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sábado, 5 de dezembro de 2009

Diário da auto-estima (104)

Minaretes – O resultado referendário na Suíça a favor da proibição dos minaretes acabou por apanhar muita gente de surpresa. Afinal, os fundamentalismos vivem a Oriente, a Ocidente, no mundo islâmico como no europeu ou em qualquer outro. Educar, num mundo como este, é bem difícil, sobretudo quando estão em causa questões como a igualdade, a liberdade, a tolerância, o respeito pelo outro. De que serve falar-se disto se as decisões e as políticas apregoam outra coisa, se a sociedade se encaminha por vias como a suíça?
Insultos I – Apenas ouvi por momentos o debate da Assembleia da República numa estação de rádio. E chegou. O verbo anda muito por baixo naquele espaço e as convicções e os princípios não lhe ficarão atrás. O país assistiu ao enxovalho pelo vocabulário – “lançar lama e suspeição”, “actuação que degrada, (…) indigna, infamante” e que “não devia ter lugar”, “não saber o que é ter vergonha”, “comportamento impróprio”, recomendações a deputado do género “porte-se com juizinho”… Mas em que país estamos? Por vezes, rimo-nos de cenas de pugilato em parlamentos que vão sendo designados como “terceiromundistas”, mas o que nos separa dessas situações é pouco – naqueles, é pugilato físico; no nosso, é pugilato verbal.
Insultos II – Há dias, fui a uma escola para falar de Sebastião da Gama. Durante a sessão, destinada a várias turmas do secundário, os alunos de um grupo foram falando entre si, suscitando chamadas de atenção de alguns professores da escola e interrupções da minha apresentação. A dada altura, uma aluna desse grupo, aos berros, vira-se para um dos professores a contestar uma chamada de atenção quanto ao barulho que lhe tinha sido feita. Um pouco mais tarde, houve o toque da campainha, a assinalar o final de aula (que não o final da sessão) e a mesma aluna, com o gáudio dos que a acompanhavam, desatou a dizer que tinha de ir embora por causa do transporte e não sei que mais. Um dos professores, porque a sessão estava prestes a terminar, recomendou-lhe alguma calma e, novamente aos berros, a criatura responde: “Porquê? Vai levar-me a casa? Mas o que é isto?” e sai porta fora, perante o pasmo de quase todos e os sorrisos e algumas palmas cúmplices dos do seu grupo. A sessão acabou dali a minutos. Os professores desfizeram-se em desculpas. Um explicava-me que aquele grupo era de alunos que não queriam a escola, que só ali estavam porque houve a possibilidade de um curso profissional, que a posição habitual daqueles alunos relativamente à escola era aquela. Não estranhei e lá fui dizendo que conhecia a situação. O que me preocupa é que estes alunos poderiam ter visto o debate de que falei no parágrafo anterior (a força da agressão pela palavra e pelo falar mais alto, por exemplo) e continuariam a achar que os seus procedimentos foram os mais correctos; o que me preocupa é que, em nome do progresso e de outros valores, a escola pública vai ser, cada vez mais, o cadinho onde vão crescer grupos assim, que lá estarão obrigatoriamente até que concluam um qualquer 12º ano, originando que as condições de trabalho e de participação e aprendizagem dos outros e de todos nem sempre sejam as melhores. O que me custou foi ver que não há soluções para este tipo de atitudes, de provocação, de humilhação. Ah, esquecia-me de dizer, mas ainda vou a tempo: a cena não se passou numa escola degradada nem numa escola-problema de qualquer bairro socialmente desfavorecido, nem sequer na Margem Sul, não. E mais: apesar de poder parecer um caso isolado, resta saber se os casos isolados não serão tantos que não exijam medidas superiores para que o respeito e a educação façam parte da escola.

sábado, 29 de agosto de 2009

Hoje, na página "Correio de Setúbal", do "Jornal Sem Mais"

Diário da Auto-Estima – 103
Agosto – Habitualmente, a resposta que ouvimos é a de que “está tudo para férias”. Se (já) não fecham empresas para esse efeito, minimizam pelo menos alguns serviços, há sempre alguém que era fundamental para resolver um problema e que está de férias… Com frequência se ouve na loja a desculpa equivalente: “Sabe, agora está tudo de férias, é um mês para esquecer, só podemos contar com esse artigo lá para Setembro, para meados, talvez…” E Agosto vai-se rebolando em banhos de calor, com o céu por vezes acinzentado. E as férias vão passando, na tentativa de se pôr em dia coisas que se foram atrasando… Talvez, quem sabe?, talvez fique tudo organizado…
Algarve – O que aconteceu na praia Maria Luísa, em Albufeira, foi uma tragédia. Mas a reacção do país foi escassa. O que diferencia, em termos de envolvimento social, este acidente do que há anos ocorreu com a ponte de Entre-os-Rios? O número de vítimas? A época do ano? A sociedade que temos? Fiquei incrédulo com as mil e uma explicações que ouvi nos “media” para justificar o sucedido: desde as afirmações de responsáveis no sentido de que o risco não era elevado (pelo menos o suficiente para uma intervenção que deveria ter acontecido), até ao passar a ideia de que ninguém tinha responsabilidade no assunto, passando pela justificação de um sismo sentido dias antes na costa algarvia e até pela falta de cuidado dos veraneantes… Tudo serviu como desculpa, nada serviu para assumir a responsabilidade em termos de segurança ou de precaução. Por razões não tão fortes como a insegurança de uma arriba do género da que naquela praia vitimou cinco pessoas (e que, soube-se depois, já tinha suscitado chamadas de atenção de locais e de concessionários), têm sido encerradas ou condicionadas praias. O que faltou para que ali não tivesse havido acção mais exigente? E ainda outro argumento que ouvi: não se pode assumir a responsabilidade por cada metro de costa onde pode acontecer um acidente natural. Espantoso! Então, para alijar responsabilidades, a força da Natureza já pode ser invocada, enquanto para os actos urbanísticos que têm contrariado a mesma Natureza idêntico argumento não tem servido!... Afinal, há tantas instituições com responsabilidades sobre a costa e nenhuma conseguiu prever melhores condições de segurança para ali?

sábado, 11 de julho de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

... a crónica do "Diário da Auto-Estima" que aqui publiquei em 27 de Junho. Sobre os exames de Língua Portuguesa de 9º ano e reacções dos alunos à prova. A propósito: na segunda-feira, já vamos ver os resultados desse exame... que me merecem preocupação, como já expliquei.

