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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O monumento a Bocage e a “farpa” de Ramalho Ortigão



Ramalho Ortigão (1836-1915) e Eça de Queirós (1845-1900) formam o par que alimentou o projecto d’As Farpas - Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes (Lisboa: Tipografia Universal), conjunto de volumes de opinião iniciado em Maio de 1871 com um exemplar de 96 páginas e o custo de 200 réis, que durou até 1883 (nem sempre respeitando a periodicidade mensal), embora Eça só tivesse colaborado até Outubro de 1872 por ter ingressado na carreira diplomática (as suas crónicas foram reunidas em 1890 em Uma campanha alegre). 

Pel’As Farpas passou a crítica social, política, artística, religiosa, educativa, retratos de um Portugal pela lente dos que alimentaram a Geração de 70, de maneira a criticarem um certo marasmo. Os objectivos das crónicas com tão acutilante e cáustico título eram claros, como se pode ver logo no primeiro volume: “Leitor de bom senso - que abres curiosamente a primeira página deste livrinho -, sabe, leitor - celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil -, que foi para ti que ele foi escrito - se tens bom senso! E a ideia de te dar assim, todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra confusa dos factos alguns contornos do perfil do nosso tempo.” Recusando cumplicidade na situação, os autores decidem “apontar dia por dia o que poderíamos chamar o progresso da decadência”, recorrendo ao riso, ao humor, confessando: “não sabemos, talvez, onde se deva ir; sabemos de certo onde se não deve estar.”

É assim que o volume relativo a Dezembro de 1871 (publicado em Janeiro seguinte) refere a inauguração do monumento a Bocage ocorrida em 21 desse mês em Setúbal, cerimónia presenciada pelos dois amigos, Eça e Ramalho, que integraram a comitiva vinda de Lisboa.

O texto (que, em 1889, foi integrado no volume 9 de As Farpas, dedicado ao “Movimento literário e artístico”), devido a Ramalho Ortigão, é contundente, pois aproveita o facto de o Marquês de Ávila e Bolama ter presidido à cerimónia para o criticar, na sequência de várias acções ligadas à sua governação. Chega Ramalho a admitir que a presença desta personalidade na presidência da cerimónia era o contrário do que Bocage mereceria - na memória estava ainda a proibição da manifestação cultural que foram as Conferências Democráticas do Casino, ocorrida em finais de Junho de 1871, assinada por Ávila e Bolama, acto entendido como de censura, contrariando o espírito livre do poeta sadino - “Bocage é a contestação acerba e crua de todos os títulos que concorrem no sr. Marquês de Ávila e Bolama”, escrevia Ramalho, que também felicitava Setúbal pela iniciativa - “Setúbal levantou uma estátua ao poeta Bocage, pelo que se nos não oferece senão fazer os nossos cumprimentos a Setúbal” -, embora lamente também que, em vida, Bocage não tenha recebido da sua cidade “um ceitil para o livrar da penúria”.

A imagem do “arrependimento” que a terra-natal de Bocage possa ter tido ao pagar-lhe a celebridade com uma estátua serve a Ramalho para estabelecer o paralelismo com o papel de Ávila ao presidir às cerimónias desse 21 de Dezembro - “Setúbal, levantando uma estátua a Bocage, testemunha o seu remorso pelo que deixou de fazer. O Sr. Marquês de Ávila, inaugurando essa estátua, declara o seu arrependimento por aquilo que tem feito.” E, ironia das ironias: “Àquela cidade e àquele cidadão, os nossos parabéns!” Não se podia falar melhor do aproveitamento político da inauguração de uma estátua!...

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 754, 2021-12-15, pg. 7


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Castilho e a estátua a Bocage



Data de 20 de Março de 1867 a longa carta que António Feliciano de Castilho (1800-1875) dirigiu aos “Presidente e Vereadores da Câmara, Notáveis e Habitantes em geral da ilustre Cidade de Setúbal”, tendo como motivo a construção de um monumento que lembrasse Bocage na sua terra-natal. Homenagear o vate sadino cerca de seis décadas após o seu falecimento ganhara entusiasmo depois de, em 1864, Manuel Maria Portela ter conseguido pôr lápide na casa onde teria nascido Bocage, acto que aproximou e entusiasmou António Feliciano de Castilho. 

O primeiro motivo dessa carta é o agradecimento do subscritor por a Câmara o ter designado presidente honorário da comissão promotora do evento em honra do “Cisne do Sado”, satisfeito porque “os Shakespeares, os Molières, os Schillers, os Cervantes, os Camões e os Bocages pertencem a este número de eleitos” merecedores de serem imortalizados pelo cinzel.

