resultam dessa viagem que o pensamento assume e de uma leitura do mundo também perfilhada pelo olhar do biólogo que Mia Couto é.
O leitor voa nestas crónicas contemplando e descobrindo segredos da paisagem, do reino animal, do mundo, da história e da vida, desvendando um país, encontrando-se com marcas de identidade(s) do outro e de si. São crónicas felizes estas, em que o cronista usa a palavra para a sua vocação de viajeiro e partilha as suas aprendizagens com outros intervenientes nas crónicas, com os próprios leitores, assim lhes apresentando um país, pintado com as cores da diversidade, num quase roteiro de moçambicanidade.
Sublinhados:
Beleza – “A beleza do futebol não está no golo. Como na arte do namoro: o fascínio está nos preparativos. O encanto está no que não pode ser traduzido nem em número nem em palavra.” (12)
Vida – “Pode haver um mister para as artes da bola. Mas o único treinador para as lides da Vida somos nós mesmos.” (16)
Paraíso – “O paraíso não é um lugar, é um breve momento que conquistamos dentro de nós.” (23)
Acreditar – “Há coisas que fazemos por acreditarmos. Outras coisas passamos a fazer por deixarmos de ter crença.” (59)
Verdade – “Por vezes a resposta é errada simplesmente porque a pergunta é incorrecta. (…) Certas coisas são verdade numa dada relação, num dado momento.” (69)
Lugar – “Os lugares são da natureza, pensamos. E não há mais que pensar. Mas os lugares foram fabricados por histórias. E são fazedores de tantas outras histórias.” (75) “Os lugares só são nossos quando cabem num nome. Quando os reduzimos a palavras, simples como coisas que se arrumam na algibeira. Ao fim de um tempo, porém, o nome acaba substituindo o próprio lugar.” (108) “Não é o voarmos sobre os lugares que marca a memória. É o quanto esses lugares continuarão voando dentro de nós.” (115) “Os lugares não se comparam. Como as pessoas, cada um deles acontece num momento único, numa única e irrepetível vida.” (118)
Fotografia – “O mais importante nunca se pode fotografar (…). O que fica para sempre, o que nos revolve a alma é o que não pode ser capturado pela moldura.” (103)
Ilha – “As ilhas são como pessoas: querem existir por si mesmas mas receiam a lonjura.” (111)
Bichos – “A ética dos bichos não pode ser transferida para o nosso universo social, a não ser em texto de fábula.” (122)
Menino – “Ser menino é estar cheio de céu por cima.” (129)

sábado, 27 de junho de 2009

Sobre exames, que se está no tempo deles

Diário da Auto-Estima – 102
Exames I – Os exames nacionais dos Ensinos Básico e Secundário têm causado pouco impacto nos media, ainda que algumas opiniões tenham já saltado para a ribalta a falar da facilidade e do futuro enriquecimento dos dígitos positivos na estatística. O costume. Os resultados o dirão e, como é óbvio, servirão para cimentar opiniões, ainda que diversas. O resultado de um exame vale o que está estabelecido e é também fruto de condicionantes momentâneas. É sempre a consequência de um princípio social e politicamente aceite. Deve ser ponderada a interpretação do que ele significa quanto ao valor do trabalho de um ciclo ou de um ano de estudos. Nos exames, o momento ou a estrutura da prova também contam para quem tem que a resolver. E estes aspectos também têm o seu quê de convencional. Depois, virão os “rankings”, uma amostragem ou uma seriação que vale o que vale porque existem muitas condicionantes escondidas para que os resultados sejam aqueles, a começar pelos melhores… E choverão as pressões quanto às opções, deslizar-se-á sobre o porquê de serem estas escolas e não outras no princípio ou no fim… como se tudo fosse um jogo de sorte ou de azar apenas… E tudo acalmará logo que a época passe!
Exames II – Leccionei Língua Portuguesa de 9º ano. Sei como os meus alunos foram para o exame. Todos partilharam a noção de que os enunciados de exame eram mais fáceis do que os testes havidos ao longo do ano lectivo. Isto podia causar-lhes ilusões, que tentei desfazer. O exame de Língua Portuguesa de 9º ano respeitava o programa, mas aparecer uma pergunta pedindo para assinalar, de uma lista de 10 palavras, as 5 graves é, do meu ponto de vista, descer a fasquia e pôr perguntas ao nível das provas de aferição de 4º ano. Por outro lado, não haver sequer uma alínea que testasse as funções sintácticas ou os recursos expressivos é falta que me parece exagerada. Tudo isto pode parecer pormenor, eu sei. Mas não é, porque, mesmo num exame, deve haver reflexão sobre a língua e sobre a matéria leccionada. E os alunos de 9º ano já têm condições para fazer isso! Consequência: “Ó professor, o exame foi fácil, bué de fácil!” Não sei porquê, mas fica-me sempre a dúvida de tal facilidade. “Vamos ver! Oxalá as notas sejam boas, claro!”, respondo. Vamos ver, pois!
OBS: Esta crónica deveria ter saído no Correio de Setúbal de hoje.
Por razões de calendário e de prazos de entrega, não saiu.

sábado, 13 de junho de 2009

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Sobre heróis (de ontem e não de hoje...)

