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quarta-feira, 14 de julho de 2021

Descobrir espaços religiosos em Setúbal



Pertence a Maria das Dores Meira, presidente da Câmara de Setúbal, a primeira justificação: “Contar a história das igrejas, capelas e ermidas do concelho de Setúbal é, acima de tudo, relatar a vida dos homens e mulheres que edificaram, ao longo de muitos séculos, a grande comunidade que somos hoje.” O mesmo respeito pelo valor humano surge nas palavras de D. José Ornelas Carvalho, bispo de Setúbal: “Conhecer, visitar e usufruir do nosso património histórico é um ato de gratidão para com aqueles que nos precederam, de afirmação da nossa identidade histórica, cultural e religiosa e uma forma de afirmar a vontade de futuro, não para copiar, mas para dar cunho próprio ao novo que criamos.” Os dois desafios abrem o livro Património religioso de Setúbal, publicado recentemente pela Câmara Municipal de Setúbal, com recolha informativa de Horácio Pena e fotografia de José Luís Costa.

Ao longo de uma centena de páginas, em que não falta uma bibliografia do essencial, tornamo-nos visitantes de 33 espaços (22 em Setúbal, 11 em Azeitão), circulando por igrejas (8), capelas (11), conventos (8), ermidas (5) e um recolhimento, pontos de descoberta de património e de histórias. Que o propósito desta publicação está virado para o visitante torna-se evidente pela informação assente apenas sobre o primordial das construções, apresentada em português, francês e inglês, constituindo convite para a procura (facilitada por inclusão de moradas e de mapas de localização) e para a descoberta pessoal, com o apoio da fotografia que nos apresenta os exteriores dos edifícios, a profundidade de alguns interiores e, por vezes, o contorno de pormenores.

Os espaços assinalados permitem encontrar momentos da história cruzada da região e do país (Convento de Jesus), do envolvimento social (o papel dos pescadores e das confrarias), da presença de ordens religiosas diversas (franciscanos, jesuítas, carmelitas, dominicanos, agostinhos), estéticas de época (manuelino, na igreja de S. Julião ou nos Conventos de Jesus e de S. João, ou barroco, na capela da Fortaleza de S. Filipe), referências de decoração (azulejo, talha, imagens) e lendas (igreja de Nossa Senhora da Anunciada ou ermida da Memória). De fora não fica a protecção invocada quanto à defesa dos inimigos (capela de Nossa Senhora da Conceição) ou das profissões (capela da Casa do Corpo Santo, ligada aos pescadores), como não ficam as vicissitudes e alterações funcionais por que passaram algumas construções - o Convento de Nossa Senhora da Boa Hora, que foi liceu, tribunal e espaço da polícia; o Convento de São Domingos, que albergou hospital militar e quartel e teve a quinta transformada em cemitério público; o Convento de S. João, cujo claustro serviu para praça de touros; o Convento de Nossa Senhora dos Anjos, que foi quartel militar. As histórias destas construções permitem também o encontro com personagens da história como D. João II e Boitaca (Convento de Jesus), Frei António das Chagas (Convento de Nossa Senhora dos Anjos), Frei António da Visitação (Convento de Nossa Senhora do Carmo) ou o jesuíta Gabriel Malagrida (Recolhimento de Nossa Senhora da Saúde). Há ainda aspectos curiosos como as colunas “torsade” ou o ensaio da igreja-salão (Convento de Jesus), a talha nunca dourada (ermida de S. Marcos), a devoção passada para o Brasil (Senhor do Bonfim) ou a ermida construída para proteger um cruzeiro gótico (Nossa Senhora das Necessidades).

Estamos perante um livro acessível, que surpreende pela quantidade de construções que nos apresenta, e prático, que contém o essencial para que nos tornemos visitantes do nosso património, visando conhecê-lo e valorizá-lo pelo que de importante nos traz até ao presente.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 663, 2021-07-14, p. 9.


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Para a agenda - Visão do Infinito - Arte Sacra em Setúbal



A arte sacra na diocese de Setúbal em "Visão do Infinito", exposição repartida por dois pólos - a Capela de Santo António e a Casa do Corpo Santo. Para a agenda. A partir de 15 de Setembro.

sábado, 13 de agosto de 2011

D Manuel Martins e a crise social em entrevista

D. Manuel Martins, bispo emérito de Setúbal, nos seus 84 anos, tem entrevista publicada no Expresso de hoje, assinada por Joana Pereira Bastos e Valdemar Cruz. A crise social foi o pretexto para este encontro. E D. Manuel Martins manteve-se fiel ao seu pensamento e à sua prática de anos, quando era prelado na cidade sadina. Ficam alguns excertos.

