LIVRO:
A religião dos livros. Alfarrabistas, livrarias e livreiros;
AUTOR:
Carlos Maria Bobone;
EDIÇÃO:
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022.
“ … Iria
contra a essência do negócio não começar pelos livros. Acontece que os
livreiros, talvez por hábito de prezarem a raridade dos seus canhenhos, poucas
vezes os escrevem. São poucas as memórias de livreiros, os relatos do quotidiano
numa livraria, ou as gabarolices impressas sobre grandes negócios. Mesmo como
matéria de estudo, os livreiros são esquivos. Se há ensaios sobre história do
livro, livros sobre tipografia — a bela «arte negra» — e uma tentativa de preservar
a memória das casas editoriais mais emblemáticas, a verdade é que o livreiro
parece sempre encarnar o parente pobre do livro. Os impressores antigos já
foram estudados por Fernando Guedes e por Artur Anselmo, os modernos têm a
atenção de Pedro Piedade Marques, Paulo da Costa Domingos ou João Luís Lisboa,
mas os livreiros continuam sem Boswell que documente as suas façanhas.
Só entre estes autores citados, há estudos sobre as editoras &etc, Afrodite, Romano Torres, e sobre editores como Serafim Ferreira; houve também uma agência literária que começou uma colecção de livros com entrevistas a editores, que resultou num livro sobre Fernando Guedes, da Verbo, e noutro sobre Carlos da Veiga Ferreira, da Teorema. Sobre livreiros, porém, a matéria é muito mais escassa. Há uns estudos bem documentados mas muito localizados de Luís Farinha Franco, as notas possíveis à volta dos Bertrand e do grupo francês que, no século XVIII, dominou o comércio livreiro em Lisboa, e pouco mais. Também é certo, porém, que os livreiros pouco fazem pela sua causa. Se temos as já referidas memórias do editor Henrique Marques, se tivemos João Hermínio Monteiro, da Assírio e Alvim, a escrever nos jornais, como temos agora Manuel Alberto Valente, onde estão as memórias de livreiros tão emblemáticos como o Ferin, ou de um que fosse dos irmãos Bertrand
Teríamos certamente muito a ganhar com as memórias de Tarcísio Trindade, o fundador da Livraria Campos Trindade, que, de um poeta promissor referido na primeira edição da História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes, se transforma num reputado livreiro, responsável pelo achamento do Tratado de Confissom, primeiro livro impresso em Portugal (cuja venda, aliás, motivou uma história mirabolante, com prisões e muito secretismo à mistura). Ainda hoje se fala com saudade da Livraria Histórica e Ultramarina, de José Maria Costa e Silva (Almarjão), que reunia uma famosa tertúlia aos sábados, e do seu armazém na Travessa da Queimada, gerido com mão de ferro pelo alemão Fritz Berkemeier, e sob cuja alçada o meu pai começou a sua actividade […]
De facto, há livreiros que fazem do negócio quase uma colecção pessoal. Não é preciso chegar ao ponto de Tavares de Carvalho, durante vários anos o grande alfarrabista português, que recebia os clientes em casa, casa essa em que todos os livros estavam à venda, contando que fosse pelo preço que ele queria.
Lourenço Lancastre de Sousa e Sérgio Moreno são também livreiros sem livraria aberta, em que o negócio e a bibliofilia andam de mão dada. Lourenço Lancastre de Sousa coleccionou, durante anos, livros sobre a Arrábida, que acabou por vender em conjunto; pratica, também ele, cuidados de bibliófilo — como identificar até, quando é possível, os encadernadores dos livros que compra, sejam portugueses ou estrangeiros — que fariam inveja a muito coleccionador. Estes livreiros cultivam, normalmente, um perfil mais discreto. São livreiros pessoais, cujo lugar na rede de contactos se conquista, e que escolhem os clientes e os livros com refinado critério. O cliente pode sentir-se um privilegiado por comprar um livro a um destes livreiros, por ser admitido no armazém ou no escritório do seu vendedor. A partir do momento em que recebe uma chamada de um destes livreiros, pode o aspirante a bibliófilo dormir descansado — conseguiu uma reputação de coleccionador de pleno direito …”
[Carlos Maria Bobone, in
A religião dos livros …, pp. 23-25 - sublinhados nossos]
J.M.M.