A valorização de Bocage prossegue pela aproximação a Camões - se este “regulariza e fixa, com o adjutório do latim, do italiano e do espanhol, a arte do escrever claro e culto”, aquele, “outro Messias literário, ofusca, dispersa, quase aniquila de todo a sinagoga arcádica.” Se ambos recorrem à milícia para servir a Pátria, vão para o Oriente, são encarcerados, assistem à crise social e morrem na miséria, também as vivências privadas são paralelas: “Amores: qual dos dois levará nisto a palma ao outro? Nem um nem outro é Petrarca para uma só Laura ou Dante para uma só Beatriz”, pois “não amam a uma formosa, enleva-os a formosura” e “a feminidade, sob qualquer forma ou nome, é o seu íman perpétuo.”

Feliciano de Castilho antecipa depois a festa que Setúbal promoverá aquando da inauguração do monumento a Bocage: “Daqui me estou eu deliciando a antever essa festa nacional! Toda a vossa cidade de gala; a capital visitando-a com inveja; a praça alcatifada de loiros e murtas; a música alvoroçando ainda mais os corações; os edifícios colgados de púrpura; os representantes do município em toda a pompa oficial e, a convite dele, as damas indo coroar de flores seu escravo agora rei.” O entusiasmo leva-o a sugerir a realização de outeiros poéticos, retoma de prática do tempo de Bocage, e a insistir na construção de uma “escola-asilo”, verdadeiro monumento ao poeta, o que levaria Setúbal a ser “uma cidade famosa”.

Uma semana depois, em 27 de Março, o executivo camarário respondia: “É esplêndida a maneira como V. Exª expressa os seus elevados conceitos; será modesta a nossa resposta, porque modestos são os nossos recursos.” No entanto, a mensagem de Castilho calara fundo nos decisores locais: “Aquela carta, Exmo. Senhor, devera ser lida em assembleia aonde concorresse o maior número possível dos conterrâneos de Bocage, se não fosse ainda mais útil dá-la à estampa e distribuí-la com profusão para que fique bem gravada na inteligência e no coração de todos e seja um poderoso talismã que avive mais e mais neste povo o amor às instituições humanitárias”. Dois dias depois, Castilho respondia a autorizar a publicação, numa curta carta em que também defendia o método de ensino que criara, apesar de saber que muitos o desprestigiavam.

As três missivas foram publicadas nesse mesmo ano sob o título Cartas do Exmo. Sr. António Feliciano de Castilho e da Câmara Municipal de Setúbal a respeito do Monumento a Bocage, impressas na Tipografia de José Augusto Rocha, em Setúbal.

O monumento a Bocage, na praça que já tinha o seu nome, foi inaugurado em 21 de Dezembro de 1871, com festejos, muito público e comitiva grande, que integrava nomes como Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 688, 2021-09-08, p. 5


terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Francisco Borba mostra a Setúbal que D. Carlos pintou e desenhou