Situação – “Agora estou convencido – oxalá não seja assim – de que estamos numa situação má, amanhã vamos estar numa situação pior e depois de amanhã vamos estar numa situação péssima.”
Governos de Sócrates – “Na minha opinião governaram mal, com falta de respeito por nós. Governaram pior Portugal do que se fosse uma quinta pessoal, porque se fosse uma quinta pessoal com certeza que a estimavam, que a tratavam bem, que a fariam render.”
Governo de Cavaco Silva – “Criou-se uma inconsciência social de irresponsabilidade. Era toda uma política económica irresponsável, que fomentava a distribuição de cartões de crédito.”
Costumes – “Isso dos brandos costumes são histórias. Temos boa gente, mas quando for preciso também deixamos de ser boa gente. Tenho muito medo disso.”
Esperança – “Quando foi a queda do Muro de Berlim acreditei que tinham finalmente acabado as guerras. Depois veio a dos Balcãs e já fiquei um bocadinho desiludido. Depois veio a União Europeia e eu acreditei que seria uma associação de iguais, em que os pequenos podiam valer tanto como os grandes, mas não é nada disso. Os países pobres, mesmo todos juntos, não são capazes de derrotar a vontade de um dos ricos – da Alemanha ou da França. É uma Europa esfrangalhada, desorientada, que é a dois e não a 27. Ao fim e ao cabo, fomos associar-nos para engordar mais aqueles cavalheiros e nos minimizarmos a nós. Queimaram-se os campos, as vinhas, destruíram-se as produções, acabou-se com as pescas. (…) Era apenas para se venderem os produtos deles.”
Campo – “Se ao menos fôssemos capazes de voltar ao campo, já não tínhamos fome. As crises às vezes são oportunidades… Se esta nos levasse novamente ao campo, não para ficar lá, mas para aproveitar as riquezas que nos dá, libertava-nos de muita importação.”
Assistência – “A Igreja faz festas muito bonitas e esquece-se de vir para o meio daqueles que sofrem. Tem acordado muito, mas as atitudes que tem tomado são mais no sentido da assistenciazinha, da caridadezinha. Tem de ir mais longe. Ela mesma tem que dar sinais.”
Sinais – “Devíamos ser capazes de vender esse ouro todo que anda ao pescoço dos santos nas procissões. Os cordões e os anéis que o povo quer ver pendurados nos santos, para que prestam? Podem prestar para um salteador, mas não para um santo. Porque não vendemos isso tudo, deixando só as coisas de valor histórico e artístico? A Igreja é um grande sinal do amor de Deus no mundo e deve reflectir o rosto materno de Deus.”

terça-feira, 11 de maio de 2010

Bento XVI visto por Eduardo Lourenço

Na edição online do Público, está hoje publicado um texto de Eduardo Lourenço a propósito da vinda de Bento XVI a Portugal. Análise fina, sem enleios ou falsos enredos, recheada de identidade e de reflexão, a não perder. Aqui a reproduzo.

Um Papa alemão na tormenta

"... compreendamos, acima de tudo, que o Evangelho fala sempre da Igreja como de uma Igreja de pecadores, o que é justamente o seu rasgo específico" - cardeal Ratzinger in Deus Existe?

Que apenas meio século após o holocausto a Santa Igreja católica, apostólica e, sobretudo, romana, tenha eleito um papa de nacionalidade alemã, ainda espantou um mundo onde ninguém se espanta com coisa nenhuma. Muitos se escandalizaram, então, menos por considerações duvidosas, quase racistas, do que pelo perfil e reputação teológico-pastoral do novo eleito, o cardeal Ratzinger, com vinte anos de chefia à frente do dicastério, guardião da ortodoxia, da Propaganda Fide.

Quando se pensa que desde os tempos de Carlos V, até João Paulo II, só um Papa não fora italiano (Adriano VI), esta nova eleição de um "estrangeiro" era, já em si, uma surpresa e quase um milagre. A opinião católica e a do mundo tinham de lhe reservar um acolhimento e uma atenção à altura de uma tal surpresa.

Em breve o lado teutónico foi esquecido. Suave, delicado, grande intelectual, o novo Papa que sabia não poder contar com o efeito mediático de João Paulo II, nem fazer esquecer "o bom" Papa João XXIII, mau grado algumas intervenções no tabuleiro político, ou assim tido na óptica profana, que suscitaram reacções ofuscadas, conseguiu fazer esquecer que era alemão e tivera o magistério da disciplina e vigilância da Igreja. Duas encíclicas encontraram um eco atento nos meios intelectuais católicos e, para além deles, em gente que não esperaria dele textos teológico-proféticos, como os de alguns dos seus famosos predecessores. Tranquilamente, esse grande teólogo e filósofo, a par do movimento de ideias da sua pátria, relembrou na ordem da exegese, e em termos originais relativamente à tradição, a leitura da mensagem cristã como Amor, renovando-a na sua semântica, ao ter em conta os laços estruturais entre Eros e Agape. Sem audácias provocantes, um pouco na senda e como eco a um célebre ensaio de Anders Nygren, com esse título. O mesmo fará na revisitação e explicitação da doutrina social da Igreja, o que surpreendeu - dentro e fora dos meios católicos - gente que há muito o tinha catalogado - nessa matéria em particular, mas também nos domínios da ética e dos costumes - como um dos Papas mais conservadores, uma espécie de Pio IX redivivo. O que é totalmente inexacto.