sábado, 27 de junho de 2009

Sobre exames, que se está no tempo deles

Diário da Auto-Estima – 102
Exames I – Os exames nacionais dos Ensinos Básico e Secundário têm causado pouco impacto nos media, ainda que algumas opiniões tenham já saltado para a ribalta a falar da facilidade e do futuro enriquecimento dos dígitos positivos na estatística. O costume. Os resultados o dirão e, como é óbvio, servirão para cimentar opiniões, ainda que diversas. O resultado de um exame vale o que está estabelecido e é também fruto de condicionantes momentâneas. É sempre a consequência de um princípio social e politicamente aceite. Deve ser ponderada a interpretação do que ele significa quanto ao valor do trabalho de um ciclo ou de um ano de estudos. Nos exames, o momento ou a estrutura da prova também contam para quem tem que a resolver. E estes aspectos também têm o seu quê de convencional. Depois, virão os “rankings”, uma amostragem ou uma seriação que vale o que vale porque existem muitas condicionantes escondidas para que os resultados sejam aqueles, a começar pelos melhores… E choverão as pressões quanto às opções, deslizar-se-á sobre o porquê de serem estas escolas e não outras no princípio ou no fim… como se tudo fosse um jogo de sorte ou de azar apenas… E tudo acalmará logo que a época passe!
Exames II – Leccionei Língua Portuguesa de 9º ano. Sei como os meus alunos foram para o exame. Todos partilharam a noção de que os enunciados de exame eram mais fáceis do que os testes havidos ao longo do ano lectivo. Isto podia causar-lhes ilusões, que tentei desfazer. O exame de Língua Portuguesa de 9º ano respeitava o programa, mas aparecer uma pergunta pedindo para assinalar, de uma lista de 10 palavras, as 5 graves é, do meu ponto de vista, descer a fasquia e pôr perguntas ao nível das provas de aferição de 4º ano. Por outro lado, não haver sequer uma alínea que testasse as funções sintácticas ou os recursos expressivos é falta que me parece exagerada. Tudo isto pode parecer pormenor, eu sei. Mas não é, porque, mesmo num exame, deve haver reflexão sobre a língua e sobre a matéria leccionada. E os alunos de 9º ano já têm condições para fazer isso! Consequência: “Ó professor, o exame foi fácil, bué de fácil!” Não sei porquê, mas fica-me sempre a dúvida de tal facilidade. “Vamos ver! Oxalá as notas sejam boas, claro!”, respondo. Vamos ver, pois!
OBS: Esta crónica deveria ter saído no Correio de Setúbal de hoje.
Por razões de calendário e de prazos de entrega, não saiu.

sábado, 13 de junho de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal" ("Sem Mais Jornal")

Diário da Auto-Estima – 101
Europa I – Será lugar-comum o que vou dizer, mas corro o risco: a campanha eleitoral para o Parlamento Europeu ludibriou-nos quanto à Europa. Bem se podia procurar pela Europa… pela Europa… pela Europa… Nada. No fundo, perpetua-se o que tem acontecido: a distância relativamente à causa europeia é superior à distância geográfica que separa Portugal de Bruxelas…
Europa II – Vamos imaginar que na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu se falou apenas da Europa, excepto na circunstância de fazer jeito para justificar o acto. Poderia ter sido de outra maneira?
Europa III – Será que este esquecimento de assumir a Europa como tema de campanha se deveu ao facto de nos sentirmos tão europeus que já nem vale a pena chamar a atenção para isso?
Europa IV – O que significa um político, mesmo que português, dizer que “assume as responsabilidades políticas”, a título individual, em exclusivo, por um resultado que lhe foi desfavorável e que foi também desfavorável ao partido que representa? Será uma fórmula politicamente correcta apenas, que fica bem e é heróica num tal momento?
Escola – Está a terminar o ano lectivo. Saudades de momentos bons, vividos com alunos, que deram vida à Escola. A lembrança de tempos menos bons, quando a irreverência dos alunos prejudicou o trabalho e a atenção dos outros. A vertigem do tempo – “ó professor, o ano já está a acabar?” A sensação de que este ano lectivo foi mais desgastante do que outros, sem que isso tivesse capitalizado a favor dos estudantes ou de uma escola mais feliz.
Cavalas – Uma exposição sobre Setúbal e o “Polis” está nas instalações que foram do Banco de Portugal. Acompanham-na vários roteiros, editados em fascículos, cada um correspondente a uma dada área da cidade. De onde terá vindo a ideia, registada no primeiro fascículo, a propósito da lenda da Senhora da Anunciada, de que “uma peixeira pobre estava a assar cavalas quando uma delas saltou do fogo”? Será para dar mais substância à lenda ou porque… quem conta um conto acrescenta um ponto? Diga-se que as cavalinhas, neste caso, não eram necessárias…
[OBS: O Correio de Setúbal passou a integrar, a partir da edição de hoje, a paginação do Sem Mais Jornal,
que é distribuído com o semanário Expresso na região de Setúbal.]

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 100
Gomes Sanches I – Muitas vezes nos encontrámos. Invariavelmente, na Culsete, em Setúbal, à volta de livros e de conversa, motivados pelo seu quê de tertúlia com o Manuel Medeiros. Sempre com uma pasta ou com livros. De poesia. Entremeados com umas folhas manuscritas. De poemas. Por vezes, fez de mim primeiro leitor. E, braços abertos, declamava, que as palavras, quando ditas, podem ser mais próprias e mais intensas do que quando escritas. Gosta? Eram poemas da (sua) vida. Nas sessões culturais animadas pelo Medeiros, na mesma Culsete, ele estava sempre presente. E intervinha. Normalmente com poema. Nem sempre de sua lavra, que Pessoa era um dos seus favoritos. No dia 2 de Maio, soube da sua morte, ia eu a caminho de uns livros. Logo ali me atacou a saudade e me inundou a memória. E, ao chegar a casa, tive que espreitar alguns dos seus poemas.
Gomes Sanches II – José dos Reis Gomes Sanches nasceu em Aldeia Velha, no Sabugal, em Janeiro de 1936. Na juventude, estudou em Vila Nova de Gaia. Cursou Direito, tendo estudado em Coimbra mas concluindo a licenciatura em Lisboa. Vivia em Setúbal desde 1977. Deixou publicadas as obras Percurso de circunstâncias (Setúbal: 2002) e Espaço de memórias (Setúbal: 2006), ambas em edição de autor.
Censura – Continuo sem perceber o que pode levar uma cadeia de supermercados a recusar vender um livro de João Ubaldo Ribeiro, que foi Prémio Camões. Já não bastava a ditadura dos gostos no consumo, ainda faltava a censura literária! Deve o sapateiro…?
Setúbal – Não tenho compromisso para as eleições autárquicas com ninguém. Espero ver as propostas que os candidatos vão apresentar, mas já há coisas estranhas: o que pode trazer de útil uma candidatura que se anunciou com o objectivo de contestar a actual Presidente de Câmara, não tendo esse anúncio uma palavra que fosse para Setúbal, antes denotando uma guerra pessoal? Na verdade, o concelho de Setúbal não merecia tão pouco ou tão nada...
Cem – É isso. Esta é a centésima página do “Diário da Auto-Estima”, que aqui se vai escrevendo desde 15 de Outubro de 2004. Com as marcas da efemeridade, claro. E com os (des)gostos que tecem os dias. Vale a pena, leitor?

