De
tempos a tempos o maçonismo é pretexto de várias interrogações, condenações e
polémicas, quase sempre ligadas à “grande ignorância que existe” [cf. José A.
Ferrer Benimeli] sobre a sua realidade histórico-filosófica, a sua configuração
iniciática ou a actividade associativa (social e política) que exerce. As inúmeras
incompreensões, perseguições e proibições [sobre este assunto consultar a obra “Les
Archives Secrètes du Vatican et de la franc-maçonnerie”, de J. A. Ferrer
Benimeli, 1989 – com tradução em português, via Editora Madras, S. Paulo, 2010,
p. 832] em que é fértil a história do antimaçonismo, assim o confirmam.
► Maçonaria e Registo de Interesses
“A positividade da exposição da nudez sem véus é pornográfica”;
“O projeto heroico da transparência – de rasgar todos os véus, de
tudo expor à luz, de expulsar toda a obscuridade – conduz à violência” [Byung-Chul
Han, A Sociedade da
Transparência]
A Maçonaria é uma ordem iniciática
que visa o aperfeiçoamento da humanidade através da elevação moral e espiritual
do indivíduo. Na medida em que é iniciática a maçonaria propõe-se, através do
rito (articulação de gestos, movimentos, símbolos e invocações), a
transformação existencial do indivíduo, transubstanciando-o. Algumas vezes
consegue-o. Demasiadas vezes não.
Mas a “transubstanciação” existencial
não é o único fito maçónico. A maçonaria também visa aperfeiçoar a Humanidade,
porque o homem não é uma ilha e porque de pouco valeria salvar-se um só se não
se pudessem salvar todos os seres humanos. Neste sentido, a maçonaria vive num duplo
ethos ou espaço de ação e inspiração: por um lado visa a
transformação individual (e não simplesmente psicológica), por outro visa a
transformação social, porque o corpo e alma não são coisas diferentes mas duas
modulações, ou variações, da mesma substância do humano. Mas, quer num caso
quer noutro, o que se visa é uma ambição soteriológica, i.e., salvífica, do eu
individual, da experiência do que é ser humano e da humanidade no seu conjunto.
Mas a maçonaria não é uma Igreja ou um partido. Não é uma Igreja porque não tem
uma doutrina dogmática, sacramentos ou um líder espiritual, e não é um partido
porque não quer governar nem tem um programa político, embora tenha e tematize
princípios meta-políticos de justiça e ética universais.
Por sua vez, a maçonaria usa o rito
como método de acção. Mas a ação ritual maçónica é secreta. No entanto, este
secretismo, “o segredo maçónico”, não constitui um instrumento de controlo
sociológico ou organizacional, externo ou interno, muito menos um segredo
material concreto. O segredo maçónico tem a ver com a natureza da própria
experiência ritual, que exige pudor face ao olhar do não iniciado e
concentração em si mesmo e na sua experiência ritual concreta, evitando, entre
outras coisas, o desejo pornográfico e totalitário de absoluta transparência.
Para a maçonaria o que é secreto é o que não pode ser reduzido a outra dimensão
ou dimensões que não a sua dimensão originária, no caso a dimensão ritual
simbólica. Ser secreto quer dizer, na experiência ritual maçónica, ser irredutível
a outra coisa, ser esotérico, i.e., ser interior, ter origem e fazer caminho
pelo lado de dentro da experiência humana. Por isso se diz que o segredo
maçónico é inviolável ou intransmissível: porque dizendo respeito à experiencia
particular de cada maçon não pode ser reduzido à linguagem usada pela vulgar
comunicação humana (ou a outras categorizações totalizadoras e potencialmente
totalitárias), não podendo, por natureza, ser violado.
