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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Círculo Cultural de Setúbal e José Afonso contados por Albérico Costa (2)



A segunda parte da obra O Círculo Cultural de Setúbal - De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução - Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso incide sobre a ligação do poeta, cantor, professor e pensador José Afonso ao movimento cultural setubalense, sobretudo através da acção desenvolvida no Círculo Cultural, associação de que ele também foi co-fundador.

As ligações entre Setúbal e José Afonso não constituem absoluta novidade na bibliografia de Albérico Costa, porquanto existe desde 2019 a sua obra Lugares de José Afonso na Geografia de Setúbal (ed. Associação José Afonso), em que, entre os 42 sítios recenseados, surge a referência ao Círculo Cultural de Setúbal, espaço que o cantor, em entrevista, definira como possibilidade que, “antes e logo a seguir ao 25 de Abril, preencheu bem essa lacuna, de juntar toda a malta para fazer coisas”.

No capítulo que agora lhe dedica, Albérico Costa esclarece pretender analisar “a dimensão da interação entre a cidade de Setúbal e o cidadão José Afonso”, percurso lembrado desde 1967, ano em que foi colocado no então Liceu Nacional de Setúbal como professor de História, mas que teve também a incumbência de leccionar a disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, decisão que sua mulher, Zélia Afonso, assim explica, em entrevista ao autor: “Nada disso foi por acaso. Era tudo para o tramar.” Intencional ou não, o certo é que, em Dezembro desse ano, um despacho ministerial comunicava a expulsão de José Afonso do ensino...

É no contexto de participação e de intervenção local que o poeta será co-fundador do Círculo Cultural, onde agirá leccionando nos cursos nocturnos e participando nas sessões culturais, embora sob o olhar atento da polícia política, que, após as eleições de 1969 (em cujo processo José Afonso participou), o identifica como tendo tido “um papel preponderante” em “jornadas e sessões culturais, onde, através da balada e da poesia, se procura incutir no espírito das populações, especialmente na camada jovem, a rejeição pela obra do Governo e pela luta que nos é imposta no Ultramar”. O tal olhar atento da polícia esmerou-se nas práticas de perseguição, tendo mesmo levado a que tenha sido preso várias vezes.

A coerência de pensamento de José Afonso é visível no que deixou exarado no interrogatório na prisão de Caxias em Outubro de 1971 (“nunca desenvolveu quaisquer actividades contra a segurança do Estado”, mas é “adverso das instituições vigentes e colaborou na distribuição de votos ao domicílio a favor da Comissão Democrática Eleitoral do Distrito de Setúbal”) e nas tomadas de posição conhecidas no período pós-25 de Abril, lembrando Albérico Costa a participação intensa do cantor na militância política local: no célebre comício do Naval do primeiro 1.º de Maio — onde, pedagogicamente, disse: “É fundamental que nos voltemos a reunir para tratarmos de problemas. A partir de hoje, é necessário que se repitam estas reuniões. O perigo do fascismo ainda não acabou e temos como exemplo o Chile. (...) Temos de passar da fase do coração para a fase da cabeça e da acção.” —, em numerosas “lutas laborais, espectáculos de solidariedade, novos movimentos que então surgiam no calor da revolução em marcha”, acção de que não esteve afastada também a temática ecológica — será, por coincidência, numa realização promovida pelo Projecto Setúbal Verde, em 30 de Maio de 1982, que José Afonso terá o seu derradeiro concerto em Setúbal, acompanhado por Janita Salomé, Júlio Pereira e Sérgio Mestre.

Interessante é a recuperação que Albérico Costa faz da relação do cantor com a Arrábida, fosse por motivos de tomada de posição no desrespeito que havia pela Serra, por razões de saúde ou de recolhimento. Em capítulo sobre “o misticismo de José Afonso”, a Arrábida surge como espaço místico, tal como foi território de liberdade onde houve a possibilidade de “melhor ouvir as emissões do Rádio Portugal Livre e da Rádio Voz da Liberdade”. Por ali passam também os poemas de Frei Agostinho da Cruz, de Sebastião da Gama e de Bocage no que têm a ver com a espiritualidade e com a urgência de contemplar a Natureza, atitude que surpreende e que levou o próprio José Afonso a confessar ao seu amigo Francisco Fanhais, conforme lembra Albérico Costa: “Se os meus amigos marxistas soubessem que ando a ler o Frei Agostinho da Cruz...”

Nesta abordagem, repara o leitor que a intervenção política marcou toda a vida de José Afonso, particularmente em Setúbal (1967-1987), originando que mesmo o seu velório, ocorrido na Escola Secundária S. Julião (actual Escola Secundária Sebastião da Gama), ficasse rodeado de jogos políticos, tendo chegado a haver a proibição pelo Governo Civil de que essa última despedida se realizasse na escola...

O tratamento que Albérico Costa faz da ligação de José Afonso a Setúbal não está isento de um dever de memória: “Esta cidade deve-lhe a presença infinitamente solidária e amiga. E ele, o autor único, o músico superlativo, o cantor inigualável, deve à cidade duas décadas de permanente contrato de vida plena.” Um trabalho em prol da memória que o autor muito bem fez, associando o historial do que foi o Círculo Cultural de Setúbal...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1348, 2024-07-24, pg. 5.

 

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Círculo Cultural de Setúbal e José Afonso contados por Albérico Costa (1)



O livro pode dividir-se em duas partes: a primeira, levantando a história de uma instituição como foi o Círculo Cultural de Setúbal (que durou entre Maio de 1969 — é do dia 28 desse mês a escritura pública que o forma — e o último dia de 1998); a segunda, relembrando a ligação de José Afonso à cidade de Setúbal e o contributo militante que este lhe deu, particularmente na sua acção no Círculo Cultural. Fala-se de uma obra indispensável para o entendimento do que foi a intervenção cultural em prol da liberdade e da promoção e formação individual de muitos setubalenses, escrita por Albérico Afonso Costa, O Círculo Cultural de Setúbal - De Ninho Oposicionista a Quartel-General da Revolução - Um Redondo Vocábulo pela Mão de José Afonso, de edição recente (Câmara Municipal de Setúbal, 2024).

Os quase trinta anos da história do Círculo Cultural de Setúbal são relatados a partir de investigação nos arquivos da Associação José Afonso e da Torre do Tombo, da imprensa local e de entrevistas a 33 participantes na história da associação, fontes que permitem ao leitor sentir também o ambiente vivido em torno deste projecto, frequentemente pintado pela memória da intensidade da experiência levada a cabo por muitos intervenientes.