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 99
Dicionário – Será que as definições apresentadas na crónica anterior mexeram, fizeram sorrir, aclamaram a indiferença? Mais algumas: uma “bomba” é “o que faz o som bom-bom”, “marisco” é “peixe de concha”, “magano” é “encantador com falsos afagos”, “bacharel” é “falador formado”, “cachaço” é “caixa dos miolos”, “pia” é “vaso de purificar pelo baptismo e de beber o gado”… Estas definições e as que transcrevi na anterior edição devem-se ao padre Bernardo Lima e Mello Bacelar, prior no Alentejo e, depois, franciscano, época em que tomou o nome de Frei Bernardo de Jesus Maria. Em 1783, publicou em Lisboa um Dicionário da Língua Portuguesa (de onde são retiradas as definições), que acabaria por ser proibido por causa dos sarcasmos lançados sobre o redactor e sobre a sua obra. Registou Inocêncio Francisco da Silva que este autor, “à força de querer ser conciso e sistemático em demasia, tornou-se escuro e, por vezes, ridículo”. E assim tem o leitor a história brevíssima de um dicionário português que se deixou tramar pela linguagem utilizada… Sente-se a razão que teve Daniel Pennac ao escrever que “os dicionários só nos garantem um leve sopro de eternidade” (em Mágoas da escola, 2009).
Sebastião da Gama – O mês de Abril teve, em Setúbal, Sebastião da Gama como uma das personalidades a evocar. Participei em algumas e sinto-me obrigado a fazer referência a duas: a primeira, em 18 de Abril, no Clube Setubalense, organizada pela professora Ermelinda Capoulas, da Escola Secundária Sebastião da Gama, com alunos de duas turmas de 8º ano, pelo esmero e empenho que os jovens puseram na selecção, organização e apresentação do poeta ao público (maioritariamente familiares dos participantes); a segunda, em 23 de Abril (Dia Mundial do Livro), na Escola Secundária da Bela Vista, em que alunos do 3º ciclo assistiram a uma sessão sobre o poeta, atentos e interessados, colaborantes e curiosos, contribuindo com a leitura de alguns poemas do “poeta da Arrábida”. Apetece perguntar: que é que a poesia de Sebastião da Gama tem que atrai a juventude? Ou: quais são as faltas que a poesia de Sebastião da Gama supera?

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 98
Perdidos – Na recepção de um parque de diversões destinado a famílias, surge uma inscrição sobre fundo metálico a dizer: “Pais perdidos, perguntem aqui pelas vossas crianças.” Assim, de repente, parece que o mundo se inverte: pais perdidos? Exactamente. A frase envia os leitores em várias direcções: num tal parque, todos os utilizadores se confrontam com a criança que há dentro de si e vão atrás dos apelos da fantasia; a infância define a sua orientação no parque; aquele que não se envolver com uma dose de infância qb sentir-se-á perdido; os pais devem andar atentos aos filhos e por isso ser responsabilizados. Assim, não serão as crianças que se perdem, mas os progenitores. Pelo menos, do ponto de vista emocional e da responsabilização. O mundo, numa tal situação, ficará, de facto, ao contrário. Mais vale não experimentar!
Estacionamento – Em Setúbal, no troço da Avenida Luísa Todi entre o mercado e o quartel do 11, em ambos os sentidos, o automóvel perdeu lugares de estacionamento, seja pela configuração atribuída ao novo estacionamento e ao arruamento, seja pela quantidade de lugares privados atribuídos. Neste tipo de decisões, se era pretendido que lá não houvesse carros, que se assumisse isso, transformando a Avenida em lugar de passagem apenas. Ir à “baixa” da cidade e frequentar o seu comércio tornou-se mais complicado. Não admira, pois, que a movimentação das pessoas se faça noutras direcções…
Dicionário – O leitor já imaginou as implicações sociais e culturais de um dicionário? Já pensou que o próprio conceito de definição sofre os efeitos dos tempos? O que diria de um dicionário que lhe definisse “acordar” como “tornar a cogitar acabando o sono”, “bigode” como “duas torcidas da barba”, “bilha” como “vaso que faz o som bil bil no vasar”, “cabra” como “animal de pêlo”, “carneiro” como “ovelha macha”, “cuecas” como “panos do cu”, “gaiola” como “vaso furado para ter pássaros”, “macaco” como “animal de trejeitos delirantes”, “vértebra” como “dobradiças das costelas” ou “vertigens” como “rodadura do cérebro”? Pois esse dicionário existe. Deixo a sua história para a próxima crónica, porque espaço é coisa que não sobra por estes lados…

