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domingo, 11 de novembro de 2018

Valle-Inclán: As ruínas das coisas e das vidas que a guerra alimentou



“Era meu propósito condensar num livro os vários e diversos lances de um dia de guerra em França.” Assim começa Ramón del Valle-Inclán o seu livro A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra recentemente editado em versão portuguesa (Porto Editora / Assírio & Alvim, 2018). Era, pois, intenção do autor relatar a guerra, a partir de diversas latitudes e a um tempo, de forma a haver uma visão de conjunto. Coisa impossível, como se imagina - e como o próprio autor admitiu no mesmo texto prefacial, ao dizer que “todos os relatos estão limitados pela posição geométrica do narrador.”
Valle-Inclán (1866-1936), galego, pertencente a um país que manteve a sua neutralidade aquando da Primeira Grande Guerra, cedo assumiu uma posição a favor dos Aliados, ao subscrever, em 1915, o “Manifiesto de los Intelectuales Españoles”. No ano seguinte, em Abril, por indicação do seu amigo Jacques Chaumié, tradutor, visitaria França, andando, pelos finais de Maio e início de Junho, pela “Frente”, na zona das trincheiras. Passados uns meses, entre Outubro de 1916 e Fevereiro de 1917, o periódico madrileno El Imparcial publicaria as crónicas resultantes dessa viagem, que Valle-Inclán reuniria em livro ainda em 1917, apresentando visões de uma guerra que só viria a acabar em Novembro de 1918.
Ainda na nota introdutória, Valle-Inclán refere já indicações do que viria a ser o sofrimento por causa da guerra, antecipando um quadro que foi real e dramático: “Quando os soldados de França voltarem às suas aldeias, e os cegos caminharem pelas veredas com os seus cães, e os que não têm pernas pedirem esmola à porta das igrejas, e os mancos correrem de um lado para o outro com alegre ofício de recebedores do dízimo; quando no fundo dos lares se nomearem os mortos e se rezar por eles, cada boca terá um relato distinto, e serão centenas de milhares os relatos, expressão de outras tantas visões, que acabarão por resumir-se numa visão, cômputo de todas. Desaparecerá então o pobre olhar do soldado, para criar a visão colectiva.” De facto, todas as marcas que ficaram da guerra, físicas ou psicológicas, assemelharam-se a um estado de ruína humana, povoado pela dor, pelo sofrimento, pelo desgaste e pela descrença. Depois de um século cheio de guerras como foi a época oitocentista, o menos desejado era o ciclo da guerra - mas foi exactamente o que aconteceu.
Nas trincheiras visitadas por Valle-Inclán, fedia “a morto como na jaula das hienas”, não se calando “o estrondo do canhão rolante pelo seu céu”. O desprezo pelo humano era intenso - “os ratos correm vivazes pelos taludes, as ratazanas aguadeiras pelo fundo lamacento, e rajadas de vento trazem frias pestilências de cadáver”. O repórter vai passando e o que vê são marcas dessa ruína que dos edifícios passa para os humanos e para as relações pessoais - se, de um e de outro lado, “as casas mostram os seus esqueletos vermelhos e fumegantes”, noutro ponto, são “cadáveres de alguns soldados alemães” que “flutuam nas águas” apresentando um aspecto de horror, “inflados e tumefactos”, uns sem cabeça, outros com marcas de flagelo nos corpos.
Os cenários descritos são infernais - aldeias a arder, personagens trágicas, bombas que cavam a terra. E, enquanto a tempestade de ferro atroa os ares na sua função destruidora, “os mortos ficam para trás, esmagados sobre a terra, seminus, com as roupas desfeitas pelas explosões” e os feridos “arrastam-se pelas esgaivas, procuram onde esconder-se, e, encontrando um local seguro, levantam os seus clamores pedindo socorro”. Para onde o olhar se dirija, “a névoa está cheia de vozes perdidas, empenhadas de dor”.