Na habitual rubrica “Viagens na história” que assina na revista Tempo Livre, João Aguiar escolheu para título deste mês “Como o tempo passa!” (Tempo Livre. Lisboa: INATEL, nº 195, Julho/Agosto.2008, pg. 54). O texto foi escrito em época das euforias do Euro 2008 e pretende falar de heróis…
Nuno Álvares Pereira (séc. XIV), Luís de Camões (séc. XVI), Luís da Câmara Pestana (1863-1899), Aníbal Augusto Milhais (mais conhecido por “soldado Milhões”, 1895-1970) e Teixeira de Pascoaes (1877-1952) são os cinco heróis portugueses escolhidos por João Aguiar, homens que, “nos seus diversos domínios, conseguiram realizar obras verdadeiramente importantes que marcaram o rumo da nossa História”, cada um deles por uma boa razão – pela genialidade estratégica e pelo misticismo, pela poesia e pelo aventureirismo, pela luta contra a peste bubónica, pela acção na 1ª Grande Guerra e pelo prestígio na cultura, respectivamente.
E que tem isto tudo a ver com o Euro 2008? Eis a conclusão, de necessária leitura para rejeitarmos os excessos que nos foram impingidos, com a ajudinha costumeira da comunicação social, em tempo de simultaneidade de crise e de construção de heróis:

Poderá já vir um pouco fora de tempo, porque a época do Euro 2008 já passou… Mas esta opinião ajuda a perceber a grandeza dos desgostos assim como os excessos a que aderimos!

terça-feira, 15 de julho de 2008

Como a "pen drive" da Maia anda a agitar o mundo

A crónica intitula-se "O mundo inteiro numa pen drive", é assinada por Nuno Pacheco e vem no Público de hoje:
«Se julgavam que o último grito em matéria educativa eram os artifícios para simplificar os exames de Matemática e fazer de todo o aluno um génio em potência, esqueçam. Há mais e bem melhor do que isso. Na Maia, um sistema revolucionário vai permitir aos mais tenros rebentos em idade escolar andarem mais leves e deixarem de vez aquelas terríveis mochilas que os fazem parecer turistas de inter-rail. Além do mais, é simples e conciso. Basta pôr tudo numa pen drive. E a dita cuja no bolso. O velho Caderno Diário do tempo dos avós dará, assim, lugar a um novo Caderno Digital. A heróica tarefa tem já data de arranque e no próximo ano lectivo a felicidade invadirá o básico. Pelo menos os lugares (além da Maia) onde a tal pen drive substituir os pesados livros e cadernos.
Para quem não sabe o que é uma pen drive, digamos que é uma espécie de disco rígido de computador disfarçado de caneta. É pequena e tem vindo a ganhar memória, como se fosse uma esponja ou uma amiba. No curto espaço de escassos centímetros armazena-se hoje o que há 30 anos exigiria salas inteiras. É o progresso. E como deixar as crianças longe dele? De modo algum. Assim, tira-se-lhes peso das costas e põe-se-lhes tudo no bolso. "Menino, onde estão os trabalhos de casa?" "Tá tudo aqui na pen drive, stôr." E os cadernos? E os apontamentos da aula de ontem? Pen drive, claro. E os conteúdos, perdão, os livros? Na pen drive, onde haviam de estar? O projecto tratará do assunto.
E as canetas, os lápis, as borrachas, aquelas coisas que servem para escrever, para apagar, para rascunhar e escrever de novo? No museu. Porque agora há a pen drive. Escrever é só no computador, com teclas. À mão cansa. E a caneta pesa. E não cabe na pen drive.
Neste dilema revolucionário, os alunos vão começar a atirar para a pen drive tudo o que puderem. Até o lanche há-de um dia, miraculosamente, ser-lhes servido numa pen drive. Exagero? Esperem pelo futuro. Até lá, porque as coisas são assim mesmo, há que pensar em que ranhura vão os pequenos estudantes encaixar a respectiva pen drive. Terão um computador para cada um, certo? Ou vão fazer fila no computador único da aula, para descarregar a "mala" enquanto os outros ficam a ver? Dúvidas ridículas. Certamente que os autores do projecto pensaram em tudo. Como tornar produtivo tal sistema, como evitar que as crianças não tragam na pen drive o que habitualmente trazem (jogos, fotos, brincadeiras, etc.), como fazer disto tudo uma coisa eficaz e responsável. Sim, porque até os professores já trazem tudo o que precisam em pen drives. Eles e os gestores, os empresários, os corretores da bolsa. As pastas que trazem na mão é só para disfarçar. Na verdade, tudo aquilo de que realmente necessitam já vem no bolso, no disco de plástico.
Os anos que perdemos numa confusão de papéis! Agora, o admirável mundo novo das pen drives, além das maravilhas na redução de peso, trará conteúdos didácticos, quadros interactivos, jogos pedagógicos. Trará até interfaces da escola com a autarquia. E da escola com os pais. E de todos uns com os outros, que é para isso que estas coisas servem.
Se trará ou não melhores alunos é o que ninguém consegue ainda saber. Mas isso é porque ainda não conseguem metê-los em pen drives, embora o desejassem. Há-de chegar o dia e, nessa altura, serão mais portáteis. Em lugar das carrinhas para levá-los até à escola, bastará um distribuidor de pen drives. E com um saco bem pequeno. Quando finalmente dermos cabo do mundo, podemos deixar as sobras numa pen drive. Assim, os extraterrestres não terão dificuldade em encontrá-lo. Desde que tragam com eles um laptop, claro. Nas viagens intergalácticas, há que andar sempre prevenido.»