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terça-feira, 12 de abril de 2022

Centésima crónica - Dos livros



De livros, e do que deles fica, se tem falado por aqui. Na centésima crónica, algumas justificações para a leitura e para os livros. Diversificadas, mas sempre com o prazer da leitura e do livro em fundo, por alguns dos que escrevem.
Afonso Cruz: “Os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” - O vício dos livros (2021).
Alice Brito: “Pode-se frequentar um livro, um verso, uma página. Há livros que têm melhor vida que outros. Em carícias, sublinhados, empréstimos, conversas e paráfrases. Há livros que têm mesmo uma vidinha de lordes. Emprestam imaginários, personagens e vistas largas. São referidos, referenciados, estudados com deleite. São lidos por muitos olhos. À noite, de dia, às escâncaras ou clandestinamente. É a vida. Também há alguns que não valem nem o papel que gastam. Só dizem parvoíces.” - As mulheres da Fonte Nova (2012).
Aquilino Ribeiro: “Para uma criança, livraria que ela possa revolver e folhear à vontade é divertida como um presépio e mais instrutiva que uma escola. Frontispícios, gravuras, cul-de-lampes, vinhetas, que curso de humanidades!” - Anatole France (1923).
Dulce Maria Cardoso: "Os livros oferecem-se sem escolha a todos os que os quiserem ler. E, se redimem, fazem-no de forma tão caótica e tão insondável que ninguém poderá ter nisso qualquer esperança. Talvez os livros escrevam direito por linhas tortas. Como Deus." - na antologia O Prazer da Leitura (2011).
Eduardo Lourenço: “O relacionamento com os livros – que vem de todos os livros que a gente lê quando é jovem – torna-os bocados de nós próprios. São as tábuas privadas das nossas leis. As escritas e as não escritas.” - em entrevista a Carlos Vaz Marques, em Os escritores (também) têm coisas a dizer (2013).
Eugénio Lisboa: “Quando um livro nos impressiona e marca profundamente, a seguir a ele, nenhum outro livro nos parece apetecível.” - Vamos ler - Um cânone para o leitor relutante (2021).
João Bigotte Chorão: “Os livros podem fazer um erudito, mas é duvidoso que tornem civilizado quem o não seja.” - Diário 2000-2015 (2017).
José Régio: “Como eu gosto, espapaçado na cadeira, de olhar os meus livros alinhados na estante! São como soldados em fila. E às vezes, caem sobre mim, esmagando-me de visões. Não vejo quase nada. As frases saem-me aos solavancos.” - Páginas do diário íntimo (1994).
José Tolentino Mendonça: “Em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada.” - O que é amar um país - O poder da esperança (2020).
Maria Judite de Carvalho: “Quem não lê não sabe o que perde. Os livros são os nossos melhores amigos, é uma frase feita mas é uma frase certa. Amigos que nos ajudam, que nos acompanham, que nos enriquecem com o seu saber, que nos dão momentos agradáveis de fuga ao quotidiano ou momentos pouco agradáveis mas necessários de chamamento à pedra da vida.” - Diários de Emília Bravo (2018).
Rita Ferro: “Livros são bússolas que me guiam nos momentos sem Deus, substitutos de um misticismo que não me foi destinado, ou que a vida, com os anos, foi dissolvendo.” - Veneza pode esperar - Diário 1 (2014).
Serafim Ferreira: “O livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem.” - Olhar de Editor (1999).
Valter Hugo Mãe: “Nenhum livro se faz sem essa rendição à maravilha em detrimento da verdade.” - Contra Mim (2020).
* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 826, 2022-04-12, p. 11.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Joaquim Gouveia - Três perguntas para um universo de respostas