sexta-feira, 27 de março de 2009

sexta-feira, 13 de março de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 96
Internet tem tudo? – O rapaz só gosta de futebol. A propósito de tudo e de nada, o futebol, especialmente o seu clube, é base para todas as sustentações. Com isto, distrai-se do essencial. Ler? Difícil para o que esteja para lá dos jornais desportivos… Recomendei-lhe um livro com uma história passada no universo do futebol: Desporto Rei, de Romeu Correia. Que o procurasse em biblioteca, porque já há muito tempo que não era reeditado. “Não faz mal, vou à net e faço uma cópia…”, disse-me orgulhoso com a solução. E lá está como se generalizou a ideia de que a net é a salvação de todas as almas! Não é, não. Absolutamente. Não tem tudo, não ensina tudo, não informa tudo. Expliquei-lhe e admirou-se. Ficou mesmo decepcionado com a revelação… Paciência!
Solidariedade – Aproximam-se no intervalo, dizendo que me querem falar. Era por causa de um amigo, colega de turma, que, argumentando querer curtir a vida, estava a transitar em caminhos um pouco esconsos: tabaco e outros fumos, agressividade nas respostas, descida na qualidade de trabalhos realizados na escola, um ar estranho e de solidão e álcool à mistura. Era a minha vez de demonstrar estupefacção… ou de comprovar aquilo de que suspeitava… “Mas tem que se fazer alguma coisa por ele, professor!” “Pois é, somos amigos e amigas dele e não gostamos de o ver assim.” “Lembrámo-nos de vir ter consigo, embora muitas coisas se passem fora da escola…” “Os pais dele não sabem, mas era melhor o professor fazer alguma coisa…” “Connosco, ele também já não liga e quer que o deixemos em paz…” E lá se parte para mais uma história em pedaços, engrenando na solidariedade e amizade dos colegas de turma. É o mínimo a fazer.
Língua Portuguesa – O tratamento que lhe foi dado pelo computador “Magalhães” é inacreditável. Não porque fosse impossível (não foi); não porque seja caso único. O semanário Expresso descobriu-lhe, nas instruções de actividades, 80 erros de ortografia, de acentuação, de sintaxe. Estas instruções eram para ser lidas por alunos. Não houve nenhuma tarefa de revisão linguística, que era o mínimo que devia ter sido feito. Incompetência a vários níveis, claro!
Vida – “A vida dos homens, a sua transformação, é rápida, vertiginosa; a da terra, a das coisas, leva séculos e dá-nos por isso uma impressão de eternidade.” (Américo Olavo, Na Grande Guerra, 1919).

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 95
Carnaval – Os festejos carnavalescos deste ano tiveram animações inusitadas, que conseguiram ser uma paródia ao Carnaval ele mesmo: a primeira foi em Torres Vedras, com a proibição de um quadro satírico alusivo ao “Magalhães” em que apareciam sugeridas figuras femininas desnudadas, um pouco à semelhança das janelas que se abrem na busca na net; a segunda foi em Braga, com a apreensão de livros, numa feira de saldos, em cujas capas constava a reprodução do (ainda agora, pelos vistos) polémico quadro L’Origine du Monde, de Courbet, peça de 1866. Uma e outra interdições surgiram em nome da luta contra a pornografia. Momentos depois de uma e outra acontecerem, as decisões voltaram atrás – em Torres Vedras, o “Magalhães” pôde desfilar mostrando as ditas senhoras; em Braga, os livros foram devolvidos aos seus proprietários. Há duas questões que saltam à vista: a primeira relaciona-se com a liberdade de expressão; a segunda, com a vulnerabilidade de actos do género e com a fragilidade das decisões. O sentido de humor português anda pelas ruas da amargura, parece. Mas não faltam candidatos à caricatura. Houve consequências destes dois actos: ao que consta, o Carnaval de Torres teve muito curioso para ver a origem da proibição depois desfeita; o quadro de Courbet foi reproduzido a esmo, sem cintas censórias.
Futebol – Depois de ver algumas cenas em torno do mundo do futebol, tenho que citar Romeu Correia, o autor almadense que, em 1955, abriu o seu livro Desporto Rei com a seguinte afirmação: “Em desporto, o desenvolvimento físico dos indivíduos importa acima de tudo. Mas, se ao aperfeiçoamento do corpo se alia o domínio dos nervos, a decisão e o espírito de equipa, que se forjam na harmonia e no ritmo dos jogos, o Homem atinge o seu apogeu físico e espiritual.” Isto é bonito. Mas também deve servir para as claques e para o público em geral. A propósito: nesse romance de Romeu Correia, perpassa muito do que é hoje o mundo do futebol. Pena não haver edição recente!
Joaquina Soares – Um livro de poemas com a chancela do Centro de Estudos Bocageanos, Corpo de Palavras. Apresentado em Setúbal na noite desta última sexta-feira de Fevereiro. Um pequeno poema intitulado “Milagre com rosas”: “Defronte da ponte de aço, / Isabel / retirou / pão do regaço. / - Flores? / - Não, meu senhor, / panos de linho, / para sarar cansaços.” A ler.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

No "Correio de Setúbal", ontem

Diário da Auto-Estima – 94
Onde está? – Desde o início do ano que ando à procura do Correio de Setúbal. É sabido: teve a interrupção natalícia e retomou a saída com novo formato e distribuição gratuita. E onde está? Dizem-me que no sítio tal e também no sítio xis. Mas um e outro são distantes. Mas não está onde sempre esteve – na loja onde me dirijo há anos para comprar jornais ou revistas e onde adquiria o Correio de Setúbal. Questão de hábitos, eu sei. Mas tenho que os mudar? Entretanto, vou ouvindo lamentos de outros leitores com vícios semelhantes… Espero, pois, que o jornal regresse aos sítios habituais. Por compromisso com os leitores, independentemente de ser pago ou de ser oferecido.
Escola – Triste, cada vez mais triste, vai sendo o ambiente dentro das escolas. Onde havia relações profissionais com considerável dose de familiaridade e de partilha há agora afastamentos e individualismos. Foi isto que se produziu. Até ao momento, ainda não vi que da transformação adviessem melhorias para o sistema educativo ou, para ser mais claro, para os alunos. A responsabilidade não pode ser apenas do neo-liberalismo, que ninguém conhece. Nem da crise, que veio depois. Nem da globalização, que é boa ou má consoante o que queiramos.
Política – Cada vez mais discutida na praça pública. Desinteressante. Com muita gente a dizer que não vai participar nos actos eleitorais. Também triste. E duas notas: as promessas governamentais à classe média (fantástico, não é?) e Ramalho Eanes a chamar a atenção para o facto de as campanhas eleitorais terem de deixar a folclorice. E uma outra: localmente reproduz-se, com frequência, o modelo nacional. Não porque seja bom, mas pelo folclore.
Palavras – “Hoje em dia, toda a gente evita chamar as coisas pelos nomes: um cego é um invisual, um animador de televisão um artista, os mortos em breve serão não-vivos.” (Philippe Claudel, Desisto, 2006, em tradução portuguesa de 2009). Poderíamos acrescentar a expressão “politicamente correcto”, que serve para impedir o murro que por vezes apetece dar na mesa.
Adenda: Já depois de escrita a crónica, fui informado de que poderia ler o Correio de Setúbal, assim como os outros títulos do grupo (Sem Mais Jornal e Jornal Concelho de Palmela), na net, em pdf. Basta clicar para aqui.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 93
Em Setembro passaram 50 anos sobre a publicação póstuma do Diário de Sebastião da Gama. Agora, em 11 de Janeiro, passaram 60 anos sobre a data em que a mesma obra começou a ser redigida.
Janeiro, 11 – Para começar, falou connosco durante uma hora o senhor Dr. Virgílio Couto. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. (…) Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais que todas as outras: «O que eu quero principalmente é que vivam felizes».
É este o primeiro registo que o leitor pode encontrar no Diário, começado a ser redigido em 11 de Janeiro de 1949, por recomendação do próprio professor metodólogo, apresentado como um exercício de reflexão da prática lectiva. E Sebastião da Gama respeitou a sugestão e usou-a a rigor: por estas páginas, passa o mais impressionante de um ano da relação de um professor com uma turma, as reflexões de um docente, a palavra dos alunos (que aqui têm voz própria, são transcritos e referidos), uma formação humanista extraordinária, uma cultura vastíssima, um conhecimento da literatura alargado, a discussão de práticas e a adopção de modelos, uma sensibilidade espantosa para a causa educativa, muitas reflexões pessoais. Mantém, volvidas seis décadas, toda a frescura da juventude de um professor e dos seus alunos, toda a crença na formação humana, todo o respeito pelo outro, ambos comungando numa vida de sinceridade e de aprendizagem do mundo. Ainda hoje se torna pertinente lê-lo e, provavelmente, a sua leitura ajudaria a encontrar soluções para muitos dos problemas de que a educação enferma no presente.
“O que eu quero principalmente é que vivam felizes” bem poderia ser o lema a adoptar para a área da educação nos tempos que correm. Este desafio é, simultaneamente, a chave que convida para a leitura e para a apreciação de uma obra cujo conhecimento se afigura incontornável, apesar dos seus 60 anos, sobretudo para quem tenha interesse na causa da educação, independentemente da função que aí desempenha.
[adaptação de postal aqui colocado nas vésperas de 11 de Janeiro]

