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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

António Osório e o equilíbrio, entre Sado e Arrábida



Em 1996, nos vinte anos da criação do Parque Natural da Arrábida, publicava-se em Setúbal o opúsculo Junto ao Sado e Arrábida, dezasseis poemas de António Osório (1933-2021), numa edição do Instituto da Conservação da Natureza e do Parque Natural da Arrábida. A origem desses textos estava nos livros A raiz afectuosa (1972), A ignorância da morte (1978) e Planetário e zoo dos homens (1990), sobrando ainda dois que viriam a ser integrados em Crónica da fortuna (1997).

Em Junto ao Sado e Arrábida, o leitor visita a paisagem revestida pelo branco e pelo vento que animam um moinho, ao mesmo tempo que, junto ao postigo, se fixa na naturalidade do curso da vida - “os grãos de trigo / estremeciam / antes de se perderem” -, assim como conhece a paisagem de Aldeia de Irmãos, lugar que abriga pessoas e animais, num cenário que apresenta “em torno vinhas, olivais, / irmãos uns dos outros / como tijolos dentro da parede.”

Noutro passo, sente-se a beleza única das camarinhas, conjugando a estética da planta e o gosto sentido - “bagas acídulas, / iguais a pérolas”, num fruto que se atapeta sobre as dunas, resistente “ao salitre penetrante das vagas”. Ainda sob domínio do mar, em espera invernosa, as gaivotas são apresentadas como “curiosas, húmidas, algo de pombo, milhafre, cinza”, ocupando, “para ver gente, o ponto iluminante dos candeeiros”, num tempo em que “aguardam o que não temem, as devoluções do mar”. 

As plantas são tema ainda em poemas como “As dez nogueiras” ou “O apanhador de ervas”, no primeiro se afirmando a relação de proximidade e respeito entre o homem e a Natureza - “Plantadas no Inverno (...), atravessarão o tempo, muito tempo. E darão sombra e fruto a outras gerações. Se eles forem cuidadosos, abençoarão um a um os seus donos.” -, enquanto o segundo acompanha à lupa a persistência de um homem em quatro décadas de recolha de plantas - “Há quarenta anos anda pela vala real (que já ninguém conhece), destila na caldeira de seu avô plantas salutares”.

A figura humana é glorificada em vários momentos: no poema “Cabo do mar”, com um protagonista poderoso, mas humano - “não era Neptuno, mas o descalço / e poderoso cabo do mar”; na descrição da vida do fazendeiro; a propósito de um amigo, Sebastião da Gama, enaltecendo a sua ligação à Arrábida e traçando-lhe o retrato que a memória conservou - a fala da fraternidade, o sorriso infantil, a boina (“travessura mordaz, / tua exclusiva defesa”), os alunos (“à volta, / atrás do sobretudo, cachorros / que amamentavas”), os livros (“debaixo do braço, farnel / de poesia ambulante”), a água bebida da infusa (“como pedreiro, de um jacto”). 

Também a fragilidade da vida por aqui perpassa - ora pela “patada, / relincho, trigo por ladrão gadanhado”, que foi o choque da morte de Sebastião da Gama, ora pela imagem de um esqueleto em “Caldeira da Tróia”, visto enquanto golfinhos saltavam no Sado: “Não, não é fácil a ruína de um corpo. / Nem plácida a boca escavada / e as órbitas de símio desafiando os vivos.”

Por estes poemas de António Osório passa a sua leitura do mundo, da vida e da memória, numa atenção veneranda por tudo o que o rodeia, quase sinal de agradecimento pela existência e pela harmonia encontrada, na busca da palavra essencial para suportar imagens intensas e sóbrias, construtoras da sensibilidade do equilíbrio. 

