“Se bem me lembro …” ou para que não nos esqueçamos – por Manuel Seixas,
in Diário de Coimbra, 19 de Dezembro de 2018
Em 19 de Dezembro de 1901, nasceu Vitorino Nemésio na Praia da Vitória,
ilha Terceira, Açores. Hoje, portanto, há 117 anos.
“... um grande poeta em quem Poesia e Vida se uniram servindo de
espelho a uma grande alma" - palavras sábias e sentidas que ele próprio
proferiu na homenagem ao seu amigo e companheiro "Tríptico" Afonso Duarte. Palavras de
Nemésio para o poeta da Eireira, palavras nossas agora para o poeta da
Terceira.
A pessoa que "se desfazia em linguagem", "o poeta
extraviado" e o mais universal de todos os açorianos, tudo escolheu em
Coimbra - o curso, a companheira e a morada definitiva. Aqui se licenciou mas,
mais do que isso, aqui se formou.
Um homem de "saber sem pautas" que sobre tudo se
interrogou e a todas as portas bateu. Da convivência agnóstica com Jaime
Brasil, seu mentor literário inicial, passou pela faminta sobrevivência em
Lisboa no meio anarco-sindicalista, seguindo-se a formação humanista com
Joaquim de Carvalho. Os amigos que lhe acudiram ao corpo moldaram-lhe também a
alma. Aurélio Quintanilha, António de Sousa, Martins de Carvalho, Afonso
Duarte, Paulo Quintela e Mário de Castro - de todos foi amigo e cúmplice.
Da Associação Cristã de Estudantes ao Centro Republicano
Académico, passou pelo Orfeão Académico e pela Loja A Revolta. Esteve em todos os
combates contemporâneos, "poetava" e conferenciava, admirou o
espírito de Merea e o brilho de Cerejeira, mas declarou guerra às sua ideias e
bateu-se no senado universitário contra o protegido do reitor Fezas Vital.
"Um homem exerce enquanto vive" afirmaria na sua
última lição, naquela que considerou ser um exame de consciência da sua vida.
Assim fez - ao viver, produziu uma obra ímpar - de ficção, de crónica, de
ensaio, de tradução, de estudos literários e jornalismo, mas sobretudo poesia.
Sempre e acima de tudo, poeta.
Rumou a Lisboa para a formatura, depois para o doutoramento, mas
sempre voltou a Coimbra para repouso e trabalho. França, Bélgica, Brasil, para
aprender e para ensinar mas sempre regressou a Coimbra, às Albergarias ou aos
Casareus, a Celas ou ao Tovim. Entre crises místicas de profunda religiosidade
e enamoramentos serôdios, a sua riquíssima formação e a curiosidade insaciável
pela leitura permitiram-lhe tudo - a ironia e o experimentalismo, o simbólico e
o formal, o lirismo e o plebeu. Mas também a insatisfação e a procura
constantes.
O grande público de então recordará sempre o seu contacto
semanal televisivo, o comunicador em que a fala competia com as mãos e a
admiração do espectador oscilava entre o conteúdo do discurso e a teatralidade
do gesto.
A suas raízes de insularidade nunca esquecida e o mar, como
elemento eterno, ficaram impressos na singeleza magnífica da sua campa quase
rasa no cemitério de Coimbra que escolheu, para nunca termos que lhe dizer
adeus, apenas cumprimentá-lo.
“Se bem me lembro …” ou para
que não nos esqueçamos – por Manuel Seixas, Diário de Coimbra, 19 de Dezembro de 2018 – com sublinhados nossos.
J.M.M.