E de súbito, como em simetria com a crise do Ocidente na ordem profana (economia, política e ética), sofrida pelo comum dos mortais como uma ameaça e um desafio ainda em curso ao tipo de civilização que é a nossa, abate-se sobre a Igreja uma espécie de vendaval ético-histórico, ampliado pelo mediatismo planetário, senão de todo inédito (antes pelo contrário), o mais apto para atingir a Igreja instituição e a feri-la, não no coração da sua mensagem, mas na imagem que a define e caracteriza a sua missão "exemplar".

Em nada, a título pessoal, Bento XVI tem a ver com esse escândalo, por ele mesmo descrito e sofrido como tal, mas foi sobre ele, sucessor de Pedro, que caiu o reflexo profano, mundano, desse fait-divers que não se parece com nenhum outro. É uma injustiça objectiva e ninguém o saberá melhor do que ele. A Igreja não é nenhuma barca angélica. Está no mundo e pertence ao mundo. Não existe para impedir o mundo de passar mas para santificar o mundo que passa. De resto, já tem no seu fundador o mais incontornável dos juízes.

O drama - humano, social, ético e simbólico -, com que a Igreja se viu e vê confrontada e a que o actual Papa teve de fazer frente com determinação e humildade possível, pertence justamente àquele domínio do "oculto", para não dizer do recalcado, que conferiram precisamente à mesma Igreja onde ela foi - e é ainda - a instância não apenas religiosa e ética condicionante e sancionante dos desvios ostensivos dessa ordem, um papel capital. Em termos simples, e antes da era Freud - curiosamente também em vias de contestação clamorosa - esses entorses à prática ética, subdeterminada pelo continente submerso ou visível daquilo que é tido como "pecado" numa perspectiva que, sendo religiosa, é mais do que isso, fez da Igreja durante séculos "o confessionário" colectivo diante de quem se exorcizavam os "pecados" do mundo, os dessa ordem e sobretudo e, ao mesmo tempo, a instância do perdão e da remissão.

Claro que hoje e, em particular, neste Ocidente descristianizado as coisas não se passam assim. Como a Igreja, os confessionários conhecem os efeitos dessa desertificação religiosa. A massa indiferente dos cidadãos até pode receber com alívio ou júbilo este percalço espectacular da velha Igreja, instituição impecável que perdoa os pecados do mundo, revestindo à força, e dolorosamente, o estatuto de "pecaminosa", ela que é, histórica e simbolicamente, a expressão sublimada da consciência da humanidade como pecadora e ao mesmo tempo instrumento da sua redenção.

Numa óptica assumidamente profana, tudo se passava (ou passa) como se a Igreja julgasse o mundo e o mundo não a pudesse julgar. Ainda - pelo menos para quem nasceu e foi educado no seio da Igreja e com referência aos seus valores míticos - ou mitificados - não se é facilmente indiferente e menos ainda cinicamente espectador de um drama tão doloroso como o que engloba ao mesmo tempo as vítimas dele e os que dela abusaram sendo os guardiões não apenas de uma fé, como da sua mera dignidade humana. Claro que esse "drama" é universal, porventura o terá sido sempre. Mas desse "drama", sem sujeito próprio, o que importa no contexto cultural do Ocidente em especial - e não só - é que uma instituição tão singular - e para muitos de nós referência única na luta pelo combate pela definição do destino espiritual e cultural da humanidade - como a Igreja esteja vivendo esse vexame e essa agonia com uma provação misteriosa. E quem sabe como uma revisitação e rasura futurante de clamorosas quedas históricas da sua vocação redentora que continuam como um espectro a ensombrar a mensagem de luz onde o Evengelho nasceu. Em visita a este velho país cristão, Bento XVI, no centro de um drama que tem exorcizado, não sem coragem, não terá aqui, como o poderia ter em outros espaços, nem comentários sarcásticos, nem exaltações perversas de quem contempla a barca de Pedro outrora em excesso triunfalista, num mau passo. Apenas votos para que essa barca passe para a outra margem de si mesma, como o Mestre a convidou.