sábado, 20 de dezembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 92
Escola – As recentes negociações entre o Ministério da Educação e a Plataforma Sindical pautaram-se pela desconfiança. E, enquanto tal, tiveram o resultado que mereciam: o peso da irredutibilidade, da obstinação e da teimosia, com resultado de empate. Era esperado mais de parte a parte – pelo respeito que deveriam merecer a Escola, a sociedade, os alunos e os professores. A presença no(s) poder(es) não pode ser a justificação para todos os fins. E a verdade, como disse recentemente Licínio Lima, é que, em educação, a pedagogia foi substituída pela economia. A semelhança está apenas na rima. É quase certo que, no futuro, ambas vão perder por causa desta confusão. Mas todos perderemos muito mais do que elas. Se me estiver a enganar, ficarei feliz…
Deputados – Haverá ainda algo para dizer sobre aquela cena maquiavélica que se passou na Assembleia da República quanto à presença ou ausência de deputados, voltada a notar porque uma votação que parecia ser escaldante volveu votação vencida? Haverá ainda algo a dizer sobre a sugestão de que a sexta-feira fosse libertada do trabalho dos deputados? Não podemos estar a ver o trabalho no Parlamento como uma coisa de somenos, como algo que soa a jogo combinado. Que interesse terão os cidadãos em aproximar-se dos políticos se as políticas andam distantes, se as aprovações parlamentares mais fazem lembrar estratégias do que convicções? E o pior é que o sistema se reproduz – quantas vezes se vê, em sessões públicas, alguns dos intervenientes a sair da sala no momento das votações, só para que o seu nome não lhes esteja associado? Creio que não é para isto que se vota…
Sebastião da Gama – O poeta da Arrábida tem um estudo que merecia e que já aqui sugeri na última crónica. Sebastião da Gama - Milagre de vida em busca do Eterno é o título de que se fala, devido a Alexandre Santos. Linguagem acessível (apesar de ser um trabalho académico), com dose quanto baste de registos biográficos que ilustram o passeio pela obra publicada. Uma chave para entender a escrita e o sonho do poeta de Azeitão, deambulando pela sua poesia e pelo seu Diário, na busca da alegria de viver e na construção de um caminho de amor feito. E fica a convicção de que o poeta, o homem e o pedagogo funcionavam em conjunto, num todo, numa forma poética de ser vida. E também a de que Sebastião da Gama ultrapassa em muito o interesse eventualmente apenas regional, antes sendo uma expressão importante da cultura portuguesa do seu tempo. A ler, obrigatoriamente.
2009 – O ano que está a chegar tem números redondos para gostos plurais. Eis algumas hipóteses de trabalho com a memória: 900 anos do nascimento de Afonso Henriques, 250 anos da morte de Bernardo Gomes de Brito, 200 anos do nascimento de José Estêvão, 150 anos do nascimento de António Feijó, centenário do nascimento de Soeiro Pereira Gomes, de António Pedro e de Adolfo Simões Muller, 90 anos do nascimento de Ricardo Alberty, 60 anos da morte de António Aleixo e 50 anos das mortes de António Botto e de Gago Coutinho. No que à região de Setúbal respeita, as oportunidades de celebrar a vida, a cultura e a memória são também algumas: 390 anos da morte de Frei Agostinho da Cruz, 200 anos da morte do Morgado de Setúbal, 150 anos do nascimento do Padre Cruz e de João Vaz, 80 anos do nascimento de José Afonso, 35 anos da morte de Celestino Alves e de Antoine Velge e, finalmente, 60 anos sobre o início da escrita do Diário de Sebastião da Gama.
Votos – Boas Festas é o desejo inevitável nesta quadra, que gostaria de transmitir a todos os leitores, ainda que sabendo que a realidade dos tempos é difícil. Seja com o calor do presépio, seja com o ritmo comercial e global do Pai Natal, votos de Boas Festas, pois! E também de um 2009 que seja o melhor possível!

