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sábado, 22 de janeiro de 2011

"Quartzo - Vidas de um Veterinário", de Manuel Cardoso

São vinte e três histórias e mais um “glossário breve” – as narrativas trazem-nos episódios rurais, o glossário é composto por cerca de três dezenas de termos ou expressões surgidos nas histórias para ajuda do leitor que lhes esteja menos habituado. É este o corpo do livro Quartzo – Vidas de um Veterinário, de Manuel Cardoso (Coimbra: Quarteto Editora, 2000).
A começar o livro, há um texto introdutório que justifica a escrita destas histórias. Curtas, elas são “tecidas de uma realidade vivida e simples, o dia-a-dia de um trabalho feito com empenho e dedicação, também com sacrifício e esforço, e bordadas de uma fantasia quão simples quão vivida também”, havendo, “nalgumas, a serenidade de um ritmo de épocas passadas; noutras, a premência de uma pressa que urge a prender o presente”. Característica comum a todas: “a paixão pela terra deste torrão precioso de Trás-os-Montes”.
Sendo o autor médico veterinário de formação e naquela região exercendo a sua actividade, fácil se torna concluir estarmos perante um registo autobiográfico, aqui e ali marcado por indicadores que o vão confirmando – como o nome de algumas personagens das histórias, que são as mesmas do círculo familiar do autor, ou a referência explícita ao próprio nome do autor, cumulativamente personagem e narrador, como acontece no texto “Visitas e Visitantes”.
Pelas histórias vai desfilando um mundo de crendices, de hábitos, de uma sociedade rural, em que os animais são a maior preocupação, seja pelo sustento, seja por serem vistos enquanto garante, em lutas que são pela vida e contra a morte ou contra o azar da doença, questões essenciais quando o que está em causa é a sobrevivência – seja dos homens, seja dos animais. Daí que o narrador considere a sua profissão de veterinário como algo que também dá para fugir à rotina, porque o homem se torna actor – “o pequeno grupo que se forma quando uma consulta é um bocado mais demorada é muitas vezes o colorido que faz desta profissão uma actividade em que a rotina é uma rara ocorrência”, em que “o interlocutor nunca é o doente mas o dono”, sendo que, “quando uma doença se declara, muitas vezes pior não é diagnosticá-la nem dar-lhe solução – é lidar com o dono do animal”.
Paralelamente, vai sendo mostrado que nem tudo é pacífico e que um profissional se faz com os conhecimentos da tradição, por vezes empíricos, mas também com a inovação, haja em vista o que é relatado no conto “O Detector de Metais”, em que tal equipamento se revela útil à detecção de objectos metálicos ingeridos pelos animais, mas cuja utilização causou espanto – “Uma das novidades que eu trouxe para cá quando acabei o curso foi o acto de não medicar animal nenhum sem lhe medir a temperatura e sem o auscultar. Isso causou-me algumas situações mais amargas com alguns colegas porque o costume era o de receitar pela história e sintomas colhidos a olho e levaram a mal que um franganote a principiar os ultrapassasse na mise-en-scène. Contudo, eu não desarmei e até reforcei a panóplia de possibilidades quando apareci a empunhar um detector de metais.”
Quartzo – Vidas de um Veterinário é, pois, a experiência de um joão-semana dos animais, já não montado numa égua, mas cavalgando um “Panda” ou um “UMM”, visto como salvador, como confidente, atendendo pastores, pequenos agricultores, ciganos, convivendo com a caça furtiva e as pequenas vinganças, com os mistérios da vida e da terra, penetrando nos modos de ser e nas intimidades familiares. Tudo isto valorizado por uma descrição da paisagem dos arredores de Macedo de Cavaleiros – geografia destes pequenos contos – decifrada com as cores do tempo e as tonalidades agrestes da serrania, com os cheiros intensos e os ruídos de um cenário que ganha animação graças ao homem que o povoa e nele se refugia.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Manuel Cardoso, "Um tiro na bruma"

