quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (2)

 

"A Companheira", primeira colaboração de Sebastião da Gama em Brados de Estremoz,
e fac-símile do manuscrito de "Janelas de Estremoz", primeiro poema que Sebastião da Gama escreveu naquela cidade


Dos 27 poemas que Sebastião da Gama escreveu entre a sua chegada ao Alentejo e o falecimento, apenas oito têm como registo de local de escrita o espaço de Estremoz, o que não admira, pela quantidade de trabalho que tinha, a saúde precária (que o levou a algumas temporadas na Arrábida), a preparação em curso de Campo Aberto (saído em Janeiro de 1951) e os preparativos do casamento (que ocorreu em Maio de 1951). O mais antigo poema aqui escrito, “Janelas de Estremoz”, datado de 21 de Janeiro de 1951, dedicado ao amigo António Bento — figura que Sebastião apresenta em carta dirigida à ainda noiva, Joana Luísa (1923-2014), dizendo ser “um rapaz de Nisa de quem já sou amigo e com quem falo, o meu maior companheiro” —, resulta do seu olhar e vaguear pela cidade, espantado por não ver rostos, por assistir a um desfile de janelas cerradas, situação que o levará a um desabafo em carta para a namorada nesse Janeiro de 1951: “Ouve: fiz os primeiros versos. Sofri-os. Sofro-os desde o princípio — e já tinham estado quase a acontecer. Sabes lá o que é, para um homem da nossa terra, ver dezenas de janelas, centenas de janelas, fechadas! Pois aqui é assim. Até as madeiras. Até, por vezes, as gelosias.”

Desejoso de se ligar ao local e às suas gentes, Sebastião da Gama rapidamente enceta colaboração no jornal local Brados do Alentejo, aí tendo a sua primeira publicação em 28 de Janeiro de 1951 com o poema “A Companheira”, seguindo-se-lhe “Janelas de Estremoz” na edição de 4 de Fevereiro, duas semanas depois de ter sido escrito. O jornal estremocense teria ainda mais três textos do jovem professor, crónicas intituladas “Entre quem é!” (na edição de 11 de Março de 1951), “Sábado em Estremoz” (saída em 22 de Julho de 1951) e “Encarcerar a asa” (publicada em 3 de Fevereiro de 1952). Esta última prosa, um gesto de louvor à vida através de um episódio em que é protagonista uma idosa que protesta por ver um pintassilgo ao frio dentro de uma gaiola, foi o último texto que Sebastião da Gama escreveu, datado de 25 de Janeiro de 1952 e publicado quatro dias antes do seu falecimento.

A cidade que o recebeu foi ainda o espaço para uma série de crónicas vindas a lume no Jornal do Barreiro (seis, no total), colaboração que Sebastião da Gama assim apresentou a Hipácio Dias Alves, director do jornal, em carta de 7 de Fevereiro de 1951: “pequena crónica em que diga da vida da cidade, no que ela possa interessar-me”. Resultam, pois, estas crónicas de um olhar de recém-chegado, ávido de entender e conhecer o meio no que ele tem de mais genuíno e participado, aspecto que não passou ao lado do Brados do Alentejo, que não hesitou em republicar a crónica “Sábado em Estremoz” (na edição de 22 de Julho de 1951), inicialmente saída no Jornal do Barreiro (de 15 de Março), com a seguinte explicação: “O poeta Sebastião da Gama, chegado a Estremoz para professor do Ensino Técnico, em pouco tempo se enamorou dos encantos da nossa terra, mesmo sem ter provado a água do Gadanha. Em pouco tempo se familiarizou até à intimidade com a nossa gente, que sem receio lhe abriu os braços, dado o seu carácter franco e lhano e o seu modo comunicativo de tratar. Hoje, Estremoz distingue sempre com um sorriso, um curvar de cabeça, um aceno de braço, o poeta do Campo Aberto, à janela, na rua, em qualquer parte onde ele apareça. Ele está com a cidade e a cidade está com ele. Estremoz passou a fazer parte das suas conversas, a ser motivo de alguns dos seus poemas e assunto de pequenas crónicas (...) em prosa simples, despretensiosa, límpida como o seu espírito de poeta, reflectindo a alta e rara sensibilidade de artista. É uma dessas ‘Cartas de Estremoz’ que (...) transcrevemos, em homenagem à sua admiração pela nossa terra e pela sua gente.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1453, 2025-01-22, pg. 10.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Sebastião da Gama e as vivências de Estremoz (1)


