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Depois veio a noite infame [
19 de Outubro de 1921]
, onde, além dos actores visíveis, dos marinheiros e dos soldados, dos bonifrates que actuaram entre gritos de loucura, entrou outro actor tremendo, do qual não pudemos mais desviar os olhos – e que não devia fazer parte da peça. De tarde, aquele desgraçado [
António Granjo]
via os homens porem-lhe cerco como a um bicho e o seu suor era já de agonia. Via-os aproximarem-se – ouvia-os falar na escada do prédio onde se refugiara
[
António Granjo residia na Rua João Crisóstomo e a sua casa confinava, pelas traseiras, com a morada de
Cunha Leal, na Av. Miguel Bombarda, para onde
Granjo procurou abrigo, avisado do perigo que corria por um vizinho e seu Irmão da maçonaria,
Bernardino Simões, comerciante – consultar,
Rocha Martins, “
Vermelhos, Brancos e Azuis”,
vol.2].
Veio depois a noite e eu tenho a impressão nítida de que a mesma figura de ódio – o mesmo fantasma para o qual todos concorremos – passou nas ruas e apagou todos os candeeiros. Os seres medíocres desapareceram na treva - os bonifrates desapareceram: só ficaram bonecos monstruosos, com aspectos imprevistos de loucura e de sonho, que na camioneta fantasma [nome como foi conhecida a camioneta, que transportava os assassinos (10?) que levaram a cabo os crimes perpetuados nesse dia. Entre eles estavam,
Benjamim Pereira,
Manuel José Carlos e
Abel Olímpio (o
Dente de Ouro). Pelo que é referido por
Berta Maia, viúva de
Carlos da Maia (um dos assassinados) a camioneta foi fornecida pelo tenente
Mergulhão]
procuravam as suas vítimas. Noite de chumbo. No quarto andar da Rua da Madalena, a sombra esmagava-me o coração, reduzindo-o a cisco. Na taberna em frente a mesma música reles de todas as noites não cessava de tocar num realejo a que um galego dava corda ... E a noite prolonga-se, sórdida e satânica.
A essa hora o desgraçado consumia a sua agonia no Arsenal, entre rugidos das bestas desencadeadas. – Sangrem-no como a um porco!
Outro [
Carlos da Maia]
é arrancado dos braços da mulher, que grita inutilmente, cheia de dor, pedindo piedade para o marido e o filho que tem nos braços. E a camioneta, onde os bonecos se agitam, percorre as ruas negras, alucinante e trágica. – Almirante [
Machado dos Santos]
, é a sua hora: vai ser fuzilado! – E a voz daquele ingénuo, que quis ser político, jornalista e revolucionário e vai ser, de encontro a uma parede, um farrapo humano a escorrer sangue por todas as feridas, responde: Veja – diz ele para o bandido que lhe fala – que as minhas pulsações não aumentaram. (...)
Se todos nos quiséssemos ouvir, encontraríamos, talvez, dentro da nossa alma, a explicação da noite infame e compreenderíamos por que ela foi possível. Ódio, terror e o desconhecido. Andaram também metidos nisso políticos e, ao que se diz, até um padre
[referência, presume-se, ao
Padre Lima (natural de
Estivares ou melhor, Estevais da Vilariça ), e que juntamente com
Fernando de Sousa, ambos do jornal
A Voz, mais o tenente
Mergulhão,
Gastão de Matos,
Luiz Moutinho de Carvalho,
Carlos Pereira e o
Conde de Tarouca, foram considerados, na época, como os principais mandantes dos assassinatos em cadeia –
vidé,
Berta Maia,
As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio ‘O Dente de Ouro’,
Lisboa, 1929]
– nas ruas são as personagens insignificantes que entram em todas as tragédias. Quem os mandou matar? – porque estas coisas nunca são espontâneas. (...)”
Raul Proença,
in Memórias, vol. III
J.M.M.