Nada de especial, portanto. O segredo
maçónico é, pois, da mesma natureza que o amor ou amizade humanas (dois
irredutíveis fundamentais da experiência humana) e só constitui uma ameaça para
aqueles que acham que toda a realidade deve ser controlada, reduzida,
visibilizada e vigiada, incluindo a realidade mais íntima da experiência
religiosa transformativa. O segredo maçónico é, então, condição essencial de
liberdade, própria e alheia, já que se pressupõe que é num reduto último de
inviolabilidade pessoal que reside o sanctum
sanctorum da liberdade em geral. É por causa
desta inviolabilidade que, desde sempre, as tiranias perseguiram a maçonaria e
os maçons e a experiência religiosa e popular exotéricas (i.e., procedendo de
uma origem ou audição externas) sempre tiveram desconfiança da maçonaria e dos
seus processos de recolhimento.
A maçonaria existe, pois, num ethos eminentemente religioso, porque transformativo e soteriológico. Mas
também existe e se firma num ethos político. Esta sua dupla dimensão constitutiva tem
a ver, por um lado, com a sua origem histórica, mas, também, com a sua natureza
ontológica, que recusa os dualismos cosmológico e antropológico. A maçonaria
vive, por isso, num mundo de fronteira entre este e o outro mundo, entre o
mundo celeste e o mundo terrestre, e é essa condição de fronteira que, por um
lado, faz dela uma coisa algo estranha e, ao mesmo tempo, antiga, em que se
valoriza a ideia e a prática do “estranhamento” cosmológico, a mais lídima
forma, ou experiência, da liberdade e da recusa de todo o reducionismo.
Tudo isto a propósito de recentes
polémicas animadas, em particular, pela deputada do PSD Teresa Leal Coelho,
propondo que os deputados e os agentes políticos eleitos “sejam obrigados a
declarar publicamente se têm ou não filiações secretas”, mas tendo em vista,
declaradamente, as filiações maçónicas e do Opus Dei. Outras restrições aos
direitos fundamentais deste mesmo tipo já tinham sido introduzidas na Lei
Orgânica n.º 4/2014, de 13 de agosto - Lei-quadro do Sistema de Informações da
República Portuguesa, pela qual os funcionários dos serviços de informações da
República são obrigados a revelar todas as suas filiações societárias, em
particular a “Filiação, participação ou desempenho de quaisquer funções em
quaisquer entidades de natureza associativa”. Também aqui, e mais uma vez, o que
se visa são os maçons e a maçonaria.
No entanto, a Constituição da
República Portuguesa é clara (no seu artigo 41º, nº 3, “Liberdade de
consciência, religião e culto”) a referir que “Ninguém pode ser perguntado por
qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para
recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser
prejudicado por se recusar a responder”. Temos, então, que este artigo, e
aqueles intentos similares referidos acima, são claramente contrários à CRP,
porquanto o registo obrigatório de pertença à maçonaria, ou ao Opus Dei,
constitui uma pergunta e obrigações constringentes quanto a convicções ou
práticas religiosas.
Que esta discussão esteja a ter lugar
no parlamento da República Portuguesa, potenciada por uma deputada do PSD, é
absolutamente surpreendente e perigoso. Surpreendente e perigoso por revelar
profunda ignorância sobre a natureza da maçonaria e outras organizações
iniciáticas ou religiosas e, sobretudo, por revelar tentações totalitárias à
conta de uma ideia desviante de transparência, passando por cima de um
princípio basilar das democracias constitucionais: o princípio da absoluta
liberdade de consciência e de religião, sem constrangimentos diretos ou
indiretos.
O antimaçonismo da deputada do PSD
Teresa Leal Coelho é, como todos os fundamentalismos antiliberais e
antidemocráticos, disforme e ignorante e faz parte de uma longa tradição
antimaçónica (tão longa quanto a própria maçonaria). Quanto a isso, nada de
novo. Já o silêncio de outras pessoas e instituições, mais cultas e mais
responsáveis, auguram o pior para a liberdade dos portugueses. Pelo seu lado, a
maçonaria continuará o seu caminho como via iniciática e espiritual não
dogmática, visando a liberdade e a igualdade acima de todas as coisas, com os
olhos postos na utopia antiga de uma fraternidade universal de homens livres e
de bons costumes".
J.M.M.