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 741, 2021-11-24, p. 2 


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Sobre "O concerto interior", de António Osório


O último texto de O concerto interior – Evocações de um poeta (Lisboa: Assírio & Alvim, 2012), de António Osório, conclui com uma invocação: “Espero que me ajude a Nossa Senhora da Saudade, que nos acompanha até ao fim da vida”. O quadro em que surge esta quase prece é emoldurado pela lembrança de Maria Emília, sua mulher, digna forma de fechar um livro de recordações, selado com um retrato de alguém com quem foram partilhadas quase seis décadas de uma vida.
Abriga-se, pois, António Osório junto de uma Nossa Senhora da Saudade e pensará o leitor numa definição desta saudade que alimenta as páginas de um livro feito de memórias. Vou buscar-lhe explicação, gravada na nota introdutória de um outro livro de memórias que publicou há quatro anos, Vozes íntimas (Lisboa: Assírio & Alvim, 2008), onde registou que as tais “vozes íntimas” outra coisa não eram senão a “forma de termos a nosso lado a sua companhia e de sermos fiéis a essa invisível presença”.
Aqui residirá a chave para entrarmos nos textos memorialísticos de António Osório, habitualmente conhecido como poeta, ainda que com começo de publicação tardio, por 1972, quando se inaugurou em edição de autor com A raiz afectuosa, já próximo dos 40 anos (de idade de António Osório, na altura do aparecimento dessa obra, e, agora, em 2012, de obra literária). É ainda nessa introdução de há quatro anos que as coordenadas da memória são traçadas, uma vez que os textos então publicados são apresentados como “excertos de lembranças” e justificados porque “a memória dos outros acaba por seguir a própria – dispersos acontecimentos da juventude e da iniciação literária, alguns encontros decisivos, o devido agradecimento”. Uma fidelidade, diríamos, aos outros e à vida.
Nesse outro livro de 2008, António Osório mostrava-se, com os amigos e com os momentos que a eles deveu, eternizando o lume da amizade, a tal “luz fraterna”, expressão que traria, no ano seguinte, para essa compilação magna da sua poesia. De um ponto de vista estrutural, o livro que agora aparece, O concerto interior, edifica-se da mesma forma – em treze textos de memórias, que vão sendo outras tantas peças de um “puzzle” duplamente entendido: como reconstrução escrita da família e como gratidão ou homenagem ao que foi ou é a sua família, ainda que, por vezes, vista no sentido lato que a estende até à profissão, cadinho também feito de aprendizagens, de encaminhamentos, de protecções e de amizades, que, de alguma forma, prolongam esse universo de afectos e de proximidade.
Ao longo dos vários textos, António Osório vai tornando presentes aqueles que já estão ausentes, respeitando a fidelidade, e vai contando a história que o fez. O pormenor dessa fidelidade vai mesmo até ao ponto de a prolongar na disposição dos objectos que fazem a memória, como se pode ver em três de vários exemplos: o primeiro, ao evocar a mãe e o curso que ela fizera de puericultura, quando regista “tenho ali o diploma”, forma de provar não apenas o título ou a formação atribuídas a Giuseppina mas também a guarda, a protecção e a proximidade do documento, que implicam a fidelidade; o segundo, no texto que evoca Maria Valupi, ao referir que a pedra pisa-papéis que ela usava “ficou sempre na minha mesa, à direita”, mas “agora está no lugar próprio – por cima da sua Antologia poética”, uma quase justificação para a escolha de um mais adequado espaço, assim não sendo ferida a tal fidelidade, antes a reforçando; o terceiro, ao situar um quadro de Miguel Ângelo Lupi que fora resguardado por Maria Valupi, insistindo numa perspectiva muito próxima – “O quadro passou a fazer-me companhia. No escritório da casa da Aldeia, ficou à minha direita; virado de frente. Durante quarenta anos, assistiu praticamente a tudo o que escrevi.” Fidelidades aos sítios, aos gestos, às recordações, para garantia de uma fidelidade da memória!