Lisboa, 9 de Maio de 2010 - Eduardo Lourenço

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A visita de Bento XVI vista por Marcelo Rebelo de Sousa

Não valerão a pena mais comentários sobre a visita papal que, dentro de dias, vai ocorrer no nosso país. O que mais tem impressionado têm sido os fundamentalismos, que se têm colado a toda a situação por que a Igreja tem estado a passar. A questão da tolerância de ponto veio enaltecer mais as críticas, quando todos sabemos que qualquer que fosse a composição política do governo a decisão iria no mesmo sentido... Entretanto, vai havendo umas histórias, como a da Ministra da Educação dizer que o encerramento das escolas no dia 13 dependerá de decisão das direcções das Escolas... Nenhuma novidade, porque, teoricamente, o mesmo é válido para todos os outros serviços do Estado; só que era escusado transferir as despesas dessa decisão para as direcções das Escolas quando todos sabemos o que, na prática, significa uma tolerância de ponto, independentemente de concordarmos ou não com ela.

Só hoje li a edição de sábado do Jornal i, que publicou uma entrevista com Marcelo Rebelo de Sousa, assinada por Maria João Avillez. Naturalmente, a vida política e as tensões do momento entraram na conversa, mas quero aqui destacar o que o entrevistado disse e considerou sobre Bento XVI, por me parecer oportuno. A entrevista pode ser lida na íntegra aqui, mas transcrevo essa última parte, que respeita à visita papal e a algumas vias de transição que se abrem à Igreja.

«(...) Vem aí o Papa, o que não o deixa indiferente. Que reflexão lhe suscita esta visita? É uma grande oportunidade para uma palavra de esperança numa Europa sem norte e desesperançada e num país com pouco norte e muitos desesperançados. Em segundo lugar, é importante que o Papa dê uma palavra de solidariedade à igreja portuguesa. Tem tido um papel de que se não fala, mas sem o qual não seria possível em muitos aspectos aguentar a crise social do país. É a Igreja que ampara muitas das IPSS no domínio da educação, da saúde, da solidariedade social. Quem faz esse trabalho, das crianças aos mais velhos, é uma rede de instituições de inspiração cristã. O comum das pessoas dá esse amparo como adquirido, confundindo-o com o Estado, mas justamente como nem sempre o Estado o pode fazer - e vai poder cada vez menos - quem está presente é a Igreja. Há ainda o facto de a visita ocorrer num momento em que o Papa e a Igreja são objecto de um conjunto de críticas - aqui e no mundo. Umas devido ao estilo de Bento XVI, outras ao caso da pedofilia.

Quer parar numas e noutras? A comunicação social, que gostava particularmente de João Paulo II, gostou sempre menos de Bento XVI. Sucede porém que o Papa é atacado por ter cão e por não ter e insuspeitamente o digo: como católico acho que o Papa é escolhido pelo Espírito Santo e que vale a sua escolha e não a minha. Isto dito, teria preferido que o Espírito Santo tivesse escolhido outro. Mas antes mesmo da questão da pedofilia já se dizia que era um homem primitivo, reaccionário. Queria recorrer ao catolicismo irracional - quando é a racionalidade em pessoa. Por outro lado acusam-no de ser demasiado frio, racional, sem capacidade para entender as pessoas e sem criar empatia com elas. Atacava-se por ele ser anticonciliar quando foi determinante a sua acção no Concílio Vaticano II; atacava-se por ser "direitista" porque terminou com alguns movimentos omitindo que acabou com outros, com essa conotação mas que mereciam ser extintos. Sendo conservador em questões de princípio e da disciplina interna da Igreja, é geralmente omitido que numa das últimas encíclicas atacou o capitalismo internacional, a crise financeira, sublinhando nela a culpa dos banqueiros, defendeu a reforma das Nações Unidas, uma nova ordem económica internacional, manteve as posições em relação à Palestina. E então, de repente, ai que afinal era progressista...

E no outro caso? O santo padre pediu desculpa na sua carta às vítimas irlandesas, recebeu outras vítimas em Malta. Já várias vezes pediu desculpa, aceitou a culpa, aceitou que há uma responsabilidade que não é só religiosa... Mas de cada vez que diz qualquer coisa que devia ser "lida" como um reconhecimento do que é inaceitável no comportamento da Igreja, caem-lhe em cima dizendo " é preciso muito mais"!