Desde 2011, Joaquim Gouveia, setubalense ligado ao jornalismo e a outras artes, tem vindo a publicar na blogosfera entrevistas com pessoas ligadas a Setúbal (por nascimento ou por adopção), a um ritmo de periodicidade variável. Escolheu para nome do blogue a designação “Gente gira da região”, sugerindo um misto de admiração, de beleza e de respeito, talvez porque seja isso mesmo que devemos ver em primeiro lugar em todas as pessoas.
Em finais de 2013, no Mercado do Livramento, Joaquim Gouveia expôs uma parte das entrevistas feitas até aí, mas o seu projecto prosseguiu e as conversas continuaram a ter lugar sob o céu de Setúbal, com aromas de Sado.
O modelo da entrevista tem-se mantido: as perguntas não se preocupam com a actividade actual do entrevistado ou com o seu estado, procuram perscrutar-lhe um caminho, encontrar linhas de pensamento, ainda que sem aprofundamento, mesmo porque o espaço para a escrita e para a leitura é o que é.
Dessas entrevistas, Joaquim Gouveia resolveu agora mostrar fragmentos daquilo que estes setubalenses pensam, na obra Como pensam os setubalenses (Setúbal: ed. Autor, 2014), enveredando por três áreas – o mundo, a crise, Deus. Uma centena de respostas é perfilada para cada um dos vértices deste triângulo, todas resultantes de momentos de reflexão súbita, proporcionados pela vertigem de uma entrevista, sem esboço ensaístico, sem análise de “prós” ou de “contras”, sem a medida das consequências do próprio pensamento. Primeiras ideias sobre um pensamento, sobre uma palavra, pois. Passos iniciais sobre algo com que todos nos confrontamos no quotidiano, na vida. Afirmações sem certezas, mas com a emoção de se olhar para o que rodeia este actor e agente que é o homem, que somos nós.
O mundo, o que se pensa do mundo? É sabido que todos olhamos o mundo em função do que somos e do que sentimos. Descobriremos coisas novas, absolutamente novas? Descobrimo-las para nós, mas elas já estavam lá antes da nossa descoberta. Olhamos o mundo pelos nossos prismas e ele é multifacetado. Escreveu algures o poeta José Fanha: “Que o mundo está todo do avesso já sabemos. Às vezes está do avesso para bem e outras para mal. Mas se resolvêssemos aparafusá-lo, deixava de rodar e isso é que não tinha graça nenhuma.” Assim, vamos achando graça ao mundo, isto é, vamos acreditando que podemos contribuir para que ele melhore, mas… o que sentimos depois de todo o esforço nem sempre é feliz! Perpassamos os olhos pelas respostas aqui presentes e elas não se distanciam do essencial da resposta de Fanha – sobrepõe-se, talvez, o tom do cepticismo, em que são valorizados os conflitos, as desigualdades, o (ir)respirável, à mistura com a constante dos recuos e dos regressos aos sonhos, com uma falta de reconhecimento do homem no mundo, com uma Europa que se desmorona (que o mesmo é dizer sobre as mudanças ou alterações de valores). A visão que os entrevistados apresentam do mundo, do planeta Terra em que habitam e com cuja organização convivem, não é feliz; é maioritariamente descrente, com um tom de decepção cuja responsabilidade é remetida para o ser criador que o homem poderia ser. Nostalgia do paraíso? Antes, talvez, a ideia de que o homem é pequeno para tanta coisa, apesar de ser latente a crença de que, como dizia Sebastião da Gama, “pelo sonho é que vamos”…