Homenagem a Sebastião da Gama em Estremoz, em 15 de Junho de 1953


Em Abril de 2006, o visitante estava no Museu de Arte Sacra de Estremoz e, no final do percurso, perguntou a uma senhora qual o trajecto para chegar ao Largo do Espírito Santo. Com ela, estava uma outra senhora que logo opinou: “Mas o senhor quer ver o Largo? Aquilo não tem nada de jeito, só montes de carros estacionados...” O visitante justificou que gostava de lá ir para ver a casa onde vivera Sebastião da Gama. “Mas conheceu-o?”, quis logo saber a senhora. Que não, que não o tinha conhecido, pois, quando nasceu, já Sebastião da Gama falecera havia meia dúzia de anos. “Mas eu conheci-o... Ainda o estou a ver. Com a boina, livros debaixo do braço, a sorrir, flores na mão, com a sua Joaninha...” E os olhos da senhora sentiam o prazer da memória, riam, viviam, poetavam o momento de recuo no tempo... e lá acabou por indicar o itinerário para o Largo do Espírito Santo. Impressionado com este efeito avassalador da memória, em que parecia que a senhora tinha visto Sebastião da Gama no dia anterior — quando, na verdade, já tinham passado 54 anos sobre a sua partida —, lá se encaminhou o viajante para o Largo, com uma história para contar.

Por isso, quando, dias depois, recordei este momento com Joana Luísa, mulher de Sebastião da Gama, ela sorriu enternecida e comoveu-se, lembrando vários alunos e diversas pessoas que conheceu em Estremoz no curto tempo de oito meses em que lá viveu. Cheguei, pois, ao Largo do Espírito Santo. E lá estava a casa, lápide na parede, em cenário que, mesmo com os automóveis estacionados a esmo, evocou a fotografia de 1953, protagonizada por vasto grupo de estremocenses que assinalou a colocação da lápide, gesto intenso de culto da memória. “Batei à minha porta, Irmãos, / entrai, / que eu tenho Amor para vos dar”, reza a inscrição, conjunto de três versos saídos do poema “A meus irmãos”, escrito na Arrábida em 30 de Agosto de 1944 e publicado no primeiro livro, Serra-Mãe, no ano seguinte. E, depois, o registo para a memória: “Sebastião da Gama viveu nesta casa de 11-5-1951 a 5-2-1952”.

Sebastião da Gama tinha 26 anos em 9 de Outubro de 1950, quando foi colocado na Escola Industrial e Comercial de Estremoz (actual Escola Secundária Rainha Santa Isabel), sendo seu director Irondino Teixeira de Aguilar (1914-1969), professor e autor de manuais escolares. Acabado o estágio e realizados os exames da parte pedagógica, Estremoz passou a ser o espaço de Sebastião da Gama, repartido com a Arrábida e com as lembranças de Lisboa, terra onde fez amigos, compôs poemas, leccionou, terra que deu a conhecer nas suas descobertas que partilhou em crónicas jornalísticas, semeando, talvez, alguns dos mais interessantes textos que sobre a vida da cidade se escreveram.

Chegado à Escola, Sebastião da Gama teve intenção de dar continuidade ao Diário que compusera nos dois anos lectivos anteriores. No entanto, poucas páginas nos legou, talvez por falta de tempo, como nos confessa no registo do dia 11 — “Está claro que não pode este diário ter a exacta feição dos dois primeiros volumes. Pôr aqui todas as aulas? Era preciso que eu fosse um professor extraordinário; o professor que eles quase pensam que sou. Pois se eu estou atrapalhado!... Não sei por onde, não sei como começar. Ou me está a faltar a genica ou me está a faltar a imaginação. O diário vai então servir, como há dois anos em Setúbal, para guardar o melhor do que me for acontecendo. E já não há-de ser pouco, que não tenho apenas, como em Lisboa, uma turmazinha.” Os registos diarísticos acabarão por respeitar apenas os primeiros dez dias, com observações que mais nos vão dizendo sobre o conhecimento que vai tendo dos novos alunos: o Francisco Graça, que “vem de bicicleta, todos os dias, de a dez quilómetros de Estremoz”; a Luciana, “uma carinha de riso”, em quem “até as tranças riem”; o Mário, que “trouxe flores de Vila Viçosa” e vários outros... enfim, alunos de diversas idades e ciclos, que  o levarão a escrever, ainda no dia 10, sobre uma turma: “Gente boa. Gente minha. Não há rapazes maus. Vou gostar destes e destas seis raparigas.” E sobre outra, numa apreciação global: “São uma porção de rapazes e cinco raparigas que vêm para aqui, parece-me, com a ansiedade de rapazinhos. Mas eu, sinto-o com tristeza, vou ficar muito aquém das suas esperanças. Delicados. Estremoz é boa terra. Ou então é defeito meu.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1448, 2025-01-15, pg. 10.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Quando Romeu Correia escreveu sobre Sebastião da Gama

 


Em 28 de Março de 1949, Romeu Correia (1917-1996) lavrava dedicatória no seu romance Trapo Azul (publicado no ano anterior), uma história em torno da confecção de fatos de ganga feitos em Almada e depois distribuídos nos fanqueiros de Lisboa: “Ao Poeta Sebastião da Gama, com a simpatia e a camaradagem do Romeu Correia”. Nessa mesma Primavera, o escritor almadense recebia de Sebastião da Gama (1924-1952) os dois livros que este publicara — Serra-Mãe, de 1945, com a dedicatória “Ao Romeu, romancista de à beira-Tejo e de à beira-(dizem...)-vida. Sebastião”; e Cabo da Boa Esperança, de 1947, com a inscrição “Ao Romeu Correia amigo, do Sebastião da Gama”.