Desde a sua primeira iniciativa — uma visita de estudo à Estação Romana de Tróia, em 27 de Junho de 1969 —, o Círculo interveio na cultura setubalense a partir de múltiplas entradas: artes plásticas, cinema, teatro, fotografia, poesia, conferências, edição e uma secção escolar (que se revelou fundamental para a formação de muitos jovens e adultos interessados no seu enriquecimento académico, feito fora dos horários de trabalho). A explicação para a intensidade e importância da acção desenvolvida aparece relacionada com o contexto de vazio sentido, “de desvalorização de tudo o que pudesse ter um aroma mínimo de pensamento crítico, essa dimensão tão temida e odiada pelo regime”, o que permitirá “que o Círculo se vá configurar como um oásis naquele deserto cultural em que se vivia.”

Na origem desta instituição estiveram jovens ligados ao Centro de Estudos Humanísticos, criado no Clube de Campismo de Setúbal no início de 1967, bem como o grupo dinamizador da página cultural “Dom Quixote” (publicada n’ O Setubalense), objectivo que reuniu os nomes de Carlos Tavares da Silva, António Manuel Fráguas, António Quaresma Rosa, Tito Lívio Aguiar, António Júlio Garcia, Maria Antonieta Garcia, Alberto Almeida Garcia e Fernando Cardoso, nomes a que vieram juntar-se vários mais como “fundadores” (Maria Adelaide Rosado Pinto, Idalino Cabecinha, João Moniz Borba, José Afonso, Clementina Pereira, entre outros).

Desde que as actividades foram iniciadas, o Círculo esteve sempre sob observação da polícia política, que o classificará como “alfobre de oposicionistas ao regime vigente” e chegará a manter um “infiltrado” nas sessões para ir dando conta do acontecido. O que terá salvado a manutenção do Círculo foi o facto de, nos seus órgãos sociais, também constarem nomes considerados insuspeitos e pertencentes à elite local (Adelaide Rosado Pinto, Moniz Borba, Idalino Cabecinha, por exemplo) ou o próprio Secretário do Governo Civil (Fernando Cardoso); por outro lado, instituições como a Câmara Municipal de Setúbal e o Governo Civil apoiaram diversas iniciativas levadas a cabo pela instituição, o que dificultava excessos que a polícia política pudesse pretender... Não obstante isso, alguns dirigentes do Círculo conheceram a prisão, sob a alegação de “ligações orgânicas ao PCP ou a outras organizações clandestinas”.

Se, com o 25 de Abril, o Círculo funcionou, como refere Albérico Costa, como “o Quartel-General da Revolução”, pelo protagonismo que tiveram vários dos seus elementos na organização dos democratas, também se torna notório para o autor que um período de algumas divergências e tensões, o assumir de novas responsabilidades políticas por parte de alguns dos seus dirigentes, a multiplicidade de iniciativas culturais que muitas entidades passaram a promover e o facto de passar a existir ensino nocturno levarão a uma “progressiva perda de centralidade do CCS no espaço cultural e político da cidade”, que terá o seu termo na entrega das instalações da sede ao proprietário, depois de um tempo de dificuldade económica.

A investigação presente nesta obra faz justiça ao papel da instituição Círculo Cultural de Setúbal e a muitas das figuras que foram centrais na sua acção, num discurso que dá voz aos protagonistas e aos documentos que subsistem, contributo enriquecedor para a história da cultura em Setúbal.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1343, 2024-07-17, pg. 10.


quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Albérico Costa e os dias de Setúbal (3)



A década setubalense de 1970, no tempo decorrido até 24 de Abril de 1974, data que marca o fim da narrativa abordada por Albérico Costa em Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar e a Caetano - 1950-1974, oscilou entre um “crescendo de agitação social e política” de contestação e “mais repressão” por parte do regime.

O exercício da Resistência passou pelo MOD (Movimento de Oposição Democrática), criado em 1969, numa acção contínua de forte actividade reivindicativa no sector fabril e industrial até 1974, como passou por uma concertação dos movimentos oposicionistas, de maneira a não serem cometidos nas eleições os erros estratégicos das décadas anteriores - o envolvimento da Oposição nas eleições de 1973, depois dos trabalhos desenvolvidos no III Congresso da Oposição Democrática realizado em Aveiro, foi marcado por: acção intensa relativamente ao recenseamento; elaboração de requisitos para a escolha dos futuros candidatos a deputados; campanha muito participada em torno de temas como a libertação dos presos políticos, a guerra colonial, as liberdades públicas, a situação da mulher, o papel da juventude.

Simultaneamente, ocorria a “lavagem da imagem” levada a cabo pelo marcelismo - a Censura passou a designar-se como “Exame prévio”; o partido da União Nacional viu o seu nome alterado para Acção Nacional Popular; a PIDE recebeu o nome de Direcção-Geral de Segurança (DGS). No entanto, estas mudanças nas designações pouco mais seriam do que isso mesmo, pois a repressão recrudesceu, com buscas às residências e prisões, grandemente dominadas pelo Congresso de Aveiro, pretendendo a polícia política estabelecer uma relação de colagem da Oposição com o Partido Comunista Português.

Albérico Costa recorda-nos o papel fundamental que o Círculo Cultural de Setúbal desempenhou no apoio à Resistência, espaço que a PIDE designava como “um alfobre de oposicionistas ao regime vigente”, como regista a criação de comissões sindicais nas fábricas ao longo de 1973 “para tratar dos assuntos de carácter reivindicativo junto da entidade patronal” ou as várias greves que foram sucedendo, muitas delas designadas como “greve de cera”, em que “o pessoal fingia que trabalhava, mas não trabalhava”, como aconteceu, por exemplo, no início de 1974 com as operárias da secção de manipulação da INAPA, que “baixaram a produção individual de 100 resmas por dia para 30 e 40” quando souberam que havia a intenção de a empresa proceder a despedimentos.

Na cronologia desta época, vários momentos podem ser assinalados, como a constituição da SETENAVE e o encerramento de uma dezena de fábricas de conservas de peixe (1971), a queixa apresentada por 400 comerciantes do Mercado do Livramento contra a intenção de ser criado um supermercado em área próxima do Mercado e a criação no papel do Instituto Politécnico de Setúbal (1972, embora o IPS só venha a ser efectivamente criado em 1979), a realização da primeira intervenção cardíaca para aplicação de um “pacemaker” no Hospital de S. Bernardo e as chamadas de atenção para a poluição no Sado ocasionada por diversas unidades fabris (1973) e a realização da última reunião da Câmara de Setúbal em 24 de Abril de 1974, em que foram tratados assuntos como as carências dos bombeiros, loteamentos e concessão de alvarás de loteamentos e “o estado deplorável” em que se encontrava a morgue... 