Este livro, Setúbal e Arredores na Obra Artística do Rei D. Carlos (Setúbal: LASA, 2019), devido à persistência e sensibilidade estética de Francisco Borba e ao estudo aturado de Raquel Henriques da Silva, precisou de cerca de 120 anos para aqui chegar, com uma história que atravessa várias fases.
Do ciclo de vida do rei D.  Carlos todos sabemos que foi curto - nascido em Setembro de 1863 no Paço da Ajuda, morreu assassinado no Terreiro do Paço em Fevereiro de 1908. Um percurso de pouco mais de 44 anos de uma figura multifacetada que, a par da governação, assumiu um estatuto próprio na cultura, fortemente marcado pela sensibilidade estética e por um espírito científico. Por 1880, começou a ter aulas de pintura não só por causa da formação cultural da sua condição de príncipe, mas também porque o desenho lhe aguçava o espírito desde a infância. E, oito anos depois, em Dezembro de 1888, participava o ainda príncipe na exposição de pintura promovida pela Associação Industrial Portuguesa com duas marinhas em aguarela. A partir daí, a sua participação em colectivas de pintura não mais parou, integrando mostras promovidas a ritmo anual pelo Grémio Artístico e pela Sociedade Nacional de Belas Artes, chegando a expor em Paris (na Société Artistique des Amateurs e na Exposição Universal de Paris), em Barcelona, em St. Louis e no Rio de Janeiro, tendo algumas das suas obras sido premiadas.
Uma produção pictórica intensa, num trajecto que se foi aprimorando e que passou por temática variada e suportes diversos, cuja qualidade foi reconhecida por vários críticos. Os elogios que foram feitos à obra de pintura e desenho de D. Carlos culminaram com o cognome de todos conhecido de “Rei Artista”, que, por si, denota o prémio do reconhecimento geral dessa sensibilidade. E, se dúvidas houvesse, bastaria a opinião de Fialho de Almeida, crítico difícil de convencer (chegou a assumir-se como dono de uns “olhos jacobinos”, precisamente a propósito de D. Carlos, quando visitou as obras que o rei mandara fazer no Outão), que, em 1892, a propósito da exposição promovida pelo Grémio Artístico nesse ano (a segunda edição), em que um quadro do rei foi premiado, registou sobre os dotes artísticos de D. Carlos que os seus quadros “passam de prenda à categoria de um verdadeiro trabalho de arte” e que “é necessário apontá-lo entre os pouquíssimos que neste país de costa verdadeiramente sentem a marinha, e entre os raros que na exposição se esforçam por pintar em português” (Os Gatos, vol. 5). Por igual diapasão se afinou outro conhecido crítico, com mais mavioso percurso, mesmo com relações de amizade que o ligavam ao rei, Ramalho Ortigão, que, em diversos textos de memória sobre D. Carlos, apreciou a sua arte e testemunhou que “as suas paisagens são comovidas evocações”, que se transformou no “pintor inesgotável dos mares portugueses” e que “foi um dos mais espontâneos e mais laboriosos pintores portugueses do seu tempo e da sua idade” (Últimas Farpas).
As viagens marítimas do rei ao longo da costa portuguesa constituíram pretexto para uma linha temática intensa da sua pintura - a arte marinha, passando pelo retratar os barcos e as paisagens marítimas. Por esse crivo passou muito intensamente a paisagem da costa de Cascais e também o espaço que desde o Espichel se alcança até Setúbal. E é assim que se entra na segunda fase da história deste livro.
Em 1963, Maria de Lourdes Bartholo, então directora do Museu Regional de Bragança, publicou o título A Obra Artística de El-Rei D. Carlos (Lisboa: Fundação da Casa de Bragança), em que, depois de um pequeno estudo introdutório, divulgou o inventário das obras do rei nos museus e palácios nacionais, tendo chegado a um total de 572 obras recenseadas a partir de 14 colecções (Palácio Ducal de Vila Viçosa, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Museu Nacional de Soares dos Reis, Palácios Nacionais da Ajuda, da Pena, de Sintra, de Mafra e de Queluz, Aquário Vasco da Gama, Sociedade Nacional de Belas Artes, Museu da Sociedade Martins Sarmento, Museu Municipal Dr. Santos Rocha e, no estrangeiro, o Palácio do Itamarity, do Rio de Janeiro, e a Antiga Colecção Imperial da Alemanha).
Esta obra não deixou insensível o setubalense João Botelho Moniz Borba (1908-1977), que, dois anos antes, em 1961, tinha assumido o lugar de director do Museu de Setúbal (fundado em Fevereiro desse mesmo ano). Dedicado “patrimonialista de Setúbal e da sua região”, como se lhe refere Raquel Henriques da Silva, João Borba percorreu estrenuamente esse inventário na demanda de obras relacionadas com Setúbal, tendo ficado sensibilizado com o “Álbum de Apontamentos”, recolhendo anotações a lápis feitas em Lisboa, em Setúbal e a bordo do iate “Amélia”, provavelmente entre 1885 e 1890, manuscrito que integra o espólio do Museu Nacional Soares dos Reis.
A partir daí, com a meticulosidade que o norteava nas questões de um inventário artístico setubalense, João Borba solicitou reproduções fotográficas do álbum àquele museu portuense e elaborou a lista “El-Rei D. Carlos - O que ele pintou e desenhou sobre Setúbal e Arredores”, a que acrescentou cinco quadros que conhecia, três do Palácio Ducal de Vila Viçosa e dois que tinham figurado na exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes de 1903.
Podia o trabalho de pesquisa ter ficado por aqui que já teria sido importante o registo dessas referências a Setúbal para a sua história cultural e para a construção de uma certa identidade.