Entre os dois escritores, houve vários encontros, frequentemente ocorridos a bordo do barco que atravessava o Tejo, de Cacilhas para Lisboa — na capital, localizava-se a entidade bancária em que Romeu Correia trabalhava, assim como a Faculdade de Letras ou a Escola Veiga Beirão, espaços frequentados por Sebastião da Gama, primeiro como aluno, depois como professor.

De tais cruzamentos deu notícia Romeu Correia no artigo “Sebastião”, vindo a público no Jornal de Almada, em 10 de Fevereiro de 1968 (republicado, com algumas alterações e diferente título, cinco anos depois, no Boletim Trimestral do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU, em Abril de 1973). Nesse texto profundamente memorialístico e testemunhal, Romeu Correia lembra o primeiro encontro, que terá ocorrido por 1948, descrevendo o jovem azeitonense: “um rapaz de cara redonda, franco e rude, que falava pelos cotovelos”, que, “quando sorria, os olhos alongavam-se-lhe num traço — e era da maneira mais contagiante que ele sorria”; tinha “estatura meã — cheio, sem ser gordo —, a voz um pouco velada e as mãos muito expressivas”; “usava boina espanhola e trajava modestamente.”

No entanto, o que surpreendeu Romeu Correia foi a apreciação crítica do jovem ao romance Trapo Azul, acabado de publicar: “Não teve papas na língua para alguns defeitos encontrados no livro, embora fosse, na sua opinião, das coisas mais vivas e autênticas que conhecia da gente nova. (...) ‘É espantoso! Você escreve como fala! Não usa nos seus livros a linguagem escrita, mas uma linguagem oral!...’ Naquela altura fiquei confuso. (...) Mas o meu interlocutor, apercebendo-se da minha confusão de autodidacta desprevenido, sossegou-me: ‘Não fique molestado por isto! Pelo contrário, você é autêntico, tudo brota de si como a água pura e fresca da rocha! Não tem parentesco com essa malta que anda por aí a fazer uma literatura da literatura! Você é você! Nada de confusões: é autor dos seus defeitos e das suas qualidades.’ E, apressado, como sempre o encontrei nos poucos anos que lhe restavam para viver, apertou-me a mão, muito risonho, os olhos a fecharem-se-lhe num leve traço, como se a vida fosse uma coisa simples, sem nada que a complicasse.”

A citação é longa, mas vale a pena pelo que transmite da essência do poeta de Azeitão — o louvor da autenticidade, a rejeição do artificial, o sentido humanista, a alegria com a vida. E Romeu Correia acrescenta ainda outros valores, como os da convicção católica e do amor e da amizade nas relações humanas.

Estes atributos permaneceram nos encontros que tiveram e na memória do autor de Trapo Azul, assim como a espontaneidade do jovem da Arrábida, que, onde quer que visse o seu amigo, o chamava: “Nos três anos em que o conheci, os meus ouvidos foram sacudidos por gritos seus. Gritos atrevidos, chocantes, escandalosos. Eu ia numa rua, ou num barco de Cacilhas, ou estava num café — e lá vinha o seu tremendo grito! Quando tal sucedia, era certo que o Sebastião me avistara.”

A última memória de Romeu Correia destas saudações assenta nos finais de 1951, a bordo de um “ferryboat” para Lisboa, entre carros e carroças, um grito relacionado com a literatura e com a mais recente obra do autor almadense, Calamento, sobre a vida dos pescadores da Costa da Caparica, publicado em 1950: “Oiço um tremendo grito, que me sacudiu: ‘Ó Calamentoso! Calamentoso!...’ A voz e o atrevimento eram-me familiares (...). Volto-me e aparece-me, por detrás de uma carroça, o Sebastião”, que fez “uma grande festa” e “riu-se (ele ria-se sempre, muito feliz, quando gritava por um amigo)”.

O valor desta crónica de Romeu Correia advém de dois factores: por um lado, pelo tom testemunhal dado sobre Sebastião da Gama, evidenciando características que muitos dos que o conheceram também presenciaram; por outro, pela capacidade que o escritor de Almada (que, em 1952, quando faleceu Sebastião da Gama, tinha três obras publicadas e, em 1968, data da crónica de que aqui se fala, assinara já mais uma dezena de títulos, entre os quais a peça de teatro Bocage) evidencia numa cuidada construção de personagens.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1443, 2025-01-08, pg. 10.