Paralelamente a todos os eventos, pairava o espectro das prisões e da perseguição dos cidadãos, num ritmo de invasão da privacidade e das vidas, aspecto que constitui parte interessante nesta obra ao traçar as resenhas biográficas dos presos políticos e daqueles que eram referenciados nos depoimentos recolhidos. A quantidade de presos e de referenciados não nos surpreende, pois Albérico Costa, à medida que relata os acontecimentos, vai respigando as informações que povoam os relatórios policiais e, em variadíssimas situações, é dado a conhecer o meio por que chegavam as informações - os agentes ou informadores infiltrados foram um recurso permanente que manteve a polícia a par das intenções e dos planos da Oposição. As penas aplicadas (prisão, perda de funções políticas e de pensões de aposentação, multas e suspensão de direitos políticos) resultam de acções como: participação nas comissões promotoras do voto, ter como companhia indivíduos de que a polícia já suspeitava, intervenção desenvolvida em prol dos movimentos de contestação, ser leitor ou comprador do “Avante!”, exercício da emigração clandestina. Quanto aos “referenciados nos relatórios”, entre as faltas que lhes apontadas, constam: ser membro do Clube de Campismo de Setúbal ou do Círculo Cultural de Setúbal, ser visto com outros suspeitos, ter sido apoiante de candidatos anti-regime, ter fiscalizado a eleição para a Presidência da República, ser “um elemento desafecto” (adjectivo de amplo espectro, normalmente sem argumentação, mas fortemente acusador) ou promotor da “subversão da juventude” (como chegou a ser apontada a acção desenvolvida ao nível paroquial no trabalho com jovens).

Esta obra de Albérico Costa, se nos dá a conhecer o que foram em Setúbal os últimos 25 anos do regime ditatorial, sobretudo nas suas vertentes política e social, constitui também um bom repositório para o retrato da identidade setubalense e para nos ajudar a perceber a intensidade com que as manifestações políticas e sociais foram vividas neste território logo que a liberdade de expressão e de manifestação se instalou, ambas as vertentes cimentadas numa investigação rigorosa e plural, que devolve à história local de Setúbal o protagonismo da sua comunidade.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1210, 2023-12-20, pg. 10.


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Albérico Costa e os dias de Setúbal (2)



O estudo de Albérico Costa sobre a década sadina de 1960, em Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar e a Caetano - 1950-1974, permite ao leitor o destaque de cinco aspectos - as manifestações ocorridas em 28 de Maio de 1962, o trabalho ideológico feito na clandestinidade, a intervenção social e política dos católicos, o condicionamento da oposição nas eleições para a Assembleia Nacional de Outubro de 1969 e a perseguição da polícia política.

Nenhum destes temas surge isolado do contexto nacional desta década, iniciada por acontecimentos tão fortes do ponto de vista simbólico e social como a fuga de presos políticos de Peniche (Janeiro de 1960), o assalto ao “Santa Maria” e o início da guerra colonial (em 1961) ou o assalto ao quartel de Beja (cerca de um terço dos implicados pertencia à área de intervenção da PIDE de Setúbal) e as manifestações estudantis (em 1962), e concluída com a queda que vitimaria Oliveira Salazar (Agosto de 1968), uma anunciada liberalização de Marcelo Caetano e um ambiente persecutório à Oposição nas eleições de 1969.

As palavras de ordem pintadas na Avenida Luísa Todi em 1 de Maio de 1962, exigindo a libertação dos presos políticos e contestando a política salazarista, abriram a porta para o que seria a manifestação de 28 do mesmo mês (data escolhida por coincidir com dia importante para a criação do Estado Novo), fortemente anunciada e vivida, em confrontos com as forças de segurança, com apedrejamento do edifício da Caixa Geral de Depósitos (instituição a que as pessoas recorriam para pôr “no prego” os escassos bens que tinham), sem que a polícia política tivesse descoberto os verdadeiros responsáveis, ainda que tenha responsabilizado e tentado incriminar os membros afectos ao Partido Comunista Português.

Se este partido esteve envolvido em todo o processo de Resistência ao Estado Novo, a verdade é que essa acção teve de ser desenvolvida quase totalmente na clandestinidade - Albérico Costa regista as instalações secretas na região de Setúbal (56 casas no distrito, entre 1941 e 1974, sendo 18 no concelho de Setúbal), destacando duas: a morada que serviu o casal de militantes comunistas Dinis Miranda e Aura Silva, na Praceta de Macau, até à prisão de ambos em 1967 e apreensão de documentos ligados ao partido, e a tipografia clandestina do jornal “Avante!” localizada na Rua Frei António das Chagas, desmantelada em 1967, quando foram presos Manuel Gonçalves e Joaquina Galante, ali residentes e responsáveis pela gráfica.

Sector também importante na crítica e contestação ao regime político foi o da Igreja setubalense (que viveu nesta década também os primeiros passos para a criação da diocese, sendo o cónego João Alves o vigário da Zona Pastoral de Setúbal), com a acção de vários membros do clero e de muitos leigos, numa perspectiva de compromisso com a liberdade, de contestação da guerra colonial, de apelo à participação nas eleições, de apoio social e de realização de sessões culturais e informativas. Capítulo indispensável para a história dos católicos de Setúbal, passa pelas histórias de muitos que estiveram na primeira linha da crítica ao poder (com prisões pela PIDE, como foram os casos dos padres Carlos Alves, de Alhos Vedros, e António Correia, de Palmela), pelo movimento do Secretariado Cristão de Acção Social, pela Fraternidade Operária das Praias do Sado, pelo jornal “Notícias de Setúbal” (periódico diocesano em que assumiu particular destaque a intervenção do médico Mário Moura), pela criação do espaço Culdex (que, depois, originaria a livraria Culsete).

A década de 1960 acaba no processo eleitoral para a Assembleia Nacional em 1969, com uma Oposição a quem foi tolerado concorrer, mas sob fortes condicionalismos e pressões que foram até à falsificação e manipulação do processo eleitoral por membros afectos à União Nacional visando a distorção dos resultados e, mais uma vez (como sucedera no final da década anterior), sem um entendimento sólido entre as várias frentes que constituíam os movimentos oposicionistas.

Aspecto importante realçado ao longo desta obra é o das prisões e da recolha de informações sobre opositores, chegando muitas das observações à indignação, por um lado, e ao ridículo, por outro, pelas inferências apresentadas, como se vê num registo sobre Mário Moura pelo chefe do posto de polícia: “É um indivíduo muito esperto e manhoso, ausenta-se frequentemente do País, levando uma roulotte atrelada ao seu carro, possivelmente para estabelecer contactos no estrangeiro com maior segurança.”