Alcança-se agora a terceira fase da narrativa, quando é passado mais de meio século sobre a listagem que o diligente João Borba fez na mira de recolha, de saber e de conhecimento de outros olhares sobre Setúbal. Chegados a 2019, eis que Francisco Borba, numa atitude de partilha de documentação do arquivo de família e honrando a memória familiar e setubalense, decide a publicação desta obra Setúbal e Arredores na Obra Artística do Rei D. Carlos, seguindo os passos e o roteiro do pai, aí integrando três pinturas (“A Torre do Outão”, de 1900, e “O barco da vela vermelha” e “Barcos no Sado”, ambos de 1905) e o mencionado “Álbum”.
A obra de D. Carlos teve já variados estudos, destacando-se o que, em 2007, foi publicado por Raquel Henriques da Silva na obra El-Rei Dom Carlos, Pintor (1863-1908), que acompanhou o catálogo das 411 obras existentes no Museu-Biblioteca da Casa de Bragança elaborado por Maria de Jesus Monge (Caxias: Fundação da Casa de Bragança, 2007). Nessa leitura, a autora vê a obra iconológica de D. Carlos afecta a nove áreas temáticas, ainda que algumas tenham um muito reduzido número de representações e se justifiquem por marcas de especificidade delicada e por terem uma inegável ligação a momentos ou locais que preencheram a vida do artista: marinhas, paisagens em terra, paisagens entre o rio e a terra, gentes e narrativas de trabalho, retratos, pintura da História, registos do quotidiano (incluindo desenhos científicos e naturezas mortas), homenagem ao Alentejo e apelo do mar.
As reproduções apresentadas neste livro, que não abrangem a totalidade das peças em que D. Carlos referiu Setúbal, passam por quase todas as categorias indicadas por Raquel Henriques da Silva, o que permite também fortalecer a ligação entre o rei e este território. Com efeito, por aqui passam as marinhas (os barcos e o mar) e o prolongamento da paisagem do mar para terra (Setúbal e a Comenda, o cais de embarque, Sesimbra); a população marinha (as medusas e as toninhas); o aspecto da monumentalidade (Outão, castelo de Palmela, fortes de S. Filipe e da Arrábida, S. Julião, o aqueduto, Praça de Bocage, Nossa Senhora da Conceição do Cais, porta de S. Sebastião, Bacalhoa) e das ruínas (Cetóbriga); a fisionomia costeira (desde o Espichel até ao Sado); os pormenores de construção ou de elementos decorativos (o farol, a capela do Bonfim, as marcas dos sinos, heráldica); a figura humana em ambiente de trabalho ou lazer ou no seu cargo (os pescadores, o chefe dos veteranos em Palmela, a ponte de banhos); o esboço de retrato humano (em alguns casos indicando o nome próprio revelando proximidade no trato). Há ainda espaço para o auto-retrato, para a visualização de recantos do iate “Amélia” e para uma imagem de momento de pausa de um casal, algures na paisagem junto de uma coluna em ligeira colina, ele talvez desenhando, ela talvez lendo...
O leitor deste livro, mais rigorosamente o espectador deste livro, pode assistir assim a tempos de perenidade e a instantes de vida, em que o traço varia entre a fixação do que é perdurável e a captação de instantes, de movimentos ocasionais, quase como se houvesse a reprodução do momento em que a fotografia é feita, no que essa fracção de tempo tem de irrepetível. A paisagem ou o cenário surgem sempre animados, dinâmicos, motivando a nossa contemplação, sugerindo um entrar nos ambientes, um conhecer as pessoas e os hábitos, as formas de vida e de ver. No texto de Raquel Henriques da Silva que acompanha este livro, é este fenómeno explicado quando refere: “o desenho, a aguarela e a pintura constituíram, para D. Carlos, uma busca e registo da beleza e das gentes, mas também a determinação de os conhecer e de os explicar”. E, mais adiante: “a obra artística de D. Carlos, sobretudo o seu desenho, é, no seu conjunto, uma comovente declaração de amor a Portugal - à beleza das costas marítimas, à suavidade do relevo, à antiguidade da história, à bonomia das gentes mais humildes.” Haverá elogio mais propositado para um pintor naturalista como D. Carlos foi?
Contudo, esta obra que Francisco Borba organizou e trabalhou - ou não fosse ele também um homem com sensibilidade fotográfica - faz ainda uma outra ponte com a memória, transportando-nos até à actualidade ou, pelo menos, até àquilo que a contemporaneidade preserva da memória. Lado a lado com quatro desenhos de D. Carlos referentes a monumentos, Francisco Borba pôs outras tantas fotografias recentes dessas mesmas construções, num olhar artístico que explora a dinâmica das linhas, da luz e das sombras, forma de homenagear o tempo, é verdade, mas também a arte e o próprio D. Carlos, também ele um apaixonado pela fotografia. Por estas reproduções a preto e branco passa a essencialidade do objecto retratado, revestido de toda a sua força expressiva e afirmando a sua vetustez e monumentalidade.
Setúbal e Arredores na Obra Artística do Rei D. Carlos é, assim, um livro a várias mãos e a vários tempos, que pode ser lido segundo distintas linhas - da pintura à escrita, do desenho à memória, da paixão ao documento, da cronologia à estética, do momentâneo à intimidade, exactamente assim intencionalmente mescladas, afirmando um olhar próximo, humano, límpido, fascinante, assim o leitor-observador se deixe impregnar pela aragem que se solta destes fragmentos.
(Na apresentação da obra, em 7 de Dezembro de 2019)