E entra-se na segunda questão seleccionada: como se ultrapassa a crise? Ambígua, esta ideia de crise! Por isso, alguns entrevistados se questionam quanto ao tipo de crise – portuguesa, mundial, económica, financeira ou de valores? Associadas andarão elas, porque as crises podem ser plurais e universais. Mas é verdade que a tónica dos entrevistados caminha no sentido da humanização, isto é, do respeito pelo homem, ao mesmo tempo que ressalta a ideia de haver um certo artificialismo nesta ideia generalizada de “crise”. Poderíamos ir buscar muitas citações de outros que neste livro não entram, mas bastará a lembrança do momento em que um político afirmou ser a crise uma situação de oportunidade. Perguntaremos: de quê? O balanço que se faz das respostas não é assim tão promissor quanto o dos discursos políticos. Depois, há ainda a ideia de que a crise assenta sempre sobre os mesmos. E, aqui, convém ir pedir emprestada uma citação à escritora Dulce Maria Cardoso, que, numa entrevista, a propósito dos sacrifícios impostos em nome das mudanças, referiu: “Cada um de nós vale a mesma coisa. Nós não somos peças de uma engrenagem em que uns vão para carne picada para salvar outros.” Esta rejeição surge porque o princípio parece real. Isto é: não sobressai das respostas dos entrevistados que a crise seja ultrapassada por meio dos sacrifícios impostos. Pior: não ressalta das respostas dos entrevistados que, no que diz respeito a Portugal, a crise esteja a ser gerida no sentido de ser ultrapassada. E, sem convicções, o homem, mesmo que o mundo pule e avance, não constrói a sua salvação…
Finalmente: Deus. A pergunta joga com ideias, sugere respostas, impõe-se: “Deus criou o homem ou foi o homem quem criou Deus?” Algo entre a fé e o “big bang”, algo entre a religião e a ciência. As respostas valem o que valem, porque as dúvidas também se mostram. Nas respostas apresentadas, há a fé, a crença, a prática religiosa, como há a falta de tudo isto. Um mundo e um tempo em que cada qual pensa a sua relação com o divino ou a falta dela. Permita-se-me que regresse à entrevista de Dulce Maria Cardoso, quando afirma algo de tão sensível e de tão religioso como isto: “Deus é um comunicador. É a maior invenção da humanidade. Eu espero até que à força de tanto ser inventado exista mesmo. Mas o meu Deus não é o dos caminhos ínvios. É um Deus que permite a espera. Toda a vida é uma espera. A mais evidente é a da morte. A menos evidente é a da felicidade. A existência de Deus torna essa espera menos dolorosa.” Pelas respostas dos setubalenses entrevistados passam mesmo as causas pelas quais (des)acreditam. Embora não tenham de resolver a questão, os entrevistados partilham razões, pensamentos, momentos de fé, porque, na verdade… Deus continuará a ser uma interrogação, independentemente do lado em que se esteja. Pensar em Deus implica um encontro do homem consigo, diálogo cujo resultado será inesperado. Confessou-o Jorge de Sena, ainda que pela poesia: “Senhor, não peço mais do que o silêncio do mundo, / o silêncio dos astros, o silêncio das coisas / que outros homens fizeram, e o das coisas / que eu próprio fiz. E o teu silêncio / de senhor que foi. Não peço mais. / Não é nada o que peço. Dá-me / o silêncio. Dá-me o que não fui: / silêncio (porque calei tanto): / o que não sou (pois que calo tanto): / o que hei-de ser (já que falar não adianta): / silêncio. / Senhor: não peço mais.” E, na mesma senda da poesia, a insubstituível Sophia de Mello Breyner retratou: “Deus é no dia uma palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.” Será, porventura, na resposta a esta pergunta que mais diferenças existem nas respostas que ornamentam este livro. Mas esse é o preço que se paga pela coragem que todos assumiram ao tentar justificar Deus ou ao ensaiar o contrário. Seja como for, Deus e o homem passeiam-se pelas respostas…
Daqui para a frente, fique o leitor com um plural conjunto de argumentos, de opiniões, de pensamentos, de ideias. Com que pode concordar ou de que pode discordar. Mas que lhe hão-de suscitar o diálogo e a sua própria resposta. Depois, é consigo…
[Prefácio à obra]