A cronologia da década informa sobre eventos importantes para a cidade em diversos planos: a inauguração do Museu de Setúbal (1961) e do Estádio do Bonfim (1962), o litígio entre a Soltróia e os proprietários em Tróia em torno da desocupação do terreno (1963), os problemas ambientais trazidos pela Socel (1964), a inauguração do Parque das Merendas da Comenda (1967) e a fundação do Círculo Cultural de Setúbal (1969), entre outros.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1205, 2023-12-13, pg. 10. 


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Albérico Costa e os dias de Setúbal (1)

 


Com a obra Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar e a Caetano - 1950-1974, acabado de publicar (Estuário, 2023), Albérico Costa encerra o ciclo da cronologia setubalense que se propôs elaborar, constituída por diversos tomos: História e Cronologia de Setúbal - 1248-1926 (em 2011), Setúbal sob a Ditadura Militar - 1926-1933 (em 2014), Setúbal sob o Estado Novo - A Resistência a Salazar - 1933-1949 (em 2021) e Setúbal Cidade Vermelha - 1974-1975 (em 2017), volumes com a mesma chancela editora. Conjunto que integra momentos de cronologia e de ensaio, este projecto de Albérico Costa tem uma história longa, pelo menos desde que, em 1988, publicou um pequeno livro intitulado Cronologia Geral da História de Setúbal - 1249-1910 (editado pela Escola Superior de Educação de Setúbal). Sem qualquer dúvida, está o leitor perante uma obra indispensável para a história local sadina, de consulta obrigatória, que sugere, inclusivamente, múltiplas possibilidades de investigação, além de caucionar a importância da história local, em que o interveniente é, também, o cidadão comum.

Na nota introdutória ao volume agora publicado, o autor salienta dois aspectos que, em conjunto, justificam a sua motivação e valorizam a perspectiva da história setubalense: por um lado, no que respeita especificamente ao período em apreço (o tempo do Estado Novo), a necessidade de “fazer a História de uma cidade que nunca se conformou com o destino que lhe era imposto”; por outro, porque é importante notar que “o passado urbano do espaço setubalense não é apenas um espaço físico, mas também um espaço idiossincrático com características exclusivas”.

A obra, construída sobre fontes como estudos já realizados, imprensa local e nacional, testemunhos e entrevistas e aturada busca em arquivos (entre os quais, a Torre do Tombo), organiza-se em três planos - um conjunto de cinco capítulos, de cunho ensaístico, que relata, relaciona e interpreta os acontecimentos do período em apreço (os quase 25 anos que antecederam o 25 de Abril); um lote de sínteses biográficas, que compreende registos de 139 presos políticos setubalenses e de 165 nomes referenciados nos relatórios da PIDE de Setúbal; cronologia de acontecimentos em Setúbal no período entre 23 de Janeiro de 1950 e 24 de Abril de 1974.

O espaço dedicado à década de 1950, deixa transparecer um ambiente de crise económica e social em Setúbal (haja em vista a mono-indústria da área conserveira com baixos salários ou os períodos de defeso da pesca), por vezes minimizada com paliativos que mais visavam preservar a paz social do que resolver os problemas, com os vários quadrantes políticos da oposição distantes entre si, sem construírem conjuntamente uma alternativa. A forte repressão exercida na década anterior e o desaire em torno dos resultados do candidato Norton de Matos em 1949 terão conseguido uma quase neutralização da oposição, fortemente dividida. Mesmo a candidatura presidencial de Humberto Delgado em 1958 dificilmente congregou os vários movimentos da oposição - se a unidade em torno deste nome “esteve longe de ser linear” no plano nacional, também em Setúbal, só em 27 de Maio, a cerca de dez dias do acto eleitoral (8 de Junho) foi criada a Comissão Distrital de apoio a esta candidatura e só a uma semana das eleições (30 de Maio) foi celebrado o conhecido “Pacto de Cacilhas”, com a desistência da candidatura de Arlindo Vicente em favor da de Delgado. A situação vivida politicamente ao longo desta década leva Albérico Costa a considerar os anos de 1950 “como a década de todas as derrotas”.

Nos registos cronológicos para este tempo, não deixa de ser curioso que a primeira nota da década, de 23 de Janeiro de 1950, seja a de um apelo público saído na imprensa, convidando as senhoras que costumavam fazer compras em Lisboa a preferirem o comércio de Setúbal: “Se fizessem as suas compras na cidade, ajudariam os comerciantes setubalenses que investiram nas lojas e na mercadoria, e contribuíam para o desenvolvimento da sua cidade e ainda poupavam dinheiro.” Assim se misturava o apelo ao consumo com o benefício local como contributo para ultrapassar a crise. Por outro lado, a cronologia da década fecha com a notícia, de 3 de Novembro de 1959, sobre a instalação da indústria da celulose na cidade de Setúbal, “unanimemente aprovada pela vereação, considerando-se que a referida indústria não ia causar problemas ambientais.” A esperança surgia, a anteceder os anos de 1960, alicerçada na indústria...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1202, 2023-12-07, pg. 7.

 

quinta-feira, 30 de julho de 2020

De Setúbal se vê o mundo e o tempo que o faz



Se é verdade que os jornais narram o mundo por episódios que acrescem à medida da periodicidade, também constituem um documento datado (muitas vezes, fonte única) para que a História possa ser feita em qualquer momento, género de visitação ao passado, ali agindo os protagonistas dos tempos, desde o cidadão comum à mais destacada personalidade.

Se dúvidas existissem, bastaria olharmos o livro Setúbal no Centro do Mundo que acaba de sair, editado pelo jornal O Setubalense a partir de ideia do seu director, trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa e devido a uma equipa de vinte colaboradores. O título faz justiça ao papel do jornal e localiza-nos (aos leitores e aos autores): Setúbal como miradouro onde o mundo e o passado podem ser revisitados, perspectiva útil para a imprensa dita regional, que deve noticiar o local sem esquecer o nacional ou o universal pelas implicações destes dois universos nas nossas vidas.

O pretexto do livro, trabalhado por uma equipa com ligações a múltiplas áreas do saber (declaração de interesse: sou um dos membros do grupo), foi o 165º aniversário do título jornalístico O Setubalense, puxado para o mundo da imprensa pelo sadino Almeida Carvalho em 1855, data em que O Setubalense se colou à identidade desta região, muito embora com algumas interrupções.