domingo, 27 de setembro de 2015

Ramalho Ortigão, um século depois



Passam hoje 100 anos sobre a morte de Ramalho Ortigão (24-Out-1836 a 27-Set-1915).
Na imagem, reprodução da nota de 50$00, de 1938 (ch. 6), que consagrava o autor portuense.

terça-feira, 31 de março de 2015

Bocage em selo - emissão filatélica de hoje



Quase 50 anos separam as duas emissões filatélicas em que Bocage é personagem central: a primeira, de finais de Dezembro de 1966, com desenho de Luís Dourdil, numa série de três selos com os valores de 1$00, 2$00 e 6$00, respectivamente, destinada a assinalar os 200 anos do nascimento de Bocage; a segunda, lançada hoje, com desenho assinado por Folk Design, selo destinado a cartas até 20 gr em correio azul nacional.
O selo hoje apresentado integra a série “Vultos da cultura portuguesa”, em que figuram seis personalidades cujos períodos de vida se relacionam com números redondos associados a 2015: Bocage, poeta (1765-1805); Francisco Vieira, pintor (1765-1805); Ramalho Ortigão, escritor (1836-1915); Ruy Cinatti, poeta (1915-1986); Frederico George, arquitecto (1915-1994); Agostinho Ricca, arquitecto (1915-2010). Bocage e Francisco Vieira foram contemporâneos, ambos tendo vivido pelo período de 40 anos, deles se celebrando este ano o 250º aniversário de nascimento.

[Foto inferior: série filatélica "Vultos da cultura portuguesa - 2015" - CTT, 31.Março.2015]

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

No Gerês, o banco do Ramalho Ortigão, por Raul Lino

Um mapa do concelho de Terras de Bouro indica, bem próximo da vila de Gerês, o “Banco de Ramalho Ortigão”. No entanto, na estrada, não há qualquer registo do monumento. Em conversa com um natural, fica-se a saber da localização – no lugar de Assureira, num jardim com ar abandonado, junto de uma rotunda, à esquerda de quem desce do Gerês para Rio Caldo. “Mas olhe que vai encontrar aquilo em mísero estado, ninguém conserva aquilo, tem sido destruído, já partiram parte da obra, mas ainda lá há uma inscrição.”
Aquilo terá sido espaço ajardinado e terá sido cuidado… há muito tempo, embora haja marcas de limpeza florestal recente. O banco lá permanece, com marcas evidentes de vandalismo, já sem a tal inscrição. “Até isso desapareceu há uns tempos… Sei lá se foi por ser em bronze…”, comenta outro local.
Muitas considerações poderiam ser feitas a partir daqui quanto ao estado do património ou quanto à responsabilidade de quem detém os espaços públicos. Aliás, os dois interlocutores confessavam que, desde que aquele espaço passou para a responsabilidade do Parque [Nacional da Peneda Gerês], a degradação do sítio tem sido crescente.
Ramalho Ortigão não se sentou naquele banco. Tendo falecido em 1915, a peça escultórica, com a assinatura de Raul Lino, só seria inaugurada em 1920, por iniciativa da Sociedade de Propaganda de Portugal, para homenagear o escritor. Ramalho Ortigão era visita do Gerês e escreveu sobre aquela região e sobre as suas termas. Amante das caminhadas, conta-se que as fazia longas e, no sítio onde foi implantado o monumental “Banco de Ramalho Ortigão”, costumava ele sentar-se sobre uma pedra, tendo sob o alcance da vista a paisagem do Rio Caldo.
Quanto à inscrição contida na placa, o seu texto contava a história e ainda se consegue ler na net (num blogue) a transcrição: “Em umas toscas pedras que os frequentadores do Gerez chamavam os bancos do Ramalho costumava vir aqui sentar-se lendo e escrevendo o notável escritor José Duarte Ramalho Ortigão que tanto honrou a sua terra e tanto quis a esta região. A Sociedade de Propaganda de Portugal no mesmo lugar mandou levantar-lhe esta singela homenagem delineada pelo arquitecto Raul Lino de Lisboa no ano de 1920”.
Assim, vale a pena que o mapa editado pela Câmara Municipal de Terras de Bouro indique a existência do “Banco de Ramalho Ortigão”, podendo o visitante conhecer uma obra de Raul Lino, manter a memória dessa figura importante da cultura do século XIX que foi Ramalho e… contemplar o que vai havendo de incúria e de menosprezo neste país! Que boa “farpa” estes quotidianos merecem!...