Falou de João Paulo II. Os seus desafios não são os mesmos de hoje... Não. O Papa anterior enfrentou um grande desafio - que venceu. Eram os marxismos, que estavam na moda quando ele chegou ao Vaticano, nos anos 70, podendo assistir à implosão da União Soviética e dos marxismos. O desafio deste Papa é muito mais difícil: o ressurgir dos racionalismos iluministas de há mais de um século, para os quais a razão explica tudo. Mas ao mesmo tempo que explica tudo, porque a razão é individual, também é relativista: não há valores absolutos. O Papa assumiu o combate a esses racionalismos relativistas, o que é lógico na óptica de quem entende que há valores absolutos, mas isso tornou-o "incompreensível", por um lado, e "inaceitável" por outro. Repare que até a comparação com João Paulo II é injusta: João Paulo II era relativamente novo quando foi eleito, o que não ocorreu com o seu sucessor. A minha leitura é que este Papa é obviamente de transição: a transição entre João Paulo II e o primeiro Papa não europeu.

América Latina? ... e se Deus quiser Brasil. E mais: vou dizer-lhe uma coisa que por enquanto, poucos sabem: o actual Papa trabalhou para não ser Papa. Ele mais o arcebispo de Paris e um cardeal muito próximo, o austríaco Schönborn. Trabalharam muito para que fosse eleito um Papa não europeu. Justamente não houve eco dos cardeais europeus, particularmente dos italianos, para quem isso seria uma ruptura demasiado brutal. O que é inevitável é que depois de Bento XVI surja um Papa da nova cristandade.»

terça-feira, 20 de abril de 2010

António Barreto em entrevista

A edição do Jornal i de Sábado trouxe longa entrevista com António Barreto. A ler. Deixo aqui alguns excertos...

CONFIANÇA? «(…) Creio que [o momento actual] é um momento menos feliz, de mais cepticismo, de menor capacidade de investir, no sentido de prever o futuro, de ter optimismo para antecipar o futuro, para criar, construir projectos de vida para si próprio, para os filhos, para os netos. (…) A situação é muito difícil. Há fragilidades muito grandes nas instituições. As pessoas não têm confiança. (…) Nas instituições da Justiça, à cabeça. Reclamam bastante do sistema de Educação, apesar de este se ter alargado bastante. Mas a verdade é que há muitos licenciados e doutorados desempregados, jovens que fizeram o 12º ano e que estão desempregados. E a expectativa das pessoas, foi isso que lhes disseram os governantes nos últimos trinta anos, é que se estudarem arranjam emprego. Mas estas coisas não são imediatas. E as pessoas estudaram e depois não têm o emprego que esperavam. (…)»

DEMAGOGIA E MEIAS VERDADES «(…) A política portuguesa, desde há 30 anos, que é marcada por uma forte demagogia, por meias verdades, meias mentiras, muitas promessas. Nas últimas eleições já se calculava que o défice não era nada 3%, nem 5%, nem 6%. Já deviam saber o que se passava. E até não sei se a oposição não sabia também. O Banco de Portugal, as direcções-gerais e os institutos já sabiam que não era tão famoso como isso e decidiram ocultar. (…) Das duas uma. Ou não sabiam e são absolutamente incompetentes - não é possível, tecnicamente, em trinta dias, passar de 4% ou 5% para 9,4% -, e deviam ir para a rua imediatamente, ou sabiam e mentiram à população. Isto traduz uma parte da atitude demagógica que é tradicional desde há 30 ou 40 anos. A maior parte dos políticos usa muitíssima demagogia, promessas, falsidades, ocultações, enganos. (…)»

ESTADO EXEMPLAR? «(…) O país não dá bons exemplos. O país não poupa. O Estado gasta mais, tem os olhos maiores do que a barriga. O Estado quer fazer um TGV que ninguém pode pagar. O Estado fez auto-estradas como nenhum país da Europa. Há países muitíssimo mais ricos que têm muito menos auto-estradas do que Portugal. O Estado promete tudo e mais alguma coisa. São estes os exemplos que as pessoas recebem do estado. (…)»

MÉRITO «(…) Liquidar o mérito devido ao colectivo é das piores coisas que se pode fazer num país. E o mérito vai desde o electricista, ao soldador, ao gestor financeiro. Recompensar o mérito pelo trabalho bem feito, a tempo e horas, o trabalho honesto e sério, é melhor coisa que se pode fazer a um país. (…)»

PRODUZIR «(…) Portugal esgotou os seus recursos, não há. E durante cinco anos, vai ter que fazer muito mais, muito mais grave, muito mais duro e muito mais austero do que o PEC e do que tudo o que possa surgir. Vai doer muito mais. Porque há necessidade, não há dinheiro, não há produtividade, não há competitividade, não há produção. Produção mesmo, isto é, o que vem do mar, da terra, da indústria, os manufacturados, isso é 35% da nossa balança. O resto é serviços. Portugal não pode sobreviver assim, Portugal não produz. A política de austeridade, o corte de salários vai ser para toda a gente. Isto, por um lado é uma necessidade, desastrada, mas é uma necessidade, e, por outro lado, tem esse efeito, é apanhado pela mesma medida o preguiçoso e o eficaz, o diligente e o malandro, o cumpridor e o baldas. Vão ter exactamente a mesma sorte. (…)»