Estruturado em seis partes, Setúbal no Centro do Mundo sustenta-se em diversos vectores que favorecem o pendor narrativo, por um lado, e o encontro com momentos, acções ou personagens essenciais ao espaço setubalense, por outro. Do ponto de vista dos acontecimentos, estão eles organizados em dois grupos - os que têm a marca local, gerados a partir de Setúbal, e os que assentam em mais vastas latitudes, sejam nacionais ou internacionais. Desde 1855, foram escolhidos 55 factos ocorridos na margem do Sado, em áreas tão diversas quanto o associativismo e as colectividades, o lazer, a educação, o desporto, a política, o mundo do trabalho, a mobilidade, os investimentos em obras e melhoramentos, a industrialização, a afirmação de valores, a cultura, a economia, a religião ou a preocupação ambiental. No plano nacional ou internacional, o destaque caiu sobre 23 eventos, selecionados a partir da segunda fase de publicação do jornal (1916), todos de suma importância para o nosso estado de cidadãos pelas réplicas geradas - a título de exemplo, refiram-se a Revolução Russa, a guerra civil em Espanha, as duas guerras mundiais, a guerra colonial, a europeização do Benfica, as implicações do domínio soviético em diversos países, as visitas papais a Portugal, a entrada na União Europeia, o caso de Timor, o nobelizado Saramago ou o 11 de Setembro, todos eles contados a partir daquilo que O Setubalense escreveu na altura sobre os mesmos, via relato informativo ou texto de opinião.

Não se fazendo a história sem personagens, outra parte da obra é construída sobre perfis de 52 nomes ligados a Setúbal durante este século e meio ou sobre os quais houve eventos neste mesmo tempo. Por aqui passam nomes indiscutivelmente conhecidos e divulgados, associados a outros sobre os quais haverá menos conhecimento - Agostinho da Cruz, Américo Ribeiro, António José Baptista, António Maria Eusébio, Bocage, Francisco Paula Borba ou Jacinto João, entre outros, levam-nos à redescoberta, assim como Agripino Maia, António Joaquim de Melo, Armando de Medeiros, Mendes Dordio, José Augusto Coelho, José Bernardo ou Maria Emília Barradas, entre muitos outros, chamam à descoberta. De personagens se fala também num outro capítulo com notícias avulsas, coleccionadas a partir de 1855, tendo como protagonista o cidadão comum e as suas vivências do quotidiano, imagens do que a cidade foi também nas histórias que muitas vezes se não contam.

Finalmente, o jornal e a sua história, porque o leitor deve conhecer esta figura que lhe traz as notícias e as caras todos os dias, surgem num capítulo que contextualiza o tempo em que o jornal se criou e em que são lembradas as várias fases por que passou (por vezes interrompidas por acontecimentos políticos, razões económicas, situações de contexto) e num outro em que são visitadas algumas páginas que tiveram continuidade (das várias possíveis), normalmente ligadas à cultura ou ao pensamento.

Ao ter este livro uma mensagem de saudação do Presidente da República (e sabemos como Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi ligado aos jornais), ele acaba por ser também uma homenagem à própria história da imprensa sadina e a todos aqueles que sistematicamente a fazem para garantir a opinião como um dos elementos-base da democracia. Este é, aliás, um dos aspectos pensado por Viriato Soromenho-Marques no texto introdutório, ao referir a necessidade de o homem “olhar criticamente o quotidiano de uma cidade”, depois de evocar uma interessante e feliz citação hegeliana - “a leitura dos jornais é a oração matinal do homem atento à realidade.”

Setúbal no Centro do Mundo é, pois, um livro para não esquecer - pelo que consegue coligir do muito que nos faz o que somos, pelas histórias que nos (re)conta, pelo contributo para a história local absolutamente interligada com o universal, com a vantagem de todos os contributos serem apresentados em textos curtos e autónomos. Podemos questionar-nos sobre os acontecimentos escolhidos ou as personagens selecionadas... Podemos, claro. Mas esta obra é apenas um olhar plural sobre a vida de uma região, necessariamente com escolhas, sempre discutíveis porque, na nossa livre opinião, conseguimos sempre encontrar um, dois (ou mais) eventos ou uma, duas (ou mais) personagens que deveriam constar. Mas há uma razão de fundo: uma escolha pressupõe os caminhos do essencial, sendo que o mundo se faz com o essencial e com tudo aquilo que o rodeia. Como se costuma dizer: um livro a não perder e a ser visitado sempre que apeteça olhar como chegámos até aqui.
J.R.R. O Setubalense: nº 447, 2020-07-30, pg. 2

sexta-feira, 20 de março de 2020

Vivências de Zeca Afonso em Setúbal


As ligações de José Afonso à cidade do Sado estão registadas por Albérico Afonso costa em livro publicado há poucos meses - Lugares de José Afonso na geografia de Setúbal (Associação José Afonso, 2019). É um roteiro sobre o Zeca em Setúbal, é verdade; mas é, sobretudo, uma evocação do artista e do cidadão, que vale a pena ler.
Iniciei a rubrica "500 Palavras" no jornal O Setubalense com esse livro (edição de 16 de Março), crónica que aqui reproduzo.




terça-feira, 16 de outubro de 2018

Para a agenda - Leituras da Grande Guerra: o último fuzilado, as memórias, o impacto social e político



A Biblioteca Pública Municipal de Setúbal recebe no sábado, 27 de outubro, a apresentação da obra “João Almeida, o último Fuzilado, e outras leituras da Grande Guerra”, da autoria de Albérico Afonso Costa e João Reis Ribeiro.
A obra, apoiada pelo Instituto Politécnico de Setúbal, será apresentada por Viriato Soromenho-Marques, em sessão marcada para as 18h00.
Quase a completar-se o ciclo de memória do centenário da Grande Guerra, este livro é constituído por seis abordagens relacionadas com esse momento histórico: “A receção do antimilitarismo no movimento operário português”, “Os partidos políticos face à Guerra”, “Jaime Cortesão: um intelectual perante a Guerra”, “Aquilino Ribeiro – diário do início da Guerra”, “O impacto social e político da I Grande Guerra no movimento operário” e “O fuzilamento do soldado João Almeida – Da farsa de um julgamento à tragédia de uma execução”. As fontes principais para a organização desta obra foram a imprensa da época, os testemunhos memorialísticos sobre esse tempo histórico e documentação preservada em alguns arquivos.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Para a agenda: João Almeida, o último fuzilado, e outras histórias da Grande Guerra