Quanto à história de que se fez, o memorialista revela vários momentos: ao tentar definir as suas raízes culturais, aponta as coordenadas que o levam à cultura italiana, através da mãe, ou à portuguesa e francesa, através do pai; ao relembrar a sua juventude, assinala “os dois tormentos” que a mãe teve de enfrentar – a doença de “gânglios” do filho e o sofrimento dos familiares próximos italianos devido à 2ª Guerra Mundial; ao cartografar o que seria uma sua geografia, destaca a importância de Setúbal, de Palmela, de Azeitão, das quintas, mas também a de Lisboa e de espaços como o escritório ou a sede da Ordem dos Advogados, e ainda as visitas ao estrangeiro, fosse por razões da advocacia ou por motivos culturais e familiares, constituindo todas estas coordenadas outros tantos pontos de partida para amizades; o estágio de advogado, a sua carreira e o seu papel enquanto bastonário da Ordem dos Advogados (percurso que não surge isolado de vários comentários que estabelecem a ponte entre o passado e o presente, em tom crítico, como quando refere que, no tempo em que iniciou a profissão, “os julgamentos não se atrasavam como hoje”, ou quando diz que, no seu estágio, ficara a conhecer a “máquina da justiça”, expressão logo acrescida da nota “aliás muito melhor do que a de hoje”, ou ainda quando comenta ser “cada vez mais lamentável o distanciamento entre os membros da família judiciária, como antigamente se dizia”).
O concerto interior revela também a chave que dá acesso à poesia de António Osório, não escondendo do leitor a forma como surgiram alguns dos seus poemas. Numas situações, revela o pretexto desses poemas, que tanto pode ser um marco importante ocorrido na sua vida (como os filhos ou o desaparecimento dos pais ou o de Maria Emília, por exemplo) ou o legado de certas pessoas com quem se cruzou (a senhora Conceição, que cozinhava o pão, o carroceiro José da Vaca, a senhora Rita, que ajudava nas tarefas da casa, o senhor João, caseiro, ou o senhor Teotónio da Malta Jotta, funcionário da biblioteca da Ordem dos Advogados, ou o poeta e amigo brasileiro Carlos Nejar) ou ainda o fascínio perante uma obra de arte (como o poema que edifica em torno da escultura de David, em Florença, ou a propósito de uma tela de El Greco, em Toledo); noutros casos, os textos iluminam o que são os seus elementos poéticos fortes (os animais, o “espanto pela natureza”, o tempo).
A questão poética acaba por dominar ainda este livro, uma vez que o texto que o encerra não é de cunho memorialístico, antes assumindo um lugar de “apêndice”, aí se fazendo sentir a voz do escritor, do poeta, num quase manifesto intitulado “O desprezo pela poesia”, mensagem que correu a propósito do Dia Mundial da Poesia de 2010, divulgada pela Sociedade Portuguesa de Autores. O texto é sobretudo de tomada de posição quanto à vida editorial, quanto à educação literária, quanto à sensibilidade que deve animar qualquer cultura, por ele perpassando nomes fortes, de um amplo friso cronológico, que constituíram alicerces de gerações de poetas, como Platão, Ángel Crespo, Benedetto Croce ou Rainer Maria Rilke. E não será por acaso que o manifesto encerra com Rilke, artista maior para a geração de António Osório e com vasta leitura e reflexão em Portugal, quando escreveu: “ser artista é amanhecer como as árvores, que não duvidam da própria seiva e que enfrentam tranquilas as tempestades da Primavera, sem recear que o Verão não chegue”. A questão das estações serve de modelo à vida e, para um poeta, não há melhor seiva do que a poesia, geradora de palavra e de fraternidade, afinal termos caros a António Osório e que povoam a sua escrita.