Foi Aquilino Ribeiro que, em Alemanha Ensanguentada (1935), registou sobre os bombardeamentos da cidade de Arras que “nesta linha se escreveu uma epopeia de sangue e de bravura que escurece a Ilíada”. Nessa viagem aos campos de batalha que Aquilino fez em 1928, embora assistindo-se já à reconstrução ensaiada pelos franceses, vai havendo sempre margem para registar as “árvores decapitadas”, a paisagem que “trasborda de melancolia” ou o chão em que “os mortos escutam”. Dez anos eram passados sobre o final da Grande Guerra e as marcas da dor e do sofrimento permaneciam, mesmo que sob as luzes da reconstrução. A mesma cidade de Arras foi apresentada, depois de destruída, por Valle-Inclán como “o espectro de uma cidade bombardeada”.
Na sua missão de observador, o cronista vai também contando histórias ouvidas, dramáticas de dor, pungentes no sofrimento que transmitem, como a da rapariga francesa grávida que se volta para o médico e clama: “Doutor, eu não quero ter um filho dos bárbaros!... Não quero carregar com este! Se não me liberta desta cadeia, mato-me!”
Valle-Inclán participou também numa viagem aérea de observação e sentiu como os soldados a tensão do assalto às trincheiras, ora classificado com qualitativos como “magnífico” e “pujante”, ora anulado o heroísmo perante um “cego impulso de vida sobre o fundo de dor e de morte”.
As crónicas são curtas (pouco mais de uma centena de páginas para quarenta capítulos), não ultrapassando o absolutamente necessário quanto a narração ou a descrição, mexendo sobretudo com a forma de sentir. O parágrafo final apresenta uma ideia premonitória do que será o final da guerra, trazida pelo nascer do dia que permite ver o que aconteceu durante a noite: “Nos átrios das velhas cidades estalam as granadas, caem as pedras das catedrais, os pórticos corados de santos tremem nos seus cimentos, rompem-se as rosáceas, e as andorinhas voam assustadas pelas naves desertas. À luz do dia que começa, a terra mutilada pela guerra tem uma expressão dolorosa, reconcentrada e terrível.”
Os textos deste A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra encontram unidade no cenário catastrófico que se vai tornando visível, espécie de caos, num mundo povoado de destruição, construído de ruínas. As personagens que entram nas histórias são fugazes, ajudando a compor o sentido da dor, quase tendo necessidade de desaparecerem, não vá a ruína tomar conta delas...
Não sendo esta uma obra dominada pelo cunho autobiográfico de um combatente - que Valle-Inclán não foi -, é preenchida pelo traço autobiográfico do testemunho, questionando a guerra e todos os seus efeitos, confrontando o heroísmo humano com a morte, afinal o que mais hipóteses tem de acontecer numa situação de guerra. Rapidez, leveza e emoção, associadas a uma quase prosa poética, em que o ser humano se confronta com o inimaginável, são aspectos fortes deste livro, que ajuda o leitor a conhecer o cenário que os combatentes usaram, já que são eles, colectivamente, que agem em todas as histórias e que, pensando na vitória, semeiam a tempestade bélica.
Esta obra de Valle-Inclán é uma proposta de leitura para este tempo em que passa o centenário do armistício, uma proposta de leitura para que o mundo seja construtor de paz e não espaço de guerra.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Para a agenda - Leituras da Grande Guerra: o último fuzilado, as memórias, o impacto social e político



