“Amália, sem sucessores?” –
por António Valdemar, in Correio do Ribatejo
A advertência de Eduardo Lourenço ao considerar que Amália «morreu no seu século e não passou desfigurada para um tempo que não era o seu»
O Fado na sua
conceção intemporal, na sua expressão literária ou nas derivas populares
associadas à realidade social e cultural tem sido, nos seculos XIX e XX, objeto
de estudos eruditos, de ensaios críticos ou de obras de criação literária da
autoria de muitas personalidades ligadas à Academia das Ciências. Os
exemplos multiplicam – se até chegarmos a Amália
Rodrigues.
Procuramos sintetizar, numa retrospetiva sumária, subordinada ao
tema Amália, a Academia e Académicos os seguintes autores e respetivas obras: Teófilo Braga, em 1868, numa
interpretação das raízes do povo português (que antecedeu investigações
antropológicas e etnográficas de José
Leite de Vasconcelos) deu honras de transcrição integral dos versos
recolhidos na tradição oral («Chorai artistas chorai…») que lamentam a morte da
Severa. Henrique Lopes de Mendonça
enalteceu o Fado e o introduziu (com a música de Alfredo Keil) nas estrofes de A
Portuguesa que a Constituição da República, em 1911,
transformou no Hino Nacional. Eça de
Queiroz situou Lisboa na génese da invenção do Fado, enquanto Teixeira de Pascoais se
pronunciou acerca das modalidades do Fado em várias localidades geográficas.
Continua a emocionar a exaltação que Pascoais
fez de Hilário em Coimbra.
Logo no início do seculo XX, Júlio Dantas escreveu A Severa. Foi a reconstituição para
o teatro (e depois para um romance) tal como o próprio Júlio Dantas assim caracterizou: da vida de «uma flor pura,
desabrochada na lama», que se evidenciou a cantar o Fado, na Mouraria. «Tinha o orgulho de não ter
um ódio de ninguém, de ser feliz com a sua liberdade, o seu Fado, o seu amor ao
Sol».
«A Severa» – prosseguiu – «era uma linda figura de rapariga, ousada e forte, o cabelo negro derrubado em bandós, a saia de ganga restolhando vitoriosamente, com o ar glorioso das criaturas que conhecem de perto os triunfos». (…) «Bastava vê – la e ouvi – la para irradiar forte perturbação» (…) «Era, ainda nervosa e rápida, agitada, de vez em quando, de estremeções violentos, os pendentes de oiro a luzir – lhe nas orelhas, os cabelos em tumulto a cada acento inquieta, e a chinela pespontada de branco, miúda e linda, a dançar – lhe na ponta do pé».
E acrescentou Júlio
Dantas: «em cada momento diferente de si própria, e em cuja voz, ora doce,
ora selvagem, ora branda como um cicio, ora dolorosa como um uivo, passavam
todas as gamas, todos os tons, a macieza húmida do veludo, o tinido musical dos
metais, os gorjeios, os soluços, os gemidos, as tempestades».
Naturalmente, seduziu e apaixonou «fidalgos turbulentos que
corriam a súcia á força de murro e venciam a vida á força de alegria». Estreada,
em 1901, Ângela Pinto foi a primeira
protagonista da Severa. Em 1955,
no Teatro Monumental, Amália
Rodrigues foi a última protagonista que a representou. A Severa, durante mais de
meio século, arrebatou plateias de teatros em de todo o país, com lotações
esgotadas, e ficou a ser uma das peças de Júlio
Dantas de maior audiência.
Fernando
Pessoa ao depor num inquérito, no período em
que escrevia os últimos poemas da Mensagem, definiu o Fado antes dos
organismos oficiais que o elevaram a «canção nacional». «O Fado» –
salientou Fernando Pessoa - «não
é alegre nem triste. Formou–o a alma portuguesa, quando existia e desejava tudo
sem ter força para o desejar». António
Ferro, um dos fundadores com Fernando
Pessoa da revista Orpheu- e o único
elemento deste grupo que ingressou na Academia das Ciências -, ao desempenhar
funções, nas décadas de 40 e 50, á frente do Secretariado da Propaganda
Nacional (mais tarde o SNI, que o 25
de Abril extinguiu) fez a reabilitação institucional do Fado e promoveu a
carreira nacional e internacional de Amália.
A saudade - uma das componentes no Fado e da identidade portuguesa - foi aprofundada por outros académicos: António Quadros, Afonso Botelho e António Braz Teixeira. E também de Urbano Tavares Rodrigues que – sem afinidades ideológicas com a Filosofia Portuguesa -, prefaciou e selecionou a antologia A Saudade na Poesia Portuguesa.
Mas no ensaio crítico A Mitologia do Fado – fortemente
marcado por António Sérgio, pela sua
pedagogia ética e pelo seu magistério cívico - António Osório apresentou as conotações negativas do Fado
sempre que faz a apologia do vício e do crime.