Propositadamente, deixei para o final a questão do título, algo que, em si mesmo, nos transporta para uma situação de absoluto equilíbrio com o mundo, com a escrita e com o “eu” que se nos mostra – a ideia do “concerto” remete-nos para a totalidade e para a plena conjugação, para a obra perfeita, e o qualificativo “interior” alimenta o tom confessional, de exposição e de refúgio em simultâneo; uma e outra palavras revelam o apaziguamento com o mundo, uma e outra palavras reflectem-se no subtítulo “evocações de um poeta”, acentuando essa dominante da memória, dos fragmentos da vida, por selecção ou por imposição. A imagem que de imediato nos surge é a da serenidade, um concerto de tal forma intenso que nos permite lidar com o tempo de uma maneira pacífica, porque, como notou Philippe Besson, “o tempo cura tudo e deixa apenas à superfície as imagens que queremos conservar” (Em tempos de guerra. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2008, pg. 45). Ao longo do folhear dos diversos trechos, pode o leitor confrontar-se com vários registos da palavra “gratidão”, sentimento mostrado perante gestos humildes ou grandiosos que contaram para a formação e para o caminhar de quem se escreve. A intenção de António Osório foi também autobiográfica, tal como acentua logo no título do curto texto de abertura, significativamente intitulado “Uma vida”, abrindo espaço para o horizonte cronológico, mas logo demonstrando a existência desse paradoxo que é o da impossibilidade de uma vida se escrever na sua totalidade, como indicia ainda na primeira frase ao emendar a mão para a possibilidade de este conjunto ser apenas uma “breve autobiografia”. A perspectiva autobiográfica mantém-se em todos os textos, alicerçada sobretudo na tónica da memória, ainda que, por vezes, atinja também o estatuto de relato de obra feita, como sucede no capítulo intitulado “O advogado e o escritor”, em que há evocações, relatos e também um balanço de qual tenha sido o seu contributo enquanto bastonário da Ordem dos Advogados.
Mas este “concerto” teve ainda uma outra descoberta: nesse mesmo texto que inicia a obra, António Osório revela o encanto e o prémio do prazer da escrita – “tudo isto trouxe de volta fundas alegrias, que tentam afastar a velhice funesta”. Este “concerto” é, pois, não só o desenho dos caminhos que em muitas situações conduziram à poesia ou a digna atitude de gratidão, mas também a prova de que a escrita autobiográfica possibilita um encontro de quem se escreve consigo mesmo, num passeio orientado pelo labirinto que cada um de nós alimenta, constrói e vence. Como há uns anos dizia Eduardo Lourenço numa entrevista a Carlos Vaz Marques, “o que me interessa é o auto-retrato que cada um de nós está escrevendo. (…) Nós não precisamos de psicanalista para nada. A gente dá-se. (…) A escrita é realmente a escrita do nosso inconsciente. Uma pessoa não pode trair-se a si própria.” (Ler. Lisboa: Fundação Círculo de Leitores, nº 72, Setembro de 2008, pp. 30-40). Ora, como acto de permanente risco e exposição, a escrita é também essa ponte que, ao permitir o fluxo entre mim e os outros, nos torna vivos, nos justifica, nos ajuda à reconstrução. Se, como diz António Osório, “os músicos são mais felizes que nós, poetas”, porque “o entusiasmo rodeia-os, e até recebem o aplauso com ramos de flores”, a nós, seus leitores, outra coisa não restará senão o enveredar por este percurso de memórias, partilhando e agradecendo a dádiva e essa luz fraterna da poesia e da vida, sempre rumo a um também… concerto interior!