DOCE VIDA «(…) Há um fenómeno de moda e uma espécie de ideologia infantil. Penso que é moda pensar que a vida é uma coisa harmoniosa, doce de manhã à noite, que não há conflitos, que não há riscos, que não há gestos mais violentos. Não sou afavorável às bofetadas, não dou bofetadas a ninguém, mas sei que isso faz parte da vida. (…) Não é com a ideia de sociedade harmoniosa que se deve modelar a escola de hoje. Nas escolas são dados muitos maus exemplos. (…) O que é uma escola? É um sítio onde as meninas vão a correr e os cavalos a saltar e coisas desse género. Isso é uma estupidez total. É um sítio onde se aprende por prazer? Isso é uma total estupidez. Aprender não é lúdico, é trabalho, é esforço. Se cria uma escola deste género não tenho qualquer tipo de dúvida de que pode resultar em violência. (…)»

DISCUTIR? «(…) A maneira como se fazem discussões políticas no Parlamento é de uma total selvajaria. Os gritos e os berros dos deputados, o argumento mais doce é mentiroso, desonesto, os olhos esbugalhados, as veias a inchar no pescoço. O Muhammad Ali chamava o adversário de todos os nomes, metia-se com a mãe dele, com a mulher, com a filha. Até que um dia lhe perguntaram: “Por que razão insulta os adversários dessa maneira?” E ele, com o ar mais inocente do mundo responde: “Mas acha que posso estar durante 15 rounds a bater em alguém sem o odiar? Primeiro preciso de o odiar e só depois consigo bater-lhe.” Os deputados e os governantes em Portugal parece que têm que se odiar e isso tem um terrível efeito. Colocam o debate político e social nesses termos. Como é que os trabalhadores e os sindicatos falam dos empresários e vice-versa? É num tom parecido. Pode opor-se a alguém sem berrar. Isto quer dizer que as vias institucionais para gerir conflitos não estão rodadas. (…)»

MUDANÇAS «(…) Portugal nunca teve pluralismo religioso a não ser agora, que começa a ter. Mas nunca teve e nunca acho bem tudo o que é anti-plural. Portugal teve muito pouco pluralismo durante anos. Um regime politico, um partido, uma só língua, uma só cor de pele, uma só maneira de viver, de adorar, de amar Deus, um só Deus, uma só Igreja. Quando começa a haver muitas igrejas, muitas crenças, muitas cores de pele, muito feitio de cabelo, as sociedades são mais dinâmicas, mais interessantes, mais vivas, mais confrontacionais. Portugal só agora é que está a começar a ter disso, só agora, há 20 ou 30 anos, é que sai à rua e ouve falar línguas, vê brancos, pretos, amarelos, castanhos, o que é bom para a sociedade. (…)»

ESTADO «(…) A primeira obrigação de um Estado é criar regras para deixar as pessoas viver. Cria regras e depois retira-se. (…) O Estado devia deixar crescer, devia deixar ter ideias. (…)»

PRIMEIRO-MINISTRO «(…) Nas sucessivas crises e casos que ilustram o curriculo do primeiro-ministro nos últimos anos, acho que não se defendeu a tempo e quando se defendeu bem foi tarde demais, criou uma sensação de dúvida e desconforto. (…)»

OPOSIÇÃO «(…) Até há data, atribuo um mérito ao Pedro Passos Coelho, um pouco paralelo ao que atribuo a Sócrates. Ter conseguido ser eleito com uma grande maioria no partido,num partido que é habitado por lacraus, por barões, seja o que for, um termo à vossa escolha. E de repente, alguém consegue uma maioria de 60 e tal por cento dentro do próprio partido. Poderão vir dizer que é uma maioria periclitante, não quero saber nada disso, quero saber que foi feito algo que permite, em teoria, organizar um partido politicamente. Faz-me tanta falta um partido de oposição eficiente, bem organizado, com representatividade, como um governo com maioria absoluta. Um bom partido de oposição influencia o governo, como o governo influencia a oposição. É este jogo que eu quero ver jogado. Não sei se o Pedro Passos Coelho vai conseguir isto. (…)»

