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quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Pedro Tamen entre Bocage e a Rua de Nenhures



Numa entrevista a Carlos Vaz Marques na revista Ler (nº 99, Fevereiro.2011), Pedro Tamen (1934-2021) definiu a importância da poesia: “é, para mim, um permanente arranhar o mundo, com unhas na cal, para tentar encontrar coisas que se pressentem por detrás do branco uniforme do mundo e da vida.”

Era isso, então, que andava a fazer desde que, em 1956, saiu o seu primeiro livro, Poema para todos os dias (ed. Autor), obra em que haveria de registar marcas que pontuariam os seus títulos subsequentes: a escrita da poesia como elemento fixador ("Ontem / (ainda ontem) / aconteciam verdadeiras coisas, / aconteciam muitas e sérias coisas. / E, agora, neste seco papel, / tudo volta, e eu vejo."), a força da palavra ("Não há montanhas se não há palavras"), a capacidade de surpreender o leitor pela palavra intrometida ("Não penso, faço, / não estrada, sigo"), o apelo aos jogos de sonoridades ("e o dia perto, porto, parto ferido"), o engenho de (re)inventar significados ("aleluia-se um gesto"), o amor ("em ti não busco mais do que pensar-te"), o tempo ("o tempo todo corre num cigarro, / no suor a cair, e no ficar."), as marcas autorais ("formado em direito e em solidão" ou "Sentidos frios de pesadas frases / Ai Pedro, Pedro, tu que frases fazes?"), a subtileza na forma de apresentar, de visitar e de escrever a poesia ("Em segredo, como quem vai ao armário de si próprio, / rodo a fechadura (range) e abro.").

O jogo de palavras será constante em Tamen, ajudado por alguns mestres, como Bocage, que puxou para um poema no livro Analogia e Dedos (Oceanos, 2006), conjunto que quase configura uma mitologia do poeta: “Já não sou. Já não serei / se fui. Agora à cova / além dos ossos e caroços / muito mais descerá. / O verso, o riso, o vinho, / a mão ladina sobre a carne morna, / tantas coisas sentidas, ressentidas, / intenções, bolandas, entreactos, / entradas por saídas, choros finos: / muito mais descerá. // Não sou, é certo, e não serei, / mas no descer de tudo / já nem fui.” 

Quando passou a viver em Palmela, Pedro Tamen por lá encontrou uma Rua de Nenhures, nome estranho sugerindo um não-lugar, que deu título para livro (Publicações Dom Quixote, 2013), com 64 curtos poemas centrados num “tu”, por onde passam referências associadas à luz, ao mar e ao fogo, na procura do momento desejado - “Cheguei do fundo das ravinas, / (...) / e o coração, / salvei-o, essencial e concentrado, / para que, chegado ao lar do milho, / to pudesse entregar nas mãos iluminadas / ao sol incandescente dos teus olhos.” Desde este poema, quase no início, até ao último (“Sentas-te no muro, lá no alto, / nem me vês tropeçar nas pedras desta rua.”), o amor intensifica-se pela voz (“Cotovia perto / cantas. / (...) / cotovia perto, / meu amor, meu amor.”) ou pelo tacto (“Deixo os dedos enrugados navegar / no mar de leite”), ajudado pelos jogos de palavras - “Troco-me por ti. / Na brasa da fogueira mal ardida / renovo o fogo que perdi, / acendo, ascendo, ao lume, ao leme, à vida.” O “tu”, procurado e incorporado, surge transformador - “sinto (...) / que a lanterna de bolso que tu és / me devolve a paisagem de largueza / que a ti devo, deverei ou deveria, / a inconstante chuva de alegria.”

Tentar encontrar coisas que se pressentem”, o desafio que Pedro Tamen legou.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 678, 2021-08-04, p. 9.


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Memória: Pedro Tamen (1934-2021)


 

Por meados de Maio de 2007, conheci Pedro Tamen. Foi numa sessão intitulada “Encontro com Pedro Tamen”, realizada em Palmela (para onde o poeta viera residir), na Biblioteca Municipal,  que a minha amiga Isolina Jarro me convidou para apresentar.

Conhecia alguns dos títulos de Tamen, fui ler os outros. E a sessão foi interessante, numa relação entre leitura de poemas e considerações, jogos de palavras e episódios biográficos, conversa e algum humor.

Fez-me seu amigo e, de cada vez que saía um livro seu, sentia o prazer de o receber com palavras simpáticas.

Encontrámo-nos algumas (poucas) vezes. Fui sabendo dos seus prémios pelas notícias, fui sabendo do seu estado de saúde à distância.

Partiu ontem. E fica um vazio que ultrapassamos ao pegar nos livros e ao ler os seus poemas. Obrigado, Pedro Tamen!


Do livro Horácio e Coriáceo, de 1981, a “Fábula Redonda”:

 

                  Um bando de pombas voa

                  algo de banda, mas pumba,

                  um caçador que as chumba

                  abate a pomba de proa.

 

                  Furtivo; mas apregoa

                  a proeza que o enfuna.

                  Outra pomba, boa aluna

                  de sua mestra falcoa,

 

                  procura, de asa fincada

                  no bico, com que redima

                  tanta justiça ultrajada:

 

                  do caçador se aproxima,

                  por ira e vento levada,

                  e pumba, caga-lhe em cima.


terça-feira, 3 de maio de 2011

Mais um prémio para "O Livro do Sapateiro", de Pedro Tamen

Depois do "Correntes d'Escritas", aqui está mais um prémio para essa obra imperdível de Pedro Tamen que é O Livro do Sapateiro. Desta vez, foi o Grande Prémio de Poesia da APE. Merecido. Indiscutivelmente! Parabéns!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Pedro Tamen: uma entrevista de saber

É uma entrevista de sabedoria, de calma e de olhar crítico sobre o mundo aquela que Pedro Tamen deu a Carlos Vaz Marques, publicada na revista Ler deste mês (Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 99, Fevereiro de 2011). Ressalta a vida do poeta e também a vida do tradutor que Tamen é. E está ainda presente o olhar sobre um certo mundo literário, bem como o seu último livro, que entra pelos problemas da comunicação. Dessa entrevista saltam estes excertos:
* “As relações humanas não são um rio pacífico e sereno.”
* “Nós somos actores das nossas vidas e dialogamos com os actores que estão ao nosso lado mas nunca, até ao fim, é perfeitamente clara a relação que estabelecemos com os outros, com os comparsas, com os companheiros ou com as companheiras.”
* “A gente nunca aprende nada. O que o tempo e a vida fizeram foi permitir-me experimentar essas dificuldades [de comunicação] e fazer-me reflectir sobre elas, senti-las na pelo e tentar ultrapassá-las.”
* “Mesmo aqueles que a gente não pode definir como vaidosos descaem inevitavelmente para falar de si mesmos. As pessoas levam-se muito a sério.”
* “Os poetas, no seu reduto próprio de poetas, não são tipos normais. Em princípio, o poeta é aquele que vê um bocadinho mais do que os outros. Ou que, pelo menos, é capaz de exprimir coisas que vê e que os outros, mesmo quando vêem, não são capazes de formular. Estou a falar tanto dos poetas como dos artistas em geral: músicos, pintores, etc. A poesia é, para mim, um permanente arranhar o mundo, com unhas na cal, para tentar encontrar coisas que se pressentem por detrás do branco uniforme do mundo e da vida.”
* “As pessoas estão muito mais dispersas, cada vez tratam mais ou pensam mais em tratar das suas vidinhas.”
* “Há um endeusamento de falsos valores.”

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Pedro Tamen, "O livro do sapateiro"

Abre com uma citação de Borges que apela para as formas perfeitas responsáveis pelo tempo – “La eternidad está en las cosas / del tiempo, que son formas presurosas”; conclui com a perfeição especular da obra produzida – “Vejo-me no brilho que te dou, / ó espelho das minhas mãos, / fugaz vitória destes dias / últimos.” Assim corre O livro do sapateiro, mais recente título de Pedro Tamen (Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2010).
Meia centena de poemas que rodeiam os utensílios, o produto e o canto do artista – a sovela, o martelo, as tachas, a cola, as meias solas, o sapato, o escabelo, a oficina. E que são alimentados pelo olhar que recebe o sal e o sol através de uma janela (de um janelo, mais acertadamente) que ilumina a cave, recanto de produção e de arte, refúgio onde se está “acompanhado / não por quem passa / mas por quem não passa”. Tudo num modelar lento do universo, trabalho de pormenor, “ponto a ponto”, em que a mão desempenha papel primordial, porque corta, cose, prega, dá brilho, numa labuta para dar forma e aformosear. E escrever.
E o poeta encontra-se no seu ofício, oficial que é, na meticulosidade, da construção do poema. Como o sapateiro: “Com minha mão puxo a linha, / junto-lhe a boca a ajudar, / e já não sei qual mais minha: / se a boca se o meu puxar.” O tempo permite o engenho (o jeito do modelar), o pensar (“Que faço eu que faço / senão olhar o que tenho em frente…?”), o afecto e o carinho pelo que se produz (“a obra pequenina que fabrico / no silêncio que a rua me permite”), a chegada à claridade (através da matéria afagada e cuidada) e à escrita (“Acocorado como estava o escriba / … / como ele cumpro destino de invenção, / de leve e não sabida descoberta / do mundo incompleto.”).
E a poesia corre, não fechando portas ao destino ou à morte (“ao cair da noite, / zumbe lá fora algo que não conheço, / será talvez o roçagar das nuvens / ou o ar agitado por um aceno / que me chama para longe deste banco.”). E falando também de essências como são a memória – “A quem deixarei o meu cansaço, / as unhas sujas, as marcas / do martelo falhado, a quem / senão a quem…?” – e a descoberta – “a peça que fugirá / das mãos dos que não merecem / para andar ao deus-dará / num universo de espanto”.
Livro bonito e delicado, em que o poeta se desvenda no ofício de poetar.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Parabéns a Pedro Tamen

Pedro Tamen (n. 1934) ganhou o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava para livros publicados em 2006 graças ao título Analogia e dedos (Lisboa: Oceanos, 2006), conjunto de 35 poemas por onde perpassam evocações de figuras que podem constituir a mitologia do poeta, numa escrita eivada de ironia, com o jogo das palavras e das sonoridades. De lá se transcreve o poema "Bocage", pelo cruzamento das leituras e pelas afinidades geográficas:

Bocage

Já não sou. Já não serei
se fui. Agora à cova
além dos ossos e caroços
muito mais descerá.
O verso, o riso, o vinho,
a mão ladina sobre a carne morna,
tantas coisas sentidas, ressentidas,
intenções, bolandas, entreactos,
entradas por saídas, choros finos:
muito mais descerá.


Não sou, é certo, e não serei,
mas no descer de tudo
já nem fui.

domingo, 15 de julho de 2007

Cinco livros - o quarto

Retábulo das Matérias, de Pedro Tamen (n. 1934), constrói-se sobre o altar das palavras e dos títulos de livros de 45 anos de poesia, desde que, em 1956, saiu o Poema para todos os Dias. É, aliás, nesse primeiro livro que Tamen apresenta a escrita da poesia como elemento fixador e memorizador - "Ontem / (ainda ontem) / aconteciam verdadeiras coisas, / aconteciam muitas e sérias coisas. / E, agora, neste seco papel, / tudo volta, e eu vejo." Neste retábulo, torna-se evidente a força da palavra - "Não há montanhas se não há palavras" -, a capacidade de surpreender o leitor pela palavra intrometida - "Não penso, faço, / não estrada, sigo" -, o apelo aos jogos de sonoridades - "e o dia perto, porto, parto ferido" - e mesmo o engenho de (re)inventar a palavra - "aleluia-se um gesto".
Presentes também estão os temas do amor - "em ti não busco mais do que pensar-te" - e do tempo - "o tempo todo corre num cigarro, / no suor a cair, e no ficar." Interessantes são ainda as marcas de autor, num processo quase hitchcockiano de assinatura da obra, aqui e ali saltando para o poema - "formado em direito e em solidão" ou "Sentidos frios de pesadas frases / Ai Pedro, Pedro, tu que frases fazes?" Finalmente, assinalarei a subtileza na forma de apresentar, de visitar e de escrever a poesia: "Em segredo, como quem vai ao armário de si próprio, / rodo a fechadura (range) e abro."
Depois de reunir a obra completa neste Retábulo das Matérias (Lisboa: Gótica, 2001), de Pedro Tamen foi editado Analogia e Dedos (Lisboa: Oceanos, 2006), quando passavam os seus 50 anos de vida literária (em poesia).