[Na apresentação da obra, no Forum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, ontem]

sábado, 17 de novembro de 2012

Para a agenda - António Osório em Setúbal


António Osório acaba de publicar mais um livro de memórias, O concerto interior, com abundantes referências às suas vivências e ligações a Setúbal, obra que já mereceu críticas muito favoráveis - de António Carlos Cortez (JL - Jornal de Letras, nº 1095, 19.Set.2012, pg. 10) e de José Mário Silva (Expresso - Atual, 3.Nov.2012, pg. 32), por exemplo.
A organização deste evento foi iniciativa da Associação Cultural Sebastião da Gama, em parceria com a Delegação de Setúbal da Ordem dos Advogados. A sessão tem a colaboração da livraria Culsete e vai ter a participação do actor José Nobre, do TAS.

domingo, 6 de março de 2011

O número 100 da revista "Ler"

Já está nas bancas o número 100 da revista Ler (da Fundação Círculo de Leitores) correspondendo à sua 101ª edição, uma vez que da colecção faz parte o número 0 (zero), saído no Outono / Inverno de 1987, com a indicação “fora do mercado” (o número 1 corresponderia ao Inverno de 1988, já ao preço de 300$00, algo como 1,50 €).
Em torno do número 100 andam as recolhas que esta edição apresenta: “100 capas”, “100 imagens de páginas”, “100 livros”, “100 figuras”, “100 ideias para o futuro” e “100 citações”, antologias a partir das colaborações e das entradas na revista ao longo da sua história. Depois, vários dos seus cronistas dissertam sobre essa simbologia do centésimo número ou sobre o que foram as 100 saídas da publicação, com destaque para o nome que é colaborador desta revista desde o seu número zero: José Guardado Moreira.
Por falar no número zero, dirigido por António Mega Ferreira, algumas ligações a Setúbal eram nele evidentes: o grafismo era devido ao setubalense José Teófilo Duarte; era anunciada a obra Março Desavindo, de Mário Ventura (nome ligado a Setúbal e à criação do Festróia).
E, neste número 100, dirigido por Francisco José Viegas, também passam diversos nomes que cruzaram a sua história com a região de Setúbal, a saber: nas “100 figuras”, Manuel da Fonseca (de Santiago do Cacém), Pedro Tamen (a viver nas terras de Palmela), Al Berto (de Sines), António Osório (ligado a Azeitão), Luiz Pacheco (que por Setúbal peregrinou), Fernando Campos (que incluiu a Arrábida no seu romance histórico); na rubrica “100 citações”, uma reflexão de António Osório sobre a palavra – “Mas eu entendo que as palavras precisam de ser limpas do sarro que as envolve. Do sarro, do lixo comum. E assim as palavras podem purificar-nos.”
O leitor confronta-se também com uma entrevista a George Steiner conduzida por Beata Cieszynska e José Eduardo Franco. O ensino, o papel necessário das Humanidades, a supremacia da economia ou a corporação multinacional, a crise europeia, a história, a necessidade de ler, as redes sociais e a cultura portuguesa são temas por que passa este académico de Cambridge. Conhece bem Fernando Pessoa, José Saramago, António Lobo Antunes e gostaria de conhecer Camões – “Precisamos de Camões – falta à nossa cultura europeia o conhecimento do génio de Camões”, diz. E, já agora, mais uma achega, que é um bonito elogio à leitura: “Eu sou muito velho, mas tento, todos os dias, ou quase todos, aprender um poema, ou fragmentos de um poema, de cor, porque é assim que se agradece uma bela obra. Que outra maneira tenho eu de agradecer a Dante, a Cervantes, a Lope de Veja ou a Shakespeare?”
Com estes nomes grandes da literatura se cruza ainda o texto assinado por Harold Bloom, “O cânone do génio”, justificação de uma obra, Genius, cuja tradução para língua portuguesa é anunciada para este ano. A problemática em torno daquilo que define um génio é o eixo deste ensaio: a sua vitalidade, a sua sabedoria, o facto de alimentarem civilizações, a sua indispensabilidade. O texto termina com um aviso para os tempos em que somos protagonistas: “Não podemos enfrentar o século XXI sem esperar que ele nos traga um Stravisnki ou um Louis Armstrong, um Picasso ou um Matisse, um Proust ou um James Joyce. Desejar um Dante ou um Shakespeare, um J. S. Bach ou um Mozart, um Miguel Ângelo ou um Leonardo é pedir demais, uma vez que os talentos de tal magnitude são muito raros. Contudo, desejamos, necessitamos de algo que esteja acima do século XXI, seja lá o que for.”
A Ler tem sido assim: múltipla, surpreendente, englobando no seu recheio escritores, cientistas, pensadores, livreiros, leitores, livros, escritas e muito mais. Um acervo de tal forma importante que bem se justificaria a publicação de um índice, tal como é justificada a curiosidade perante cada número que sai para as bancas.
Concluo como Guardado Moreira no final da sua crónica evocativa que entra neste número 100: “e agora, pouco dado a nostalgias, aguardo”, lendo, “a próxima chegada do nº 200”!

domingo, 21 de março de 2010

Hoje é o Dia Mundial da Poesia

Para este Dia Mundial da Poesia, António Osório escreveu a mensagem que reproduzo, divulgada pela Sociedade Portuguesa de Autores. Vale a pena lê-la, olhando o mundo em que estamos.