Seis abordagens relacionadas com a Primeira Grande Guerra - “A recepção do antimilitarismo no movimento operário português”, “Os partidos políticos face à Guerra”, “Jaime Cortesão: Um intelectual perante a Guerra”, “Aquilino Ribeiro - Diário do início da Guerra”, “O impacto social e político da I Grande Guerra no movimento operário” e “O fuzilamento do soldado João Almeida - Da farsa de um julgamento à tragédia de uma execução” - constituem o conteúdo da obra João Almeida, o Último Fuzilado, e Outras Leituras da Grande Guerra, assinada por Albérico Afonso Costa e por João Reis Ribeiro e apoiada pelo Instituto Politécnico de Setúbal.
Está para breve, as provas já estão em revisão...

sábado, 26 de maio de 2018

Setúbal: A "cidade vermelha" que Albérico Costa nos lembrou



Quando, em 1610, Duarte Nunes de Leão publicou a sua obra Descrição do Reino de Portugal, deixou-se ofuscar pelas cores que dominavam a construção da cidade sadina: “Na vila de Setúbal há uma pedra de várias cores, convém a saber branco, vermelho, encarnado, toda feita de remendos como seixinhos, que parece que se pegaram com a mão e que não nasceram assim, a qual a gente vulgarmente e erradamente chama jaspe, por aquela diversidade de cores. Desta pedra está edificada toda aquela grande vila (...). A que é sólida e maciça e que acerta não ser variada, mas fica só em vermelho, parece verdadeiro pórfido.” Nunes de Leão acentuava o vermelho resultante do material usado na construção, uma questão física, que dava cor a Setúbal.
Cerca de três séculos e meio depois, o tom do vermelho voltaria a ser chamado para classificar a cidade, desta vez não por razões físicas, mas por questões de identidade e de intervenção cívica e social - em 12 de Março de 1975, o jornalista Rogério Severino chamava para primeira página de O Setubalense o título da sua reportagem “Em Setúbal, Cidade Vermelha - Conferência de imprensa: Importantes declarações sobre os acontecimentos do 7 de Março”; em 1976, era apresentado o filme-documentário Setúbal - Ville Rouge, com realização de Daniel Edinger e de Michel Lequenne, rodado no início de Outubro de 1975, abordando o papel das comissões de trabalhadores, de soldados e de moradores, dando destaque à actividade das comissões existentes na Setenave e na Movauto; em 2017, o epíteto serviu para o título da obra de Albérico Afonso Costa - Setúbal Cidade Vermelha - Sem perguntar ao Estado qual o caminho a tomar (Setúbal: Estuário, 2017) -, monografia que estuda o período entre 25 de Abril de 1974 e final de Novembro de 1975 em Setúbal.
Logo no preâmbulo da obra, o autor dá conta das dificuldades e das apreensões na construção da história deste período em Setúbal: ora pelo papel das memórias dos intervenientes, ainda ligadas aos “afectos e desafectos que sentiam à data”, ora pela conflitualidade entre o que a memória preserva e o que a realidade é (foi), ora porque “a paixão e o ódio convivem no tempo efémero de uma Revolução”. Assim fica claro que a forma como cada um dos intervenientes conta a história é uma leitura da sua participação e das suas convicções, como se torna evidente que a necessidade deste livro decorre da urgência de salvaguardar do esquecimento o que foi um período intenso da vida política e social em Setúbal e que “este trabalho deve ser entendido como uma primeira tentativa, ainda que limitada, de síntese interpretativa de um período tão rico da história da cidade.”
Organizado em cinco partes, o estudo de Albérico Afonso Costa parte do ciclo conserveiro, para explicar as convulsões sociais na cidade que chegou a ser identificada como a “Barcelona Portuguesa”, haja em vista o papel que o operariado teve na luta pelas suas reivindicações, bem como a posição de força que o regime republicano adoptou para controlar as formas como as exigências eram manifestadas, questão que mereceu já títulos de investigação por parte de autores ligados a Setúbal, como Albérico Afonso Costa e Álvaro Arranja. A segunda parte estabelece a ligação entre o que se passou em Setúbal e o que foi a história política do país no período entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro do ano seguinte, com os episódios alusivos ao 28 de Setembro e ao 11 de Março; a terceira parte chama a atenção para a nova organização política e social levada a cabo sobretudo em Setúbal (papel das comissões de moradores, das comissões de trabalhadores, da Assembleia Geral do Concelho de Setúbal e do Comité dos Organismos Populares de Setúbal), talvez sendo esta a parte que mais razão confere ao subtítulo que o autor escolheu para a obra; a quarta parte abre caminho pelas relações do poder autárquico com este período histórico, trajecto nada fácil pelas dificuldades em conciliar a ideia de revolução com a ponderação necessária, dando destaque especial a acontecimentos como a manifestação das betoneiras (14 de Junho de 1974), a relação conflituosa com a comissão de trabalhadores ou o conhecido episódio do hasteamento da bandeira da União Soviética no edifício da Câmara de Setúbal (em Junho de 1975, aquando da visita da astronauta Valentina Tereshkova); a quinta parte faz o ponto da situação relativamente a diversas instituições (partidos políticos, imprensa - com relevo para a intervenção do jornal O Setubalense -, igreja - com a importância da criação da diocese de Setúbal na altura - e organizações sociais como a Casa do Gaiato, o Asilo Dr. Paula Borba ou a Santa Casa da Misericórdia) e à acção que tiveram ou sofreram durante o período em apreço.
Esta obra é um bom repositório dos acontecimentos que marcaram Setúbal nesse tempo, percebendo o leitor que as principais causas que dominaram o panorama terão sido a resolução de “múltiplos problemas da vivência urbana e a melhoria das condições de trabalho nas empresas”. Por outro lado, a luta pelo espaço político foi outra das dominantes, haja em consideração o “confronto de perspectivas entre o Partido Comunista Português e as organizações da esquerda revolucionária” ou a oposição nítida aos partidos de centro e de direita. Com papel relevante surge também o Círculo Cultural de Setúbal, verdadeiro cadinho de formação vanguardista para diversos actores deste período histórico em Setúbal.
A obra insere ainda uma cronologia exaustiva do dia-a-dia vivido em Setúbal, recorrendo aos principais acontecimentos que povoaram o quotidiano, muitas vezes ilustrados com fotografias ou fac-símiles ou reprodução de documentos surgidos durante este período - notícias, correspondência, comunicados.
Na bibliografia, nota-se a quase inexistência de estudos relativamente a esta época vivida em Setúbal, devendo ser dado destaque a essa obra de memória e de registo testemunhal que é Memórias da Revolução no Distrito de Setúbal - 25 Anos Depois, devida a Pedro Brinca e a Etelvina Baía, dois volumes que reúnem mais de uma centena de entrevistas (Setúbal: “Setúbal na Rede”, 2001-2002). Por essa quase inexistência, é de sublinhar a atenção dada aos arquivos (Arquivo Nacional da Torre do Tombo - arquivo da PIDE/DGS, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Setúbal e Arquivo Distrital de Setúbal), à imprensa (O SetubalenseO Distrito de SetúbalNotícias de Setúbal Margem Sul) e às entrevistas com diversos protagonistas (23, no total).
Como o autor sublinhou no início da obra, compreendendo o risco de historiar sobre assuntos contemporâneos, esta obra é “uma primeira tentativa” de interpretação dos factos, exigindo, por isso, outras abordagens ao mesmo período temporal, designadamente quanto à intervenção de outros sectores, como o militar ou o patronal, forçosamente fornecedores de dados importantes quanto às vivências, às causas e às condições como este tempo foi sentido, ou quanto à acção desenvolvida nos concelhos limítrofes, na península de Setúbal, uma vez que muitas ocorrências a sul do Tejo deram visibilidade, em termos mais vastos, a Setúbal, quer por ser capital de distrito, quer por aqui haver a representação do poder que era o Governo Civil.
Até que outras análises sucedam, temos este Setúbal Cidade Vermelha como roteiro adequado, que faz o filme do sucedido, muitas vezes seguindo o ardor posto nas informações recolhidas, sempre perseguindo a acção, numa perspectiva em que o tempo se deixa dominar pelo que acontece, quase havendo a sensação de se estar a presenciar ou a viver os acontecimentos, o que torna esta obra indispensável para conhecer esse momento e para ajudar a entender a identidade desta região, sendo por isso importante que Albérico Afonso Costa conclua a obra da forma que o faz: Setúbal “é a cidade onde a esquerda se movimenta com o à-vontade próprio de quem está na sua casa; (...) é a cidade que se organiza nos grandes momentos de tensão (...); é a cidade da vigilância revolucionária, que discute, efabula, sonha e desnorteia; é a cidade em que o PCP ganha as eleições, ocupa parte significativa do aparelho de Estado em recomposição e apesar disso não consegue um controlo total das greves e das ocupações; (...) é, por fim, a cidade onde a trama da Revolução melhor se urde e onde melhor se sente a mudança abrupta que o 25 de Abril trouxe consigo. (...) O que se ganhou foi o produto desta acção.”
A questão dos acontecimentos ligados a Setúbal e da identidade desta região tem sido uma preocupação de Albérico Afonso Costa. Aos títulos História e Cronologia de Setúbal 1248-1926 (Setúbal: Estuário, 2011) e Setúbal sob a Ditadura Militar 1926-1933 (Setúbal: Estuário, 2014) veio agora juntar-se este Setúbal Cidade Vermelha 1974-1975, todos eles construídos com informação segura e um estilo acessível, tornando-se marcos incontornáveis para o conhecimento da terra sadina.