A Biblioteca Pública Municipal de Setúbal recebe no sábado, 27 de outubro, a apresentação da obra “João Almeida, o último Fuzilado, e outras leituras da Grande Guerra”, da autoria de Albérico Afonso Costa e João Reis Ribeiro.
A obra, apoiada pelo Instituto Politécnico de Setúbal, será apresentada por Viriato Soromenho-Marques, em sessão marcada para as 18h00.
Quase a completar-se o ciclo de memória do centenário da Grande Guerra, este livro é constituído por seis abordagens relacionadas com esse momento histórico: “A receção do antimilitarismo no movimento operário português”, “Os partidos políticos face à Guerra”, “Jaime Cortesão: um intelectual perante a Guerra”, “Aquilino Ribeiro – diário do início da Guerra”, “O impacto social e político da I Grande Guerra no movimento operário” e “O fuzilamento do soldado João Almeida – Da farsa de um julgamento à tragédia de uma execução”. As fontes principais para a organização desta obra foram a imprensa da época, os testemunhos memorialísticos sobre esse tempo histórico e documentação preservada em alguns arquivos.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Para a agenda: João Almeida, o último fuzilado, e outras histórias da Grande Guerra



Seis abordagens relacionadas com a Primeira Grande Guerra - “A recepção do antimilitarismo no movimento operário português”, “Os partidos políticos face à Guerra”, “Jaime Cortesão: Um intelectual perante a Guerra”, “Aquilino Ribeiro - Diário do início da Guerra”, “O impacto social e político da I Grande Guerra no movimento operário” e “O fuzilamento do soldado João Almeida - Da farsa de um julgamento à tragédia de uma execução” - constituem o conteúdo da obra João Almeida, o Último Fuzilado, e Outras Leituras da Grande Guerra, assinada por Albérico Afonso Costa e por João Reis Ribeiro e apoiada pelo Instituto Politécnico de Setúbal.
Está para breve, as provas já estão em revisão...

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Grande Guerra - Saudação aos combatentes palmelenses


Os deputados da coligação PSD/CDS da Assembleia Municipal de Palmela apresentaram voto de saudação aos combatentes palmelenses que participaram no Corpo Expedicionário Português (CEP), na Primeira Guerra Mundial, iniciativa que teve unanimidade.
O concelho de Palmela já anteriormente homenageou os seus combatentes e aqueles que tombaram na Grande Guerra, como, por exemplo: na exposição “Quadros da Guerra 2015” (entre Setembro e Dezembro de 2011); na exposição bibliográfica “Quando os Portugueses andaram na Grande Guerra”, na Biblioteca Municipal de Palmela, entre 14 de Janeiro e 11 de Fevereiro de 2012; na inauguração de memorial a propósito, em 1 de Novembro de 2012; na “newsletter” do Arquivo Municipal de Palmela de Setembro de 2013, em que foi dado destaque aos combatentes palmelenses mortos durante o conflito. Abaixo se reproduz notícia sobre a moção apresentada pela coligação PSD/CDS, saída em O Setubalensede hoje.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Para a agenda: Diogo Ferreira e a Setúbal do tempo da Grande Guerra



Diogo Ferreira, setubalense, tem dedicado parte importante da sua vida à investigação sobre a sua terra e ao contar a História. Setúbal e a Primeira Guerra Mundial é o título da sua tese de mestrado, obra que vai ser apresentada publicamente em 25 de Novembro, pelas 16h00, no auditório da Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal, com intervenção de Maria Fernanda Rollo, que foi também a orientadora da tese. Uma edição da Estuário, marca editorial do setubalense José Teófilo Duarte. Para a agenda!

sábado, 18 de novembro de 2017

Diogo Ferreira e Marquês de Sousa: Lembrar os combatentes setubalenses da Grande Guerra