FAZER POLÍTICA «(…) A política tem regras próprias e comportamentos próprios. Não gosto da ideia de que os técnicos fazem boa política, da ideia do governo dos técnicos e das competências. Isso é um mito, que tem também muitas décadas, de que “devíamos varrer com os políticos todos e entregar o governo a bons técnicos de finanças e engenharia”. Essas pessoas não sabem fazer política e são desastres absolutos. Gosto é de uma boa mistura entre políticos, que sabem da política, conhecem os seus instrumentos, como se trata o partido, o eleitorado, a Constituição, os adversários, como se trata com os patrões e os sindicatos, mas que também houvesse gente da ciência, da técnica e da economia real. Um governo apenas com aparelhos do partido também é péssimo. (…)»

(IN)DEPENDÊNCIA «(…) Os apoios às presidenciais e às legislativas em Portugal têm o condão de fixar politicamente uma pessoa. Você tem uma opinião positiva sobre a maneira como um presidente ou outro agiu durante um certo tempo, se diz isso e se não o faz com cautela, automaticamente passa a ser um aficionado e ao ser aficionado está contra o outro. O que quer que você hoje diga sobre Cavaco Silva, Manuel Alegre, Fernando Nobre, fica imediatamente marcado, arrumado, vai fazer parte das comissões de honra, mandatários, e durante cinco, quinze ou 20 anos da sua vida, passa a ser um dependente daquele grupo politico. Um homem livre só declara apoios ou simpatias quando lhe apetecer, se lhe apetecer, incluindo não apoiar ninguém. (…) Em Portugal a política é uma forma de dependência e fazer política é aceitar ser dependente. E por isso que é difícil ser-se cidadão. O verdadeiro cidadão não tem dependências, tem liberdade de escolha.

CIDADANIA «(…) [Temos] muito poucos [cidadãos], voltamos sempre ao mesmo. Veja o que se faz no Parlamento. Como é possível que 250 criaturas sigam sempre quatro chefes partidários? E que no dia em que uma criatura decide pensar de outra maneira lhe caiam todos em cima, os jornais, as televisões, as rádios. Desrespeitou, faltou. (…) Aceito que um deputado deva respeito ao seu partido por uma ou duas coisas, se não também não era deputado desse partido: a moção de confiança ao governo, a moção de censura ao governo e o orçamento. (…) A regra de funcionamento do nosso Parlamento para ser um parlamento livre e decente devia ser a da liberdade de voto. Depois, dentro de cada partido haveria contratos. O meu partido quer-te como deputado, muito bem, dou-te tudo o que quiseres mas exijo o teu voto na moção de confiança, censura e Orçamento, porque põe em causa os governos. (…)»

PARTIDOS «(…) Um partido não pode ter um nome religioso, não pode ser de um só distrito, tem de cobrir não sei quantos distritos, não pode ser pequenino, não pode ser regional. Tem de se estar inscrito no partido ou nas listas como independente, o que é outra coisa horrenda. Está tudo feito e organizado para impedir a independência e a liberdade. Quando digo que sou favorável a candidaturas independentes, devo dizer que o resultado é desastroso. Um Parlamento só com deputados independentes é totalmente imprevisível. Não há racionalidade partidária, e os governos ficam lá um quarto de hora. (…) Vai-se para o Parlamento como se vai para o Bairro Alto. Ora bem, eu quero partidos políticos, que são uma maneira de organizar o pensamento e a acção, de ter programas, estratégias, racionalidade. Simplesmente não é obrigatório que um partido seja feito com servos. (…) Já ouvi dezenas de deputados a dizerem “pá, tive de votar por causa do partido!” Fico furioso, como é que é possível? Eles são servos, gostam de ser servos, sabem que são servos, e aceitam ser servos. Com estes exemplos, como é que quer ter cidadãos livres e independentes? E cidadãos que não têm medo e não têm receio? (…)»

SEXO E IGREJA «(…) É muito desconfortável a tentativa de encobrimento por parte da Igreja. Foi com satisfação que ouvi bispos, portugueses e não só, dizerem publicamente: o que é crime é crime e tem de ser julgado publicamente, além de ser tratado em tribunais canónicos. (…) O universo do sexo e das aventuras sexuais tem dado muito resultado, portanto, denuncia-se tudo, parece que o fenómeno da Igreja veio atrás. Mas há qualquer coisa mais incómoda quando se fala da Igreja porque a Igreja ou os sacerdotes defendem certos valores? (…)»

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Ver o património azulejar religioso em Setúbal