[fotos: Banco do Ramalho Ortigão em postal sem data e na actualidade]

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Inês Gato de Pinho, "Vilegiatura Marítima em Setúbal"

O que poderia ser Setúbal se tivesse sido dada continuidade àquilo que, no início do século XX, se prefigurava na margem do Sado como uma estância balnear? A resposta pertencerá a uma espécie de história virtual, mas a pergunta pode ser feita com toda a legitimidade se pensarmos no complexo que ali existiu a cargo da Empresa Setubalense de Banhos e se quisermos especular a partir da forma como se conclui o livro Vilegiatura Marítima em Setúbal (Setúbal: Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2010), de Inês Gato de Pinho, quando a autora regista: “Resta-nos reavivar a memória de um período pouco documentado e deixar em aberto a reflexão sobre o futuro que Setúbal teria como estância balnear.”
No final do século XIX, Setúbal era um destino de férias, motivado por condições climáticas e pelas suas praias (umas e outras excelentes), recomendado pela medicina e pelos publicistas (destacando-se, neste último grupo, o nome de Ramalho Ortigão, autor de obras como Banhos de Caldas e Águas Minerais, de 1875, e As Praias de Portugal, de 1876, ambas sugerindo sítios saudáveis de Portugal).
Sendo esta vocação sadina uma área mal conhecida na história setubalense, Inês Gato de Pinho consultou autores da época, como Arronches Junqueiro ou o próprio Ramalho Ortigão, leu recortes jornalísticos da Gazeta Setubalense ou de A Folha de Setúbal, cruzou informações trazidas pelas investigações de Rogério Peres Claro e de Carlos Mouro, por fotografias e postais da época, verificou processos e projectos de arquitectura, e reconstruiu o que seria Setúbal enquanto cidade acolhedora de turistas nesse início do século XIX.
O leitor pode assim circular no Passeio do Lago, ao mesmo tempo que lê os conhecimentos da altura ou que passa os olhos pelos escritos de Paulino de Oliveira, pode contemplar a paisagem já centenária e sentir o olfacto invadido pela labuta piscatória, venha ela do afã com que as redes são tratadas ou dos odores que ressaltam das fábricas de conservas de peixe, pode mirar as páginas da revista social Ilustração Portuguesa, pode penetrar no luxo que dominaria o Cais do Trindade ou vaguear pelas alas do estabelecimento de banhos que a Empresa de Banhos Setubalense levantou a partir do projecto do arquitecto seixense Ventura Terra. Tudo suficientemente documentado e ilustrado. Simultaneamente, o leitor pode ainda ver como a cidade de Setúbal tem sido um ponto de encontro (ou de choque) entre modas nem sempre conciliáveis com uma visão de ordenamento da cidade, antes preferencialmente sujeitas àquilo que no momento mais dá….
E termino quase como comecei. “Um momento supôs-se que, desde Setúbal até ao Portinho da Arrábida, se estenderia, em poucos anos, uma linha de construções marginais, chalets de luxo e vivendas formosas, em volta das quais iriam tomando vulto povoações de recreio e de repouso. Viriam a finança e a aristocracia semear o seu ouro fecundo, transformando a encosta inútil em uma admirável estação marítima, que só teria rivais na margem do Tejo, de Lisboa a Cascais, e na margem do Douro, do Porto a Leça da Palmeira.” Quem assim escrevia era Câmara Reis, na já referida Ilustração Portuguesa, em Junho de 1918, citado pela autora. Desse sonho, algo visionário, ficou o palacete da Comenda, mandado construir pelo representante da França em Portugal, o Conde Armand, e projectado por outro arquitecto português de renome, Raul Lino. O resto… pertence às memórias que a autora percorreu e à tal história virtual.