Num tempo em que se assinala a memória do que foi a Grande Guerra de 1914-1918, aquela que depois se pensou ser a última de todas as guerras (!!!), é bom que essa evocação não passe apenas pelas datas dos feitos militares, mas que relembre sobretudo os homens e as mulheres que nela intervieram de forma directa ou indirecta. Tão importante como saber as causas e as consequências será conhecer quem foram os heróis que por lá passaram, durante anos remetidos para o anonimato, lembrados num culto (importante, mas esquecendo os nomes) ao “soldado desconhecido”, e muito pouco recordados como personagens reais de um não menos real sofrimento, adviesse ele das condições da guerra, das instabilidades causadas nas relações familiares, da dor sentida, fosse ela física ou psicológica.
Setúbal, felizmente, entrou desde cedo no percurso da memória, ao ter, logo em 1924 (ano da criação da Liga dos Combatentes da Grande Guerra), a sua sub-agência desta organização, aqui presidida pelo médico e professor Cipriano Mendes Dórdio, ao conseguir, sete anos depois, em 1931, erigir o monumento de memória aos combatentes e ao ter implantado na toponímia referências a esse acontecimento avassalador, pela surpresa e pelo desgaste, que foi a Grande Guerra.
Diogo Ferreira e Pedro Marquês de Sousa meteram mãos à obra para nos dizer quem foram os combatentes do concelho de Setúbal, por onde andaram, o que sofreram, ao publicarem a obra Os Combatentes do Concelho de Setúbal na Grande Guerra em França (1917-1918), editado em Julho pelo Núcleo de Setúbal da Liga dos Combatentes. Trata-se de uma obra indispensável para a cidadania e para a memória setubalenses, apresentada em quatro importantes grupos: a contextualização do que foi a Grande Guerra e a forma como Portugal nela se integrou; os registos biográficos dos cerca de 210 combatentes de Setúbal e de Azeitão que partiram rumo à Flandres (alguns tendo combatido também em África na primeira fase do conflito); o cenário da hierarquia e organização militar em que os setubalenses intervieram, com indicação das missões que lhes estavam cometidas; a história e o papel da Liga dos Combatentes da Grande Guerra em Setúbal nos seus sete anos iniciais (até à inauguração do monumento aos Combatentes).
Passa o leitor por cerca de duas centenas de páginas em que se desenrola o filme da guerra, com os seus actos em grupo, e em que se convive com cada um dos combatentes naquilo que pode ser dado pelas fichas militares e do arquivo da própria Liga, sendo possível encontrar: irmãos em combate (os Conte-Turpia e os Lápido Lourenço, por exemplo); “um dos setubalenses que mais tempo serviu na Grande Guerra” (Barbosa Cardoso); um combatente que se apaixonou por uma francesa (Morais Teixeira); “um dos setubalenses com maior número de louvores por ocasião da Grande Guerra” (Barros Carmona); outro que integrou a histórica e lendária Brigada do Minho (Centeno Júnior); os vários que combateram La Lys em 9 de Abril de 1918; os vários que foram feitos prisioneiros na sequência de La Lys (indo, sobretudo, para os campos de Friedrichsfeld, Munster II e Dulmen); os muitos que foram punidos (por se apoderarem ilegitimamente de bens alheios, por jogarem a dinheiro, por não cumprimento do regulamento militar, por desrespeito à hierarquia, por falsificação de documentos, etc.); os condecorados pelo estatuto de herói (como foi o caso de Manuel Bernardino de Almeida, por “socorrer a população, tirando dos escombros os mortos e os feridos”); um combatente poeta e fadista, que também divertia os camaradas, como foi o caso de Vicente José da Silva Penim.
Para lá de toda esta diversidade, é o contacto também com a morte, com aqueles que não puderam trazer a memória mas na memória ficaram - o actual concelho de Setúbal perdeu 9 homens durante esse conflito e, se associarmos os 6 do actual concelho de Palmela (que, na altura, integrava o concelho de Setúbal), o número passa para 15, assim ocupando o segundo lugar no número de mortos e desaparecidos dos concelhos que compõem o distrito de Setúbal, depois de Santiago do Cacém, que teve 12 mortos e 5 desaparecidos.
Esta obra de Diogo Ferreira e de Pedro Marquês de Sousa é de leitura obrigatória para um encontro com a história e para vermos os heróis que a História sacrificou, muitos deles ligados a famílias que ainda hoje existem. A memória da Grande Guerra foi durante muito tempo esquecida em Portugal por variadas razões, mas, a partir deste centenário, temos a obrigação moral e cívica de não deixar que esse esquecimento impere, sendo esta obra um bom contributo para isso. Recordo que, há duas décadas, em Novembro de 1998, em França, o jornal “Le Monde” procedeu a um inquérito sobre os acontecimentos mais marcantes do século XX e a Guerra de 1914-1918 aparecia em quarto lugar, depois da 2ª Guerra Mundial, do Maio de 1968 e da queda do regime soviético; no mesmo inquérito, os jovens entre os 15 e os 19 anos punham a Primeira Grande Guerra em segundo lugar. É verdade que não haverá família francesa que não tenha tido familiar a participar nessa guerra, mas isso só não pode justificar essa intensidade de memória...
De Portugal foram mobilizados mais de 105 mil homens para o teatro de operações na Europa e em África; mais de 55 mil integraram a linha de combate na Flandres; tivemos quase 8 mil mortos, outros tantos feridos, outros tantos prisioneiros e cerca de 6 mil desaparecidos. Não serão estes números importantes para a nossa memória colectiva? É também por isso que o livro de Diogo Ferreira e de Pedro Marquês de Sousa, ao assinalar a epopeia de todas estas pessoas e das que lhes estiveram ligadas, em linguagem acessível e sem deixar que a questão das estratégias e da história militar viva sem os homens que lhe deram corpo, merece leitura atenta e lugar importante na história local setubalense.