sábado, 6 de dezembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 91
Escola – Na manhã do dia da greve de professores, o Secretário de Estado Jorge Pedreira dizia na rádio que o anterior sistema de avaliação de professores não passava de “um simulacro”. É injusto e não é verdade. Pode-se discordar do sistema, mas não se pode acusar de fingimento uma coisa que não era a fingir. Por inerência ou por convite, participei em Comissões de Avaliação e houve professores que não progrediram, outros a quem foi recomendado que refizessem o relatório de acordo com a legislação por pouco crítico ser o apresentado e outros que, tendo-se candidatado a “bom”, o viram recusado por não preencherem condições para tal. Isto, num tempo em que os sucessivos governos não tiveram a coragem de regulamentar a classificação de “bom” que estava prevista no Estatuto da Carreira Docente! Não é preciso estar-se a coberto de nenhum sindicato para dizer isto. Na tarde do mesmo dia, o Secretário de Estado Valter Lemos dizia que a adesão à greve fora “significativa”, mas regozijava-se porque a greve não tinha atingido os números que os sindicatos tinham alvitrado. E assim ficava a descoberto o essencial da luta: governo contra sindicatos e vice-versa, visto por um governante. Os sindicatos cavalgaram a onda de descontentamento? Acredito que sim. E o que fez o governo quando lhe deu jeito arranjar bodes expiatórios para explicar o que estava mal? Não esqueço que o discurso de tomada de posse do Primeiro-Ministro iniciou logo a abertura de hostilidades com grupos profissionais e com sectores económicos… Tudo em nome da explicação para problemas que os governos não têm conseguido (ou sabido) resolver. Assim como, na educação, não resolvem os desenhos curriculares desajustados, os programas mal concebidos, as cargas horárias dos alunos por vezes maquiavélicas, as disciplinas de pouca ou nenhuma relevância prática ou cultural…
Convento S Francisco – “Unus non sufficit orbis” (“um só mundo não basta”) é o título da exposição de fotografia e pintura que, até fim de Fevereiro, pode ser vista no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal. A fotografia é de José A. Carvalho (professor em Setúbal); a pintura é de Andreas Stöcklein (alemão residente em Setúbal, com trabalhos no âmbito da pintura e do azulejo). O tema de ambas as formas de expressão é o Convento de S. Francisco, em Setúbal, nelas perpassando uma quase poética das ruínas e, simultaneamente, um grito contra a incúria e contra a afronta à memória cultural, pois das obras expostas não anda distante o que é o actual estado desta peça do património construído em Setúbal ou o que tem sido o seu trajecto de cerca de seis séculos (a serem cumpridos dentro de dois anos, provavelmente sobre um monte de ruínas ou sobre uma degradação ainda maior). “O Convento que andou de mão em mão” – assim chamou Almeida Carvalho (1827-1897) ao Convento de S. Francisco, aquele que foi o primeiro convento fundado em Setúbal, em 1410, graças a D. Maria Anes Escolar, e que pertenceu a franciscanos e a jesuítas, foi propriedade particular, pertenceu ao Estado, albergou soldados, serviu de residência a famílias vindas de África aquando da descolonização, esteve a cargo da Casa Pia e… jaz ao abandono. Com cores de ruína. Com rugas de história. Com marcas de memória.
Três livros a não perder – Embarcações Tradicionais – Contexto físico-cultural do Estuário do Sado, editado pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, sobre barcos (construção, história) e a perícia da construção naval, aliados à fotografia e à pintura; Versos do Cantador de Setúbal, o terceiro volume dos poemas de Calafate (António Maria Eusébio), editados 26 anos depois do segundo volume, organizado por Rogério Peres Claro, com cantigas sobre a cidade e sobre a vida, que andaram em folhetos e, agora, surgem em livro; Sebastião da Gama – Milagre de vida em busca do eterno, de Alexandre Santos, sobre a alegria de poetar do poeta de Azeitão, obra a ser apresentada no Salão Nobre da Câmara de Setúbal na noite de 12 de Dezembro.
aditamento
Estas notas foram redigidas na quarta-feira à noite, dia da greve de professores, para respeitar o "timing" de elaboração do jornal em que colaboro. Entretanto, a questão das escolas, aliás, da avaliação do desempenho docente, já evoluiu, melhor, já teve (des)envolvimentos: tudo indica que vai voltar a haver diálogo e, ontem, na Assembleia da República, não foi aprovada uma recomendação de suspensão deste processo porque 30 deputados faltaram na hora de votar. Vale a pena ler o postal "Negociações envenenadas" do companheiro Campo lavrado...

sábado, 22 de novembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da auto-estima – 90
Sinistrados I – Em vários pontos do distrito de Lisboa, estão em exibição na praça pública automóveis sinistrados. Dizem os passantes que isto os impressiona, porque a visão de um carro destruído significa um encontro com a morte ou, pelo menos, a possibilidade de a morte ter andado próxima; significa também a necessidade de atenção, de cuidado e de responsabilidade que todos devem sentir e partilhar; significa, finalmente, que alguns já partiram, levados por um acidente que os colheu. Na verdade, tudo isto impressiona, sobretudo porque a fragilidade da vida também mexe connosco. Não podemos deixar de pensar no choque sentido quando nos confrontamos com um acidente. E, sobretudo, quando vemos corpos espalhados pelo alcatrão, em consequência de um embate. A frieza que se apodera de nós nesses momentos deixa-nos a oscilar nas nossas certezas e na nossa força. Mas esta ideia dos carros sinistrados em exposição pública vale por isso mesmo. Cada vez mais povoada, a estrada exige que o nosso cuidado, a nossa reflexão, a nossa participação e o nosso gosto pela vida estejam sempre em primeiro lugar.
Sinistrados II – Mas a ideia das viaturas sinistradas em exposição sugere também imagens de ciclos. Há muito tempo, as exposições eram apenas de viaturas novas, cativando pela novidade, associada ao conforto, ao luxo e à autonomia. Depois, vieram as exposições dos clássicos, com a intenção de fazer lembrar outros tempos, os mais antigos, e de levar as pessoas a visitarem a história dos transportes ou a reviverem o tempo de alguns modelos que se tornaram ícones. Seguiu-se a exposição de usados ou em segunda mão, surgida em espaços fechados ou, como agora se vê, em qualquer canto, com letreirinhos a anunciar a procura de novo dono. E, para fechar o ciclo, aparecem as exposições de viaturas sinistradas. Pode ser pós-moderno este gesto. Talvez simbolicamente se esteja perante o fim desta vida dependente do carro ou, pelo menos, a notar que ele também incomoda muito e que, muitas vezes, não é sinal de qualidade de vida mas da sua falta.
Escola I – No momento em que escrevo, a vida das escolas continua agitada e a ser motivo de discussão pública. É lamentável que as coisas tenham chegado a este ponto, com posições extremadas e com argumentos em defesa de verdades que parecem unilaterais, mas que o não são. Uma profissão não pode estar vocacionada para o martírio ou para o heroísmo, da mesma forma que não pode passar pela humilhação pública de ser penalizada por decisões políticas que têm feito a história da educação no país. Muitas das opiniões veiculadas revelam que não é de educação que querem falar, mas de contestação pura e simples; que ignoram o que tem sido pedido à escola no tempo das duas últimas décadas; que há desconhecimento de várias questões responsáveis por um estado não muito positivo da educação, passando para os professores, em exclusivo, a responsabilidade do que anda menos bem e ignorando o papel fundamental que questões como o desenho curricular, os programas das disciplinas ou os manuais escolares desempenham na qualidade da escola. Têm-se discutido ódios de estimação, sem se favorecer a escola, por vezes com argumentos falaciosos (o de que os professores não querem ser avaliados é um deles).
Escola II Quando se fala dos resultados dos alunos no final de ciclo, e com isso se pretende dar a imagem de que uma escola é melhor do que a sua vizinha por os seus alunos terem obtido mais altas médias, já se pensou que muito desse esforço se deve à escola e aos alunos mas também às aprendizagens fora da escola, nomeadamente ao regime de explicações que existe e que as famílias pagam, na mira de um atendimento mais personalizado e de um caminhar ao encontro das dúvidas de cada um? Provavelmente, este pormenor tem sido esquecido… Mas também tem contribuído para os rankings, assim como contribuirá para a avaliação dos professores se os critérios se mantiverem…