A primeira história do Fado deve-se, em 1903, a Pinto de Carvalho (Tinop) que não foi académico, mas dois académicos
e seus contemporâneos, Alberto
Pimentel em A Triste Canção do
Sul e Albino Forjaz de Sampaio,
no Livro das Cortesãs (de parceria com
Bento Mântua) avultam entre os precursores
da História do Fado. O académico Luís
Francisco Rebelo (a propósito ou não de Amália) mencionou, neste e noutros contextos, os que não foram
da Academia das Ciências como Fernando
Pessoa, Hernâni Cidade, Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires e José
Gomes Ferreira, em diversos capítulos, da História do Teatro Português.
A polémica desencadeada quando Amália resolveu cantar Camões
provocou uma guerrilha de intelectuais. Assistiu–se á contestação veemente de José Gomes Ferreira e José Cardoso Pires; e á defesa calorosa
dos poetas David Mourão Ferreira e Alexandre O Neil e, ainda, de Hernâni Cidade, a autoridade
universitária, daquela época, em matéria camoniana. Surgiu, entretanto, o
louvor de Amália por Augusto de Castro. Era, na
época, o histórico diretor do Diário de Notícias e o mais antigo
sócio efetivo da Academia das Ciências,
admitido ainda nos últimos anos da Monarquia, quando também entraram Júlio Dantas, António Correia de Oliveira e Carlos
Malheiro Dias. Decidiu Augusto de
Castro intervir num editorial com o título Cantar Camões.
Constituiu uma surpresa para muitos que não conheciam a rebeldia
pessoal e profissional que se ocultava, no jornalista que soube lidar, e em
três ou quatro regimes tão contrastantes, com as imposições e as conveniências
das sucessivas conjunturas políticas. Augusto
de Castro considerou, então, que a obra de Camões não se poderia restringir aos estudos eruditos, repletos de
notas de pé de página, às intervenções circunspetas das Academias.
O génio de Amália
(voz do mar e do vento, voz de um povo que é Portugal a andar pelo mundo, nas
palavras de Augusto de Castro), ao
interpretar poemas e um soneto de Camões,
estabelecia a aproximação direta com todos os públicos. E de tal modo que o
próprio Camões, se fosse vivo, seria o primeiro a congratular–se com a expansão
que Amália atribuiu á sua poesia.
Foi o ponto final na controvérsia.
Poetas tão diversos, mas sócios efetivos, da Academia das
Ciências, ganharam amplitude através da voz de Amália. Menciono, por exemplo, Manuel
Alegre (Trova do Vento Que Passa), David
Mourão Ferreira (Varina), Teresa
Rita Lopes (Amor sem Casa) e Vitorino
Nemésio (Décima de Silvio e Silvana).
Sem aludir, por motivos mais que óbvios, a ensaios e a artigos
de jornal da minha autoria, cito outros académicos como Fernando Dacosta que enquadraram Amália na sociedade em que viveu e atuou recorrendo, com a garra do
repórter, ao impacto dos testemunhos. Ou, então, Agustina Bessa Luís que retratou Amália cruzando os demónios e os anjos que reaparecem nas sombras e
claridades da Sibila, um dos seus primeiros livros e onde pôs tudo o
que, durante mais de meio século, repetiu, com as suas habituais digressões,
através dos outros livros que publicou.
Referência obrigatória é a de Eduardo Lourenço. Tudo que escreveu sobre Amália está sistematizado por João
Nuno Alçada na organização das Obras
Completas. Para o livro de Jean-Jacques
Lafaye Amalia florilège redigiu Eduardo
Lourenço um prólogo que intitulou – Saudade, melancolia feliz. No
manuscrito, guardado no espólio na Biblioteca Nacional, acrescentou: “À memória
de Teixeira de Pascoais».
Julgo que será de recordar, ainda, que - no dia da morte de Amália – também Eduardo Lourenço declarou
perentoriamente: “Amália morreu no seu século. Não passou desfigurada para
um tempo que não era o seu. Morreu sem sucessores». Caberá a outros
estudiosos esclarecer se Amália
ficou enclausurada no seu tempo ou se conseguiu alcançar projeção e
continuidade no futuro.
Uma coisa, porém, é certa: Aquilino
- que integra o património da Academia das Ciências - ao evocar Lisboa
chamou – a «cidade de Ulisses e de Amália». E já neste seculo, por uma
daquelas coincidências que nos surpreendem e quando menos se espera, Amália e Aquilino, sem nunca terem falado um com o outro, ficaram na mesma
sala do Panteão Nacional.
Amália, sem sucessores – por António Valdemar [Jornalista e
investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências], Correio do Ribatejo, 23 de Outubro
2020, p. 10 | [resumo da comunicação
proferida, no dia 13 de Outubro, no salão nobre da Academia das Ciências, na
sessão comemorativa do Centenário de Amália, durante a qual participaram outros
oradores] – com sublinhados nossos.
J.M.M.