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Para a agenda: "Tudo se desmorona - Impactos culturais da Grande Guerra em Portugal"


Elemento central do tríptico "Tropa de África", de José Joaquim Ramos

“Tudo se desmorona - Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal” é o título de uma exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian desde 30 de Junho, com curadoria de Pedro Aires de Oliveira, Carlos Silveira e Ana Vasconcelos, que pode ainda ser visitada até 4 de Setembro, segunda-feira.
A exposição, inaugurada no segundo dia do colóquio internacional “Ninguém Sabe que Coisa Quer - A Grande Guerra e a Crise dos Cânones Culturais Portugueses” que teve lugar na Fundação entre 28 e 30 de Junho, pode ser acompanhada pelo jornal-catálogo intitulado O Mundo Derrubado, que integra os textos-roteiro da exposição (pena que não inclua a cronologia que vai sendo mostrada ao longo da exposição) e os estudos “Semear ventos, colher tempestades: a República e a Grande Guerra” (de Pedro Aires de Oliveira), “A Guerra nas letras” (de Luís Augusto Costa Dias) e “Memória da I Guerra Mundial: um projecto republicano” (de Sílvia Correia).
Muito mais do que pretender mostrar o que foi a Guerra, esta exposição debruça-se sobre as repercussões dessa mesma Guerra na vida portuguesa em diversos sectores: na arte, nas relações e nas tensões sociais, na política, na imagem dos militares, nos hábitos de consumo. E possibilita ver algumas peças raras e outras que nunca terão sido expostas ao público (como o tríptico “Tropa de África”, de José Joaquim Ramos).
O visitante pode cruzar-se com fotografias da época, com primeiras edições de obras de relatos da Guerra, com páginas jornalísticas do tempo, com alguns objectos, sons, músicas e filmes que retratam o momento. Pode ainda encontrar-se com a memória e não é em vão que a última secção aborda a memória construída sobre esse período, seja assinalando o papel da Liga dos Combatentes e as campanhas de apoio aos regressados da Guerra, seja com os desenhos e maquetas de monumentos que ficaram para a perpetuação da memória da participação portuguesa.
A não perder!

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Raul Reis - Fotografia, cartas e a memória de um universo