(Revista LASA. Setúbal: nº 4, Primavera.2018, pp. 17-20)

domingo, 7 de janeiro de 2018

Para a agenda - A História do Mundo é a História Local - 1ª sessão



"A História do Mundo é a História do Local" é o título de uma série de encontros sobre história local a acontecerem no âmbito da programação "Muito Cá de Casa", na Casa da Cultura, em Setúbal. A primeira sessão terá lugar já em 12 de Janeiro, sexta feira, pelas 22h00, e contará com dois nomes que têm dado importante contributo para a história local sadina: Albérico Afonso Costa e Francisco Borba. O encontro será moderado por José Teófilo Duarte.
O título mais recente de Albérico Afonso Costa é Setúbal - Cidade Vermelha (Setúbal: Estuário, 2017), que abrange o período de 1974-1975 na cidade do Sado; a obra mais recente de Francisco Borba é O Balneário (Setúbal: ed. Autor, 2017), que conta a história da fundação do Balneário Dr. Paula Borba.
Uma oportuna série de encontros quando se assinala o Ano Europeu do Património Cultural. Para a agenda!

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Para a agenda: Albérico Costa estuda Setúbal, a "cidade vermelha"



Com as tantas histórias que se contam do período entre 1974/1975 em Setúbal, nunca se sabendo até que ponto a memória nos atraiçoa ou nos constrói, esta obra de Albérico Afonso Costa torna-se imprescindível por não se tratar de um trabalho em que a ideologia impere mas uma investigação com o rigor possível e com recurso às fontes possíveis. A ler, a pensar.
O preâmbulo que o autor assina é por si elucidativo das dificuldades: “Nenhum dos livros que publiquei sobre a História de Setúbal me causou mais inquieta apreensão e se revelou de uma dificuldade tão manifesta. Esta investigação sobre os anos ardentes do PREC confronta-se com memórias vivas cujos ‘proprietários’ são testemunhas dos factos que se pretendem narrar e de que foram simultaneamente produtores e produto.” É a dificuldade da escrita da História em convívio com os que dela foram protagonistas. Questões de choque, questões de verdades.
E, mais adiante, regista Albérico Costa: “A memória individual conflitua muitas vezes com a realidade que a História quer preservar.” Uma defesa prévia, não ignorando o historiador que todos os que foram agentes querem ter um lugar na História ou, pelo menos na “sua” história. De uma coisa não há dúvida: é que o livro relata o que foram “os intensos dezanove meses vividos em Setúbal no período revolucionário de 1974-1975”. E o leitor pode preparar-se para rever, reviver, contestar ou apresentar uma versão diferente de acordo com a sua vivência. Mas nada disso será suficiente para pôr em causa o trabalho de Albérico Costa, que nem estava em Setúbal na altura dos acontecimentos relatados - este é o seu contributo resultante da investigação e da consulta, uma porta aberta, pois. É que, como realça quase no final do texto introdutório, “a investigação posterior encarregar-se-á de consultar novas fontes e promover novas leituras acerca desta conjuntura que trouxe tantas mudanças à vida colectiva desta comunidade.”
Um muito bom contributo para a história recente de Setúbal traçado em cinco partes. Na mira de que surjam outros estudos sobre uma época de que muitos sabem mas que não tem sido estudada com o distanciamento imprescindível.
A apresentação pública da obra Setúbal Cidade Vermelha - Sem perguntar ao Estado qual o caminho a tomar (1974-1975), de Albérico Afonso Costa (Setúbal: Estuário, 2017), será feita por Fernando Rosas em 8 de Setembro, na Casa da Cultura, em Setúbal.