sábado, 8 de novembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima (89)
Magazine Reportagem – Em Sesimbra, apareceu no Verão a Magazine Reportagem, revista de uma dúzia de páginas, consagrada à reportagem fotográfica e escrita, com o lema “o mundo à frente das objectivas”. Acaba de sair o quarto número da publicação, com reportagem sobre o peixe-espada preto, depois de, nos números anteriores, terem aparecido rostos de profissões que quase estão em extinção. Os textos têm sido assinados por Vanessa Pereira e as fotografias são de Rui Cunha, que também assume a direcção da publicação. Para lá do poder da imagem – e algumas surgem bem poderosas –, vale o saber com que as personagens entrevistadas falam, numa linguagem acessível, revelando também a humanidade presente em cada figura. É caso a acompanhar, uma vez que nesta publicação fala o cidadão comum, com saber feito de experiência, que nos vai contando a sua história… ao mesmo tempo que vai fazendo história.
António Matos Fortuna – A freguesia de Quinta do Anjo tem um busto erigido em memória de António Matos Fortuna, historiador local e regional, que teve cerimónia de inauguração no dia 1 de Novembro. É um gesto para a memória (que se faz de gestos e de memórias, claro!). Mas, em torno da importância de António Matos Fortuna, mais acções vão surgir. Quase em simultâneo com a inauguração do busto, foi constituída uma comissão que patrocinará um programa de actividades tendentes à preservação da memória desta figura, que passa pela integração do seu nome na toponímia local, pela edição de um “In Memoriam” e pela criação de um fundo documental, entre outras iniciativas. António Matos Fortuna, falecido em Março deste ano, bem merece que a memória o estime, seja pelo carácter íntegro que possuía, seja pelo que de si deu enquanto cidadão (à comunidade e à paróquia de Quinta do Anjo, como dador de sangue, como professor, como promotor de iniciativas ou como defensor de causas), seja pelo que de si empenhou na investigação sobre a história local (com contributos deixados para a identidade de todas as freguesias do concelho e mesmo para a região de Setúbal).
Escola – Anda triste e preocupada a escola. Há muito tempo gasto em acções que nada têm que ver com os alunos. Há muito ruído e muito silêncio – um e outro comprometedores – em torno do ambiente que tem sido vivido nas escolas. A burocracia arrasta-se cada vez mais, com a construção de grelhas, grelhas e mais grelhas, com as reuniões que pesam no tempo das discussões e que não surgem como indispensáveis para a melhoria dos processos. Sente-se a escola como nunca se sentiu: baixo índice de motivação, muitas preocupações laterais, aparecimento de uma outra ideia do que é ser professor… Anda macambúzia a escola e é pena!
Barreiro – No ano em que passam os cem anos sobre a criação da CUF, tem havido bibliografia qb sobre o assunto. Gostaria de referir um título: Rua do Ácido Sulfúrico, de Jorge Morais (Lisboa: Editorial Bizâncio). É uma forma de contar a história do império a que Alfredo da Silva deu origem: a vida dos operários e dos patrões dentro da CUF, aquilo a que poderíamos chamar a história da cultura CUF, passando pela importância social, pela dinamização cultural, pelo poder económico, pela ideia de família que ao longo de décadas foi emergindo. Lê-se como um romance ou como uma memória. Parte-se do silêncio e da desolação e chega-se a um filme animado por rostos de heróis vários, onde se cruzam a política, a economia, a poesia, a afirmação, o poder e a vida. Jorge Morais, com vários títulos já publicados no campo da história, recebeu o Prémio Bocage em 2006 por um texto de ensaio sobre a ligação do poeta sadino ao movimento maçónico.

sábado, 25 de outubro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 88
Cunha – “O nosso povo tem o vício ancestral da cunha. Imaginando de antemão que não poderá, pelas vias legais, alcançar o que pretende, serve-se da cunha. E para tudo a utiliza, mesmo quando desnecessário. Simplesmente porque não acredita na justiça, nas leis e nos regulamentos. Isso, pensa o povo, é para os ricos, os poderosos. O pobre só sobrevive com a cunha.” (José Leon Machado, 2008).
Guerra – “A próxima guerra será silenciosa, esteticamente organizada, não haverá necessidade do ruído desagradável das bombas e da visão traumática e em último caso perfeitamente dispensável das cidades arrasadas, porque as cidades ficarão intactas, só as pessoas e os seres vivos morrerão, mas em silêncio, sem estertores nem gritos, nem nada de excessivo ou patético, tudo será eficiente, limpo, límpido.” (Teolinda Gersão, 1981).
Noite – “Bem sei que a noite não é a mesma coisa que o dia; que todas as coisas são diferentes, que as coisas nocturnas não podem ser explicadas de dia, pois de dia não existem, e que a noite pode ser terrível para os solitários, desde que sintam que o são.” (Ernest Hemingway).
E-mail – “O correio electrónico – Alucinante, o despacho desta correspondência. Não me apaga, porém, saudades do tempo em que se manuscreviam cartas e não só as cartas de amor. Nada mais pessoal que a caligrafia, a letra de cada pessoa é identificação e intimidade. Os próprios prosadores e poetas conquistados pela desenvoltura do computador não deixarão nos espólios o cunho da caligrafia, o testemunho dos retoques e emendas que ilustrem a criação das suas obras.” (Mário Zambujal, 2008)
Economia – “A humanidade nunca foi tão rica e tão pobre ao mesmo tempo. A pergunta que importa fazer tem dois mil anos: o ser humano é para a economia ou a economia para o ser humano?” (Frei Bento Domingues, 28.Setembro.2008).
Poesia – “Toda a verdadeira poesia é um frémito diante do mistério ou da injustiça; um pressentimento do que está ou devia estar para além da apreensão imediata, da complexidade vibrante das coisas e do tempo, de tudo o que a ciência e a filosofia procuram depois de desvendar e resolver.” (José Rodrigues Miguéis).