“Envia-me cartas” é a exposição de fotografia de Raul Reis que está em mostra na Casa da Cultura, em Setúbal, até 5 de Setembro. Poucos dias até ao final, pois. E, se o leitor ainda por lá não passou, aproveite os dias que restam. Vai confrontar-se com umas dezenas de fotografias de caixas de entrada de correio, centradas naquela pala bem conhecida que servia como gps dos carteiros, indicando “cartas”.
Sabemos que as caixas de correio de hoje são sobretudo virtuais e que aquelas que têm existência física nas portas das casas ou dos prédios jazem silenciosas e abandonadas por muito tempo (condizendo com o abandono de muitas edificações) ou servem para receber apenas as notas fiscais e as facturas de serviços... Já não são alimentadas de emoções e de histórias, já não adquirem marcas de aproximação entre humanos. Como escreve o setubalense Raul Reis na nota introdutória ao livro que acompanha a exposição (objecto belo e recomendado), essas caixas de correio com a palavra “cartas” empurram-nos “para as reminiscências de um tempo passado - aquele em que os sentimentos eram deixados no papel”. Quase como se de narrativas se tratasse...
Mas Raul Reis alargou o âmbito da sua exposição ao público, tendo criado sítio adequado na net, em que cada visitante podia escolher a fotografia de uma das caixas de correio e escrever-lhe uma carta. E assim surgem disponíveis para o público visitante 32 cartas com destinatários múltiplos - amigos, familiares (avó, pai, filhos), amores, locais, etc. E, no final da exposição, o visitante pode escolher entre 32 postais que numa face exibem a respectiva porta e caixa de correio e na outra a carta que lhe foi dirigida. Pode escolher e pode trazer. Uma, duas, três ou todas as portas e todas as cartas, que ali estão para oferta.
E, nos escritos que ali surgem reproduzidos, há para todos os gostos e tipologias, como se imagina. Desde o mais elaborado ao mais simples, do mais loquaz ao mais reservado, do mais metafórico ao mais imaginativo, do mais pessoal ao mais colado a um momento histórico. Refiro alguns exemplos, entre vários que poderia escolher: escreveu Filipe Lourenço que “as cartas são pessoas com selos na ponta da língua”, bela imagem que carrega todo um historial ligado ao gesto de escrever e enviar uma carta; Marco Dias aproveitou o momento histórico e enviou missiva a Donald Trump, em tom sarcástico e de medição de forças em nome da humanidade, contendo uma praga rogada; Susana Albuquerque escolheu Lisboa como destinatária, escrevendo desde Madrid e concluindo a sua mensagem com uma declaração de amor - “querida Lisboa, se eu pudesse, vivia em todas as boas cidades do mundo só para descobrir tudo o de que eu gosto mais em ti”; Tiago Gonçalves optou por uma carta aos filhos, que fecha a declarar-lhes que “devia poder mandar fazer uma gaiola para guardar os vossos sonhos”.
Há, contudo, uma carta que se me apresentou como preferida. Com autoria de NQ, estabelece uma relação entre Lino Nossa, 2º Sargento do CEP (Corpo Expedicionário Português) na Flandres em 9 de Abril de 1918, e Celeste, que ficara em Portugal, a quem o combatente promete casamento se regressar ao seu país. É uma carta apócrifa que bem poderia ser verdadeira e que dá a noção do sofrimento e da dor nas trincheiras na Grande Guerra - mesmo neste contexto o valor da metáfora é extraordinário ao referir que a guerra é “um purgatório em vida”.
Ao leitor caberá descobrir outras mensagens, outros segredos, outras sublimes frases em cartas que não entrarão em caixas de correio mas que estão ao dispor nesta exposição, que é quádrupla: a dimensão das fotografias de Raul Reis, a dimensão das cartas de 31 autores (há dois textos de uma autora), a associação das cartas às fotografias nos postais, o mundo das caixas de correio em livro (Envia-me Cartas / Send Me Letters. No Frame Publishing, 2017). Vale a pena!
Refira-se ainda que “Envia-me cartas” é a primeira fase de um projecto em trilogia designado “A Cidade está Deserta”. E como, em nota final, Raul Reis revela, “Envia-me Cartas” é a parte em que “se explora a nostalgia dos objectos que perderam o seu significado original”. Uma reflexão sobre a cidade, sobre a vida, sobre a actualidade. A ver!

Carta de autoria de NQ, emprestando o momento a um combatente do CEP em 1918

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Foi em 28 de Julho de 1914 que a Grande Guerra começou a sério...




Foi em 28 de Julho de 1914 que a Grande Guerra começou, de facto. Um mês antes, em Sarajevo, o tiro de Gavrilo Princip atingira o arquiduque Francisco Fernando. A guerra ia acabar antes do Natal, diziam os estrategos e os homens do poder. Acabou, na verdade, antes do Natal, mas do ano de 1918. Pelo caminho e pelo tempo, ficou a epopeia do sofrimento, da dor, da morte. E o mundo não ficou melhor, apesar de, no final, todos desejarem a paz. Que teima em não chegar!...

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Para a agenda: Os 210 Combatentes de Setúbal na Grande Guerra vão ter a sua história



Diogo Ferreira e Pedro Marquês de Sousa, um setubalense e um azeitonense, são os autores de Os Combatentes do Concelho de Setúbal na Grande Guerra em França (1917-1918), que, em edição do Núcleo de Setúbal da Liga dos Combatentes, vai ser publicamente apresentado em 25 de Julho, pelas 11h00, no antigo Quartel do 11, em Setúbal, justamente o dia em que se assinalarão os 100 anos sobre a partida dos mobilizados do Regimento de Infantaria 11 para a Flandres.
É o percurso em torno de 210 vidas que se arriscaram nessa (também) aventura que foi a Grande Guerra. É o reconhecimento e a homenagem ao sofrimento.
Para a agenda!