domingo, 23 de abril de 2017

Para a agenda: Almeida Carvalho em conferências



O bicentenário do nascimento de João Carlos de Almeida Carvalho continua a ser assinalado em Setúbal também através de conferências, que demonstram, pelos temas abordados, a personalidade multímoda que Almeida Carvalho cultivou. Para os tempos mais próximos, estão previstas três palestras: já em 28 de Abril, Albérico Afonso Costa fará o retrato de "Setúbal no tempo de Almeida Carvalho" (Biblioteca Municipal de Setúbal, às 21h30). Em Maio, Carlos Mouro, reputado (nem sempre reconhecido) investigador em história local setubalense, será autor de duas comunicações: uma, em 17, na Biblioteca Municipal de Setúbal, sob o título "Almeida Carvalho: Notas Biográficas" (às 16h00); a segunda, em 19, na Associação de Socorros Mútuos Setubalense, consagrada a "Almeida Carvalho e o pioneiro mutualismo local" (às 21h30).
Para a agenda!


domingo, 27 de novembro de 2016

Para a agenda: Casas Religiosas de Setúbal e Azeitão



Actualizado em 29 de Novembro - A obra Casas Religiosas de Setúbal e Azeitão (Setúbal: LASA / Estuário Edições, 2016), coordenada por Albérico Afonso Costa, António Cunha Bento, Inês Gato de Pinho e Maria João Pereira Coutinho, retoma as comunicações de congresso que a LASA promoveu há tempos sobre o mesmo tema.
Em 3 de Dezembro, dia que também é de S. Francisco Xavier (patrono de Setúbal e referência ligada a esta cidade por proposta da ordem religiosa dos Jesuítas, congregação que também por aqui teve casa), a LASA vai apresentar publicamente a obra no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, pelas 17h00. Um marco importante para a história religiosa de Setúbal e para a história local. Para a agenda!

quarta-feira, 26 de março de 2014

Para a agenda: João Madeira na Culsete, em Setúbal

 
 
Na Culsete, em iniciativa da livraria com a DDLX, Albérico Costa apresentará História do PCP, de João Madeira. Sábado, no programa "Se as coisas não fossem o que são". Para a agenda.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Albérico Afonso Costa e as datas de Setúbal

Sabe o leitor qual foi o primeiro rei a visitar Setúbal? Ou quando houve a primeira demarcação do concelho de Setúbal? Ou que Nuno Álvares Pereira foi impedido de pernoitar na cidade do Sado? Ou que Setúbal foi a terra onde D. João II casou com Leonor de Lencastre? Ou que navegadores diversos zarparam de Setúbal rumo aos Descobrimentos? Ou que Fernão Mendes Pinto em Setúbal se abrigou quando o barco em que viajava foi assaltado? Ou que uma postura do século XVIII punia quem cortasse árvores no campo do Bonfim com açoite público e degredo para África? Ou que aquele que viria a ser o marido de Ana de Castro Osório esteve preso durante um mês? Ou que, em 1918, militares idos de Setúbal sofreram pesadas baixas na Grande Guerra?
As perguntas são estas, mas podiam ser muitas outras e sobre tão diversas épocas. As perguntas são estas e correm como elementos seguros da identidade setubalense. E a fonte onde podemos encontrar as respostas é-nos trazida por Albérico Afonso Costa, no seu livro História e Cronologia de Setúbal (1248-1926) (Setúbal: Estuário / Instituto Politécnico de Setúbal – Escola Superior de Educação, 2011), com aparato gráfico agradável e facilitador da leitura surgido sob a responsabilidade de outro setubalense, José Teófilo Duarte.
Logo de início, o autor adverte-nos quanto às escolhas – “Numa cronologia, o desafio que está sempre presente é o da opção por este ou aquele acontecimento, no sentido de lhe determinar o significado, de lhe perspectivar as consequências, de o entender no seu todo enquanto elo da corrente histórica.” E o leitor segue, então, esse trajecto, resultante das escolhas feitas no tempo de Setúbal, num desvendar cada vez mais intenso, num querer saber mais e mais, sentindo as pulsações e os ritmos desta beira-Sado.
São quase trezentas páginas de datas e de acontecimentos, divididos em quatro partes – “Setúbal Medieval e Moderna” (entre o 15 de Agosto de 1248, em que abriu ao culto o mais antigo templo sadino, a igreja de Santa Maria da Graça, e o 15 de Dezembro de 1819, dia em que nasceu António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”, conhecido como o “Cantador de Setúbal”, cujas cantigas mereceram o apreço de muita gente da cultura da época), “Setúbal Liberal” (entre 24 de Agosto de 1820, em que Setúbal assiste à criação de uma Sociedade Patriótica, angariadora de apoios para o regime liberal, e Outubro de 1910, quando surgiu uma greve dos carroceiros locais) e “Setúbal Republicana” (entre o 5 de Outubro de 1910, data de revoltosos e de incêndio na Câmara, e 28 de Maio de 1926, sem reacções ao golpe militar mas com o anúncio de que os trabalhadores da Câmara tinham começado o ano com salários em atraso).
Cada uma das partes é antecedida de um texto introdutório, apresentando resenha sobre o que de mais importante aconteceu em Setúbal nessa época, quase funcionando essas indicações como a estrutura axial da identidade desses tempos.
No final, o leitor pode percorrer uma listagem de bibliografia adequada, bem como um índice analítico (que bem mereceria ter sido mais demorado e completo por constituir um roteiro e um complemento importante numa obra deste género) e cerca de meia centena de páginas de “Iconografia Setubalense”, com reproduções fotográficas de documentos já raros na maior parte dos casos.
Com esta obra, Albérico Afonso Costa retoma uma prática que já iniciara em 1988, ao publicar uma breve Cronologia Geral da História de Setúbal (Setúbal: Escola Superior de Educação), mas dela se distanciando na precisão, quantidade de informação e datas encontradas.
História e Cronologia de Setúbal, radicando numa prática que já teve antecessores como Almeida Carvalho, Manuel Maria Portela ou Peres Claro (nomes que trabalharam, recolhendo e divulgando as datas de Setúbal), passa a constituir, pois, um elemento indispensável para qualquer pesquisa relativa à história local sadina. Não será apenas um repositório de datas, alinhadas com a precisão do calendário, ou um baú de curiosidades; é muito mais do que isso – um documento que se dá a ler com agrado, com discurso acessível e preciso, frequentemente acompanhado de imagens e de textos que funcionam como documentos, uns na versão integral, outros apresentados em resumos. Conhecer a identidade setubalense terá de passar, inequivocamente, por este trabalho de Albérico Afonso Costa – ela está lá, seja no que foi a construção deste local, seja no que foram os obstáculos e adversidades a essa construção, as migrações (ponto de partida ou de chegadas), as acções políticas que a Setúbal vieram ter ou que em Setúbal começaram (ou passaram), as ondas de industrialização, as formas de socialização, o associativismo ou a intervenção cultural.
Setúbal tinha falta de uma obra assim!