A entrada do leitor em Um tiro na bruma, de Manuel Cardoso (Estoril: Principia Editora, 2007), é o enveredar por um romance histórico cuja acção se passa no final da segunda década do século XX, pelo convívio com a sociedade trasmontana de Macedo de Cavaleiros desse tempo e também pelo assistir ao lento e progressivo desmoronamento de um regime, percurso cheio de contradições e de paradoxos.
As “notas explicativas” com que o autor abre o livro servem ainda para transportar o leitor a esse tempo, seja fornecendo-lhe elementos de contextualização histórica (como o regresso dos combatentes da Grande Guerra, os conflitos entre monárquicos e republicanos, a pneumónica, a Monarquia do Norte, momentos e feitos que vão ter reflexo na narrativa), seja para confidenciar sobre os motivos que levaram a esta escrita, seja para esclarecer a linha de fronteira entre a história de uma família (a do autor) e de uma região e a ficção com que são compostas as personagens e as acções que dão corpo a esta trama.
Com efeito, a personagem central, Amadeu, médico, é construída sobre um antepassado do autor, protagonista enriquecido com o recurso a histórias, fotografias, notícias, relatos, documentos. E, para que dúvidas não restem sobre o fundo de verdade que foi pretexto desta história, o leitor é contemplado com um resumo do esquema genealógico, que abrange o tempo decorrido entre a segunda década do século XIX e o início do século XXI, fechando com a geração anterior à do autor.
A história de Um tiro na bruma inicia-se numa tarde chuvosa, fria e ventosa, quando Micas (mulher de Amadeu) e Luísa vão prestar apoio e solidariedade a Ana Pita. Nesse momento, “ouviu-se um estampido. Fora um tiro, decerto. Meio abafado. Mas fora um tiro.” O disparo acontece na primeira página do relato e, poucos parágrafos andados, fica o leitor a saber que Álvaro Ruivo, padrasto de Luísa, fora assassinado. O primeiro comentário sobre a vítima é feito por Micas, ao não lhe ser dada a certeza sobre o óbito de Ruivo: “O estafermo! Não se perdia nada. Que Deus me perdoe mas não se perdia nada! Deus às vezes podia mesmo mandar dar por aqui uma vista de olhos com olhos de ver nas almas que por cá andam!...”
Percebe-se que a história não vai girar em torno da descoberta do assassino. E, a partir daí, o leitor passa a acompanhar o quotidiano de Amadeu, comungando das suas reflexões e das suas dúvidas, assistindo ao desfiar da peregrinação pelas aldeias no atendimento aos doentes e no contributo para as estatísticas da saúde.
De vez em quando, uma ou outra lembrança entra na narrativa para recordar que o mistério sobre quem disparara sobre Álvaro Ruivo ainda se mantém. E algumas pistas vão contribuindo para sugerir um desfecho, que não chega nunca: porque não há sobre quem caiam suspeitas? poderá Amadeu ser incriminado? E, quando parece que este mistério do assassínio fica resolvido, mais por suspeitas do que por confissão ou por descoberta, o leitor está a enveredar por mais uma falsa interpretação que é dada para sossego daquela sociedade. É que a autoria do disparo só é conhecida no momento em que a personagem responsável por esse acto se quer fazer valer desse testemunho para mostrar a sua coragem e a sua decisão e capacidade de ir em frente, usando palavras que justificam o comentário inicial da Micas: “Já matei um! Sim, já matei um com um tiro só! O estupor! Tinha-se posto à força na minha mulher!”
Vai o leitor avançando nas peripécias que entretecem a vida de Amadeu e a escrita vai tomando marcas que em muito convocam Júlio Dinis (a figura do João Semana, a aproximação social, a ruralidade) ou Camilo (a rapidez e a certeza na acção) ou mesmo Eça (no pendor descritivo e na força visual, na minúcia com que nos são apresentadas personagens, paisagens, espaços, objectos e atitudes), sendo todavia evidente uma leitura de desencanto e de despedimento de um tempo, várias vezes acentuada: a sociedade apresentada como “um mundo onde tudo se desfazia e onde a autoridade parecia abandonar o terreiro a passos acelerados”; um país “a ir ao fundo! O povo quer nadar e não consegue! Quer comer e não tem o quê!”; uma personagem, Amadeu, que se sentia ir abaixo pela “situação política, o caos do país, a voragem de uma guerra civil que não tardaria a abocanhar todos os esforços para fazer de Portugal um país com nível, de Trás-os-Montes um canto com progresso”.
Um tiro na bruma é romance que bem caracteriza uma época de indefinições e de indecisões, que bem povoa a história local da região de Macedo de Cavaleiros enquanto espelho do que foi o sentir e o agir de um país na segunda década do século XX, e que, começando com um tiro anónimo, conclui com tiros bem determinados (a morte de Sidónio Pais, os bombardeamentos de canhões em Mirandela) e com a ameaça de um outro tiro certeiro. É uma história equilibrada, que procura raízes e passa por marcas de identidade nada distantes do que somos.