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Filatelia evoca participação portuguesa na Grande Guerra



A participação portuguesa na Grande Guerra (1914-1918) é tema de uma emissão filatélica promovida pelos CTT com data de hoje.
Esta evocação é constituída por três selos, cada um deles homenageando um dos ramos das forças armadas que, em nome de Portugal, intervieram nas operações: um, de 0,50 €, evocando a força aérea, em que se destacam a figura do tenente Lello Portela (que participou no maior número de missões de combate e teve maior tempo de permanência no "front") e a imagem do aeroplano SPAD VII; um, de 0,63 €, lembrando a participação da marinha, mostrando o comandante Afonso de Cerqueira (que chefiou o Batalhão Expedicionário da Marinha do Sul de Angola) e o NRP Adamastor; um, de 0,85 €, destacando o exército, pondo em relevo a figura do soldado Aníbal Milhais (conhecido por "Milhões", herói do 9 de Abril) e um momento da instrução do CEP.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Letras ComVida - Entre outras coisas, a Grande Guerra na literatura



O mais recente número da revista Letras ComVida - Revista de Literatura, Cultura e Arte (Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras - CLEPUL, nº 8, 2016-2017), dirigida por Annabela Rita e Miguel Real, nas suas 330 páginas, dedica cerca de um terço à Primeira Grande Guerra sob o título “A Primeira Guerra Mundial - Grande Guerra - Impactos e Modelações Culturais”.
Nesse dossiê, pode o leitor aprofundar assuntos como: “Impactos e Modelações Culturais”, por Ernesto Castro Leal; “José de Macedo - O Conflito Internacional e a Renascença Portuguesa”, por Teresa Nunes; “Memorialismo de Guerra - Os Exemplos de Carlos Selvagem e João Pina de Morais”, por Miguel Real; “História de uma Guerra Esquecida - A Tropa d’África”, por Bruno J. Navarro; “Ilusões e Desilusões de um Repórter Português na Guerra”, sobre Adelino Mendes, por Manuel M. Cardoso Leal; “Pincéis, Lápis e Baionetas - A Ilustração como Instrumento de Propaganda durante a Primeira Guerra Mundial”, por Vera Mariz; “Entre a Memória e a Recriação Literária - O Testemunho de Alexandre Malheiro”, por Rui Sousa; “Os Modernistas e a (Des)Construção do Ineludível”, por Dionísio Vila Maior, e “Nacionalismo, Darwinismo, Guerra e Paz”, por Joaquim Miguel de Morgado Patrício.
Obviamente, a revista tem muito mais (e com interesse): trabalho sobre José Blanco, de Onésimo Teotónio de Almeida; leitura de Não é Meia Noite Quem Quer, de Lobo Antunes, por Norberto do Vale Cardoso; estudos sobre Aquilino Ribeiro (de Carlos Nogueira), Eça de Queirós (de Elisabete Correia Campos Francisco); entrevista com Mário Cláudio (por Annabela Rita, Miguel Real e Carla Sofia Luís); dossiê sobre João Rui de Sousa; textos sobre Gago Coutinho e Manuel Sérgio.
Um número com muito interesse (como, aliás, se deve dizer relativamente a todos os anteriores). Para consultar, para ler!

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Os "tanques" na Primeira Grande Guerra apresentados pela propaganda num texto com um século