terça-feira, 2 de julho de 2013

Máximas em mínimas (99) - "Granta", nº 1


O primeiro número da edição portuguesa da revista Granta saiu em Maio (Dir.: Carlos Vaz Marques. Lisboa: Tinta-da-china), logo na abertura da Feira do Livro de Lisboa. Algumas máximas deste número ficam aqui registadas, por ordem alfabética do tema, que não por outra ordem.

Ajuda – “Uma pessoa que ajuda é alguém que desempenha tarefas fora da sua própria esfera de responsabilidade, por bondade, porque tem coração. A ajuda é perigosa porque existe fora da economia humana: o único pagamento para a ajuda é a gratidão.” (Rachel Cusk. “Rescaldo”).
Doença – “Adoecer fecha-nos mais sobre nós próprios, tornamo-nos menos capazes de compor as máscaras com que nos escondemos. Talvez, então, ao ficarmos doentes deixemos de ter grande parte da capacidade de mascarar de forma original o facto de sermos todos uma e a mesma coisa. Uma e a mesma coisa disfarçada por um amontoado de memórias diferentes. Cada um de nós com o seu amontoado de memórias e, por isso mesmo, com a sensação de ser único. Parece-nos tanto que somos únicos que nos dói a ideia de podermos ser todos uma e a mesma coisa. Mas a verdade é que não temos como saber se, em vez de indivíduos, não somos apenas uma ilusão criada por excesso de memórias acumuladas e excesso de composição de personagem. Apenas disfarces de um mesmo mecanismo que uma doença pode, em menos de um piscar de olhos, desmascarar.” (Dulce Maria Cardoso. “Em busca d’eus desconhecidos”).
Ficção – “A ficção – certa ficção – talvez seja a forma mais poderosa de exercitar o pensamento, de acelerar a realidade lenta do quotidiano. Escrita ou lida, a ficção escava-nos por dentro, rasga novos canais para o eu. Desacerta-nos com o que éramos. E tanto faz que sejamos nós a escrever ou a ler.” (Dulce Maria Cardoso. “Em busca d’eus desconhecidos”).
Guerra – “Há certas partes da vida de que não podemos ter presciência – a guerra, por exemplo. O soldado que parte para a guerra pela primeira vez não sabe como se comportará quando for confrontado com o exército inimigo. Não conhece essa parte de si mesmo. É um matador ou um cobarde? Quando confrontado, reagirá, mas não sabe a priori qual será a reacção.” (Rachel Cusk. “Rescaldo”).
História – “A vida é um tédio quando não há histórias para ouvir nem nada para ver.” (Orhan Pamuk. “Gente famosa”).
Intolerância – “Há mais de uma maneira de se ser paciente e a intolerância pode ter várias formas.” (Rachel Cusk. “Rescaldo”).
Lucidez – “Manter-[se] lúcido é o que mais importa perante a estranheza.” (Saul Bellow. “Memórias do filho de um contrabandista”).
Mentira – “Despida, a verdade pode tornar-se vulnerável, desajeitada, chocante. Vestida de mais, transforma-se numa mentira.” (Rachel Cusk. “Rescaldo”).
Música – “Não há nada que crie mais comunhão do que a música. Podemos ter milhares embrulhados na mesma melodia, no mesmo ritmo. A música chega às multidões muito mais rápido do que outra coisa qualquer. Não há discurso que se lhe compare nesse aspecto.” (Afonso Cruz. “Jazz, rosas e andorinhas”).
Sonho – “É sempre além de mim o indescoberto / Porto ao luar com que se o sonho engana.” (Fernando Pessoa. “Sossego enfim”).
Tom – “O tom é uma coisa chata porque não se controla. Controlamos as palavras, a custo, o volume, a custo, mas não o tom. O tom é como os olhos, não engana.” (Ricardo Felner. “Mar negro”).

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Máximas em mínimas (67) - Dulce Maria Cardoso

Tempo – "O tempo perde importância à medida que escasseia. Quanto mais escasso menos valioso. Deve ser a única coisa que vale menos à medida que se torna mais rara."

Vida – "Quase todas as vidas dariam maus livros por causa das verdades absurdas de que se fazem.”

Reparar – "Não se repara no que se viu fazer desde sempre."

Passado – "Os passados só se tornam acessíveis se os mapas os assinalarem e se para lá houver caminhos.”

Assinatura – "A nossa letra compromete-nos quase tanto como o nosso sangue. Um nome assinado torna-nos proprietários. Ou desapossa-nos. Riscos feitos por uma mão. Riscos que não valem nada e que afinal são os que os fazem."

Livros – "Os livros oferecem-se sem escolha a todos os que os quiserem ler. E, se redimem, fazem-no de forma tão caótica e tão insondável que ninguém poderá ter nisso qualquer esperança. Talvez os livros escrevam direito por linhas tortas. Como Deus."

Dulce Maria Cardoso. "A Biblioteca". O Prazer da Leitura. Lisboa: Teodolito / FNAC, 2011, pp. 101-119.