Um olhar sobre os painéis de azulejo que enriquecem as igrejas da região de Setúbal, numa chamada de atenção para esse património, é o que nos apresenta o primeiro volume da obra recentemente editada, Património azulejar religioso de Setúbal e Azeitão (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2009), trabalho devido ao Núcleo do Património da LASA (constituído por António Cunha Bento, Armando Miguel Ferreira, Inês Gato de Pinho, Isabel Peraboa de Deus, Isabel Sousa de Macedo, Maria de Jesus Gonçalves e Ricardo Jorge Ambrósio).
Este trabalho surge na sequência do levantamento fotográfico do património azulejar da região (tendo já sido publicado no ano passado um volume reunindo imagens dos azulejos decorativos de exterior, visíveis nas ruas da mesma região) e nele são apresentadas as peças que constam nas igrejas paroquiais sadinas de Santa Maria da Graça, de São Julião, de São Sebastião e de Nossa Senhora da Anunciada, bem como nas igrejas do Mosteiro de Jesus, do Convento de Brancanes e do Convento da Boa-Hora e na capela do antigo Colégio de São Francisco Xavier. Prometido fica um volume consagrado a idêntico património azeitonense.
O livro assenta na visualização fotográfica sobretudo (cerca de 120 imagens, algumas delas recorrendo ao pormenor), com escassa legenda, ainda que, a anteceder o capítulo de cada edifício, seja feita uma breve resenha histórico-artística da construção. Como intenção máxima deste projecto, fica o propósito de “dar a conhecer o património azulejar religioso existente em Setúbal”, bem como a expressão da necessidade de “contribuir para a sua salvaguarda e preservação”. Um contributo bem válido para o conhecimento do património cultural setubalense!

sábado, 4 de abril de 2009

A crise, a política e a sociedade nas palavras de D. Carlos Azevedo

D. Carlos Azevedo, presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, tem entrevista no Público de hoje. Fico-me por alguns excertos.
1. «(…) [A crise] tinha que acontecer. O modo como as pessoas estavam a viver, o neoliberalismo do mero lucro, da ganância como critério para organizar a economia... A própria formação dos gestores: não se dava nenhuma ética e as pessoas quase assumiam que não tinham princípios e estavam interessadas só em ganhar dinheiro... (…)»
2. «(…) Há consciência de que as empresas precisam de dimensão social, há estruturas de "economia de comunhão", há alternativas, mas são raras. Trata-se de ajudar as pessoas a assumir a sua responsabilidade. Em Portugal, temos muito a ideia de que o responsável por tudo é sempre o Estado. Pode haver, num tempo de crise como este, confusão e desespero. É muito importante manter a serenidade: é possível sairmos disto, encontrar caminhos. Algumas empresas, felizmente não muitas, tinham capacidade financeira de recuperar e não abrir falência, aproveitaram a ocasião para o despedimento. É um atentado à ética. Quanto aos ordenados exorbitantes dos gestores, começa a ser gritante. É necessário que haja um pouco de decência, porque é mesmo obsceno no nosso tecido social. (…)»
3. «(…) Sabemos que não há um partido quimicamente puro, nem queremos que seja um executor da doutrina da Igreja. Admiramos muito os políticos que são bons políticos e que lutam pelo bem comum da sociedade. É preciso reabilitar a política em Portugal. Porque com o descrédito dos políticos que a comunicação social também provoca, é necessário reabilitar, precisamos de bons políticos. Com certeza que eles não têm todos os [nossos] princípios, mas há que escolher com consciência quem represente as nossas ideias e valores. (…)»
4. «(…) À Igreja compete formar a consciência, não dirigir a opinião. A consciência de cada um deve depois tomar as suas decisões. (…)»
[foto: D. Carlos Azevedo, por Daniel Rocha, in Público]

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Quando D. Manuel Martins fala...

Foi no programa radiofónico “O Caminho de Emaús” no domingo passado. O entrevistado, uma personalidade bem conhecida em Setúbal, em Portugal mesmo: D. Manuel Martins, bispo na cidade do Sado desde 1975 até 1998, hoje Bispo Emérito de Setúbal. Da sua conversa, de pouco mais de dez minutos, quatro registos, todos eles fortes, uns por emoção, outros pela mensagem, outros ainda pela convicção.
Bispo de Setúbal – “Deus deu-me a graça de incarnar naquela terra. Procurei viver os problemas daquela gente. Ali passei 23 anos.”
Missão da Igreja – “A igreja tem como missão evangelizar. (…) Na evangelização há também uma missão profética e a igreja tem a missão essencial de proclamar a dignidade da pessoa humana. A igreja deve estar mergulhada até ao pescoço na vida dos homens.”
Direitos do Homem – “Falta tudo [para ser cumprida a Declaração Universal dos Direitos do Homem]. Muito do que é fundamental está a ser esquecido. Não vou mais longe. Falo só no que diz respeito ao trabalho e, se quiser, ainda afunilo mais e digo no chamado código do trabalho.”
Direitos – “A igreja deve incitar as pessoas a que reconheçam a sua dignidade, os seus direitos. Aqueles que têm responsabilidade estejam muito atentos para se evitar uma sublevação social onde tudo pode acontecer.”