Os carros de assalto (“tanques”) entraram na I Grande Guerra, na batalha do Somme, em 15 de Setembro de 1916, e funcionaram como resposta ao bloqueio estratégico da frente ocidental. A ideia veio de Inglaterra, quando Churchill se deixou convencer da eficácia de tal arma por Swinton, tendo o primeiro modelo ficado conhecido por “Mark I”. Até 1918, fabricar-se-iam mais quatro modelos que mais não eram do que versões modificadas do primeiro. O seu formato de losango, visando vencer os obstáculos, foi associado à designação de “couraçados terrestres”. Se a sua eficácia ficou aquém do esperado no início, o recurso a este equipamento foi apurado e, no final de 1917, era já considerado um êxito, para o qual trabalharam ingleses e franceses. Quanto aos alemães, só tardiamente se renderam à utilização dos “tanques”, tendo construído o modelo “A7V Panzerkampferwagen”, o mais pesado dos tanques da Grande Guerra (32 toneladas), mas o mais rápido (13 km/h), o mais dotado de equipamento de ataque e o mais volumoso (com uma tripulação de 16 homens). A importância do “tanque” vislumbrava-se de tal maneira que Stéphane Audoin-Rouzeau considerou que este equipamento, juntamente com o avião, “anunciaram uma mutação decisiva nos meios de combate do século XX”.
Confrontados com esta nova arma, os exércitos e os povos foram marcados pela novidade e pelo seu poder. Em 1917, o Bureau da Imprensa Britânica em Lisboa editava, na colecção “Série de Notas sobre a Guerra”, um opúsculo (o nº 83) intitulado Os Tanks, assente num discurso hiperbolizado sobre a máquina e numa caricatura depreciativa dos alemães - “O alemão nunca o poderia ter ideado porque lhe falta em absoluto a bossa humorística. A ideia do tank só podia nascer no cérebro dum homem que vê em tudo um lado extravagante e que depois o construiu na firme convicção que havia de servir um dia para inspirar terror ao soldado alemão”. E, mais adiante: “A aparência do tank é tudo quanto há de mais absurdo. É um objecto monstruoso, desastrado, impossível. Ao fazer a sua entrada no front Ocidental, o exército britânico extorceu-se de riso; e, quando pela primeira vez o exército alemão o enxergou, os soldados pediram misericórdia e fugiram espavoridos.”
A origem do nome por que ficou conhecido este equipamento - “tanque” - é explicada: “para guardar o segredo da sua verdadeira natureza, fora dito aos operários que o construíram que deviam servir para transportar água para o exército na Mesopotâmia. Quando chegaram a França traziam já esse apelido, o qual na verdade era uma descrição bastante vaga para iludir o serviço secreto alemão”. Quando a máquina surgiu no terreno, os repórteres recorreram ao universo da metáfora na tentativa de descreverem o objecto e o seu poder (chamaram-lhe “tartarugas de aço”, “monstros pré-históricos”, “sapos gigantescos”, “dinossauros”, “mamutes baleias”, “mastodontes motores”, “baleias de guerra”, entre outros epítetos não menos imaginativos). O próprio Bureau, neste prospecto, não lhes ficou atrás ao descrever o equipamento: “Um tank é uma espécie de casa forte de Banco com armadura, que se move por si e que tem no interior soldados e peças de fogo rápido. É invulnerável a não ser aos projécteis de grande calibre. Visto de lado tem o feitio de um losango. Imóvel e silencioso é um monstro absurdo e fútil. Porém, avançando irresistível, vomitando fogo e fumo, rugindo as máquinas, troando as peças, é um pesadelo.”
Para atestar a força de tal equipamento, é referido o seu papel nas batalhas do Somme e em Cambrai, muito embora seja dito que foi nesta última que o “tanque” revelou a sua eficácia, com o seu poder destruidor e avassalador, sendo omitido que, na batalha do Somme, a utilização dos “tanques” foi uma decepção, apesar de serem relatadas duas histórias passadas com os “tanques” nessa batalha. E, quase a terminar, são também apresentadas as contrariedades que atrapalhavam a máquina - “O que mais aborrecem é a água e a lama. Em Flandres, foi a natureza que os deteve e não os alemães. Apanhados num charco, não se podem mexer: por mais que se esforcem, por mais que bufem de raiva, atolam-se infalivelmente.” E lá se conjugam o poder da metáfora e da personificação para justificar o efeito hiperbólico...
O opúsculo não se conclui sem que haja uma referência à superioridade dos Aliados, um pouco a comprovar a diferença com que o texto abriu: “Já se passou mais de um ano e ainda não apareceu nenhum tank alemão. Se um dia aparecerem, uma batalha de tanks fornecerá o acontecimento mais extravagante desta grande guerra”. É sabido que, quanto à primeira parte, o Bureau não podia fazer futurologia - se era certo que os alemães ainda não tinham incorporado o “tanque” nos seus ataques, não menos certo era que a resistência aos “tanques” sucedia por encorajamento e elevação moral, pelo menos até que o “tanque” aparecesse do lado alemão mais tarde. No entanto, quanto à segunda parte, a do “acontecimento mais extravagante”, o Bureau acabava por acertar - a evolução dos blindados tem determinado as guerras e os conflitos territoriais.

Com este opúsculo, o Bureau da Imprensa Britânica em Lisboa cumpria o seu papel no contributo para a propaganda da guerra em favor dos Aliados, com uma ajuda extraordinária do poder da imagem através da metáfora e com o recurso à sobrevalorização dos Aliados e à depreciação das tropas alemãs.

"Tanque" desenhado em vinheta na obra de Rogério Marques de Almeida Russo
Arquivo Poético da Grande Guerra (Porto: Companhia Portuguesa Editora, 192-)