'A poesia é ainda possível'? Montale, no discurso em que recebeu o Prémio Nobel de 1975, interroga-se sobre o papel que pode ter 'a mais discreta das artes', num tempo em que 'o homem civilizado chegou ao ponto de ter horror de si próprio'. Montale deixou-nos uma palavra de esperança – para a poesia 'que surge quase por milagre e parece condensar toda uma época', 'para essa poesia não há morte possível…'.
Mais de 30 anos passaram. Não haverá agora maiores motivos para se ficar inquieto quanto ao futuro? O mundo actual não é bem pior que o de 1975? Os drogados, a sida, os alunos que desrespeitam e agridem os professores, a brutalização da Europa, a crueldade recíproca entre árabes e judeus, o terrorismo internacional, as infindáveis guerras, a crise financeira que se apossou do mundo, tudo isto não são formas tenebrosas de desprezar a vida e a poesia?
Por outro lado, avulta o triunfo da 'mediocracia' e dos best sellers do sexo (La vie sexuelle de Catherine M. chegou aos 350.000 exemplares em França e foi traduzida em vinte línguas, a portuguesa inclusive, e, note-se, era um editor respeitável, as Éditions du Seuil…).
Mutatis mutandi, o mesmo se passou e passa entre nós. Os livros dos 'ases' do futebol e da televisão, que colhem fortunas …
Em contrapartida, as edições de poesia sofrem acentuada diminuição das tiragens. Os jovens universitários lêem cada vez menos, trocando a poesia, quando a trocam, pela 'prosa' multimilionária…
Repare-se no que ocorre com a televisão, o deus ex machina. Quando aparece a poesia, e só muito raramente aparece, vem longe dos ditos 'horários nobres'. E as páginas literárias estão acabando tristemente, o que conta é o futebol e as revistas do coração…
Que fazer contra esta maré negra, contra esta ocultação da poesia?
Infelizmente, ninguém vê hoje o poeta como o via Platão – 'uma coisa leve, alada e sagrada'. Os poetas são agora uns estranhos párias, uma espécie de sonhadores que andam nas nuvens.
A defesa da poesia cabe aos poetas. Muito tem resistido, têm que resistir mais ainda.
A experiência diz-me que as leituras de poesia nas escolas e nas universidades, pelos próprios poetas, o diálogo que tem de estabelecer com os alunos seus ouvintes é uma das melhores formas de humanizar o poeta e de chamar o interesse para a poesia que faz. E não se devem limitar estas leituras ao próprio país… Graças a Eugénio Lisboa e Patrick Quillier, fui primeiro traduzido para inglês e francês – e em Inglaterra e em França convivi com centenas de alunos.
Não basta o esforço isolado do poeta. O confinamento ao seu próprio país também lhe é nefasto.
Há menos de 20 anos, quantos poetas portugueses contemporâneos eram conhecidos no Brasil ou em Espanha? Impõe-se a ajuda crescente da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, e do Instituto Camões.
Não tenhamos dúvida sobre a nossa poesia actual. Ángel Crespo, um dos maiores lusitanistas e grande poeta, na sua Antologia de Poesia Portuguesa escreveu que 'la poesía portuguesa contemporânea muestra … una variedad tal de enfoques e soluciones que hacem de ella una de las mas significativas de nuestro tiempo'.
Tão-pouco nos devemos confinar a uma ironia sarcástica contra um mundo cruel.
Sem dúvida, a poesia terá de ser um 'refúgio' contra a voragem tecnocrática, contra o desrespeito pela beleza do mundo, contra a destruição da paisagem. Os seus são os valores da vida, a poesia é, como Croce sempre defendeu, a 'palavra cósmica', uma forma de não se submeter, mas de se indignar, de estar ao lado dos humilhados, uma afirmação humanista.
Retenhamos estas palavras de Rainer Maria Rilke, nas suas Cartas a um jovem Poeta: 'ser artista é amanhecer como as árvores, que não duvidam da própria seiva e que enfrentam tranquilas as tempestades da Primavera, sem recear que o Verão não chegue'.
Teremos de ser como elas, que não põem em causa a própria seiva e que resistem às tempestades da Primavera. Contra o desprezo pela poesia, oponhamos a nossa perseverante defesa. E ofereçamos os nossos livros, com um gesto fraterno.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Dia de Reis