sábado, 27 de setembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 86
Emigrante – Há uns anos – não muitos para que já não haja memória – os emigrantes portugueses no estrangeiro eram desejados e havia uma quase veneração, pelo menos em algumas ocasiões. Em causa estava a chegada de divisas a Portugal, bem como o facto de serem menos uns tantos a inflacionar o número do desemprego. Foi-lhes consagrado o direito de participarem nas eleições portuguesas através do voto, ainda que a participação nem sempre se tenha pautado por números elevados (mas também, entre aqueles que não são emigrantes e que por cá vão estando, a participação tem vindo a baixar de forma nada adormecida). O Partido Socialista descobriu agora que os votos por correspondência oriundos dos círculos da emigração têm andado ao sabor da “chapelada”, para usar o argumento de um dirigente. E, por isso, há que acabar com o voto por correspondência, diz o partido. Cada qual sabe do que fala e seria bom lembrar que esse vício da “chapelada” foi coisa que, durante muito tempo, os governos andaram a fazer perante os emigrantes… Afinal, o que estará em causa? O facto de o Partido Socialista não conseguir penetrar nos círculos da emigração? O facto de os emigrantes terem mais a ver com o país que os adoptou do que com aquele que os gerou? O facto de os emigrantes não gostarem de correspondência? A gente começa a pensar e vê como o “politicamente correcto” é a metáfora da falsidade em muitos dos casos e como pode ser fácil restringir direitos sob a capa de argumentos mais ou menos construídos, mas muito pouco naturais. O que se teme é esta falta de reconhecimento publicada contra os emigrantes, quase num refazer da História, ainda que tendencioso. O que se teme é que tudo isto possa ser consequência de uma sociedade que se quer fazer crer que existe, mas que, na verdade, existe apenas forjada para a política, muitas vezes distante dos cidadãos, cada vez mais distante dos cidadãos.
Português – A língua portuguesa entrou nos corredores da ONU pela voz do Presidente da República, também presidente em exercício da CPLP, com tradução simultânea para todos os presentes. Pode não ser um enorme passo para a difusão da língua portuguesa, mas é, com certeza, um bom contributo para que a nossa língua seja olhada com a importância que lhe devemos dar. Sim, que lhe devemos dar, para que os outros lha dêem, que será uma forma de também o país e os portugueses serem vistos num mais justo lugar no mundo. Iniciativas do género podem valer mais do que acordos ortográficos nascidos como o que recentemente andou em discussão e que… vai vigorando até um dia se afirmar.
Sebastião Fortuna – É da Quinta do Anjo, tem longo currículo no mundo do sonho e da corrida atrás de ideais, fundou um Centro de Artes e Ofícios ligado a profissões em vias de extinção, tem exercido ao longo da vida as mais variadas funções e ofícios, é incapaz de estar parado e vai, hoje, sábado, inaugurar a sua exposição de pintura na Igreja de S. João, em Palmela, intitulada “Sonhar é preciso”, que poderá ser vista até 5 de Outubro. A ver e a partilhar.

sábado, 13 de setembro de 2008

Hoje, no "Correio de Setúbal"

Diário da Auto-Estima – 85
Lápide – Há uns anos que era desconhecido o rumo que a lápide em memória do escritor setubalense Tomás António dos Santos Silva (1751-1816) tinha tomado. Com efeito, em 1909 (quase há 100 anos!), o jornal sadino “A Mocidade” procedeu a uma subscrição pública para a colocação da dita lápide na casa em que o poeta nascera, situada no largo que tem o seu nome, mas obras levadas a cabo em prédios desse largo foram o marco para o desaparecimento da lápide. Felizmente, o jornal “O Setubalense”, a propósito de um outro assunto, descobriu o estado e a localização da lápide para os seus leitores (3 de Setembro) – um morador da zona em que houve as ditas obras, vendo, na altura, a pedra no chão, agarrou-a e guardou-a de ir parar a uma qualquer lixeira de entulho. Agora, o morador mostrou-a ao jornal e lamentou que ela não tivesse sido reposta no sítio. Está-se a tempo para que tal suceda, bastando haver convergência de vontades. A reposição da lápide seria um bom serviço à memória por várias razões: por ser uma forma de lembrar uma figura importante de Setúbal; por ter resultado de uma subscrição pública, logo, da vontade de muitos setubalenses; por conter em si uma dupla memória – a do homenageado e a do grupo de cidadãos que há um século teve a iniciativa. Oxalá haja, pois, vontades congregadas e decisões rápidas na reposição de uma inscrição da memória colectiva! Em 1 de Março do próximo ano, vai fazer um século que o jornal “A Mocidade” lançou a ideia da lápide. Oxalá nessa altura já possa estar respeitado o desejo dos nossos antepassados e cumprida a vontade do morador de ver a pedra no seu sítio!
Condecorações – Numa reunião recente da Câmara Municipal de Setúbal, foram aprovados os nomes dos cidadãos e entidades a serem contempladas com a medalha de mérito municipal no próximo feriado, em 15 de Setembro. Até aqui, tudo pareceria normal, independentemente de se concordar ou não com os nomes propostos. O estranho surgiu do facto de, publicamente, os nomes apresentados terem sido escrutinados individualmente na mesma sessão, tendo o executivo chegado à conclusão de que três desses nomes deveriam ser retirados da lista de condecorações a haver. Toda a gente ficou a saber que, a par de uns quantos nomes que vão ser contemplados, houve uns tantos que foram rejeitados, tendo os mesmos sido divulgados e publicadas notícias a propósito. Qual é o direito que protege um cidadão de se ver publicamente rejeitado por uma coisa que não pediu? Até que ponto pode o nome das pessoas ser assim jogado, entre aprovações e recusas, na apreciação pública de um prémio a que não se candidataram? Injusta, muito injusta, esta exposição não requerida!
Ano lectivo – Aqui está o 2008/2009. Seria bom que este ano lectivo corresse sem atropelos e sem demagogias (sejam elas dos números, dos princípios, das práticas ou das decisões) em favor da aprendizagem dos alunos e de um ambiente pacífico nas escolas. Seria bom! É que… “para ser professor, também é preciso ter as mãos purificadas”, porque “a toda a hora temos de tocar em flores” e “a toda a hora a Poesia nos visita”. É que o sublime é ser o professor “a lição em pessoa – que é isso mais importante e mais eficaz que sermos o papel onde a lição está escrita”! Quem disse estas verdades foi Sebastião da Gama, bem conferidas pela prática que no seu “Diário” regista. A todos cabe conceder alguma atenção a estes princípios.