Reis Magos, em presépio, em Vila Nova de Cerveira (colaboração de Quaresma Rosa)

António Osório. Crónica da Fortuna (1997)

quarta-feira, 19 de março de 2008

Poemas para os pais

O livro termina com uma “inverdade” que pretende ser simpática: “aos dezanove de março de dois mil e oito imprimiu-se na EGRAFE, SA esta primeira edição portuguesa de poesia da Prisa Innova para comemorar o dia do pai e a chegada da primavera”. Ora, acontece que o livro foi impresso para assinalar esses dois acontecimentos mas não nesse dia; na verdade, o livro foi posto à venda ontem, dia em que saiu para a rua a acompanhar o diário Público. Fala-se de Em nome do Pai – Pequena antologia do Pai na poesia portuguesa, volume com cerca de 120 páginas por onde perpassam textos de meia centena de poetas que trouxeram o pai para motivo da sua poesia, organizado por José da Cruz Santos e prefaciado por Vasco Graça Moura, que, além desta função, é também um dos antologiados. A direcção gráfica é de Armando Alves.
O texto introdutório de Graça Moura chama a atenção para a raridade que foi a entrada da figura do pai na poesia portuguesa anterior ao século XX, altura em que surgiu esplendorosa no poema de Jorge de Sena “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” (em Metamorfoses, de 1963). Por outro lado, é acentuada a ausência que envolve o tratamento da figura paterna na poesia – “embora alguns [poetas] façam a sua referência ao momento da morte, poder-se-á dizer que predominam as recordações da figura do pai na infância do autor e de um convívio determinante com ela.” A explicação de Graça Moura termina, aliás, com uma conclusão inevitável: “como se vê dos poemas aqui compendiados, todos os pais desaparecidos se tornaram fantasmas melancólicos”. Pelo caminho, ficou ainda uma explicação para o facto de a figura da mãe, essa sim, ter intensa presença na literatura poética portuguesa, fenómeno a que não está alheia a promoção da imagem materna “ao longo dos séculos pela devoção religiosa que veio mais tarde a encontrar a sua transposição laica para o plano da maternidade comum”.
O leque de autores reunidos começa com três nomes do século XIX – Camilo, António Nobre e Cesário Verde. Seguem-se nomes que entraram pelo século XX, logo a partir do quarto autor escolhido, Ângelo de Lima. Para falarmos de nomes relacionados com a região de Setúbal (um critério que justifica que não se liste a meia centena de autores seleccionados), citem-se António Osório (com fortes ligações à Arrábida e a Azeitão), Ruy Belo (que prefaciou o livro Pelo sonho é que vamos, de Sebastião da Gama, em 1970), Jorge Reis-Sá (o poeta que quase “fecha” a antologia e foi vencedor da 6ª edição do Prémio Literário Bocage, organizado pela LASA em 2004) e Amadeu Baptista (que foi o vencedor do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, organizado pelas Juntas de Freguesia de Azeitão em 2007).
Se o livro, enquanto objecto, é bonito, pena é que a antologia não contenha indicações sobre os autores (pelo menos as datas dos períodos de vida) e sobre os livros de onde os textos saltaram!
E, porque se está em Dia do Pai, dou a palavra a José Tolentino de Mendonça, aqui antologiado com o poema “A casa onde às vezes regresso” (reunido em A noite abre meus olhos, de 2006):
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração