Mário
Soares, “Escritos Políticos”, Edição do Autor [Depositária Editorial Inquérito,
Travessa da Queimada, 23, 1º Dto, Lisboa], Tip. do Jornal do Fundão, Lisboa,
1969
«Uma das palavras que melhor caracteriza a Censura portuguesa é "inconveniente".
A palavra não implica um julgamento de valor sobre o conteúdo de um livro ou de
um artigo, apenas que pode pôr em causa aquilo que é o interesse da ordem
estabelecida.
"Inconveniente" é perturbador e, se há coisa que a Censura
toma como sua missão, é impedir qualquer perturbação, seja política, seja
social, seja cultural, seja nos costumes. Acresce que há um significado conexo,
o de mal-educado, malcriado. "Não sejas inconveniente" diziam as mães
para os filhos no passado longínquo em que a linguagem não era gutural como é
agora. É esta a classificação que a Censura dá aos Escritos Políticos de Mário
Soares, uma antologia de textos de circunstância escritos ao sabor das
actividades oposicionistas do autor, publicado em 1969.
A PIDE não se limita a mandar o livro para que a Censura o proíba
- coisa que faz quase sempre quando lhe é solicitado pela PIDE, o que nem
sempre acontece quando o recebe do SNI ou de outras instituições da ditadura -
mas, como anota o autor do despacho, faz uma admoestação implícita aos censores
por terem deixado passar alguns destes textos "quando apresentados para jornais
diários". A PIDE mostra o desconforto com a publicação, o censor dos
livros puxa as orelhas aos censores da imprensa. O que é que explica ser esta
obra "um puro ataque político mal intencionado e inoportuníssimo", em
plena primavera marcelista?
O despacho da Censura explica-o em termos bem mais calmos do que
rebarbativos, "inoportuníssimo": trata-se de "um ataque ao
Governo e às bases orgânico-políticas do actual sistema político-social".
De facto, é disso mesmo que se trata. Mário Soares, então uma personagem em
ascensão na oposição moderada, onde ainda compete com um conjunto de velhos
dirigentes vindos da República, ou do MUD, ou do Directório, está a deslocar-se
com os seus amigos progressivamente de um republicanismo oposicionista para um
socialismo que nem sempre é moderado. Fá-lo em competição com o PCP, com quem,
nesse ano eleitoral de 1969, demasiado importante porque eram as primeiras eleições
sem Salazar, rompe a unidade, apresentando-se a CEUD e a CDE em listas separadas.
Os escritos de Mário Soares são um retrato do que era a actividade
da oposição não comunista, muito limitada, operando muitas vezes na
semilegalidade, ou na legalidade permitida e vigiada, ao sabor de jantares,
pequenos comícios, abaixo-assinados, e artigos no República. Há textos
biográficos e políticos sobre os vultos da velha oposição republicana ou da
República, como é o caso de Mário de Azevedo Gomes, de Fernão Boto Machado ou
dos revolucionários do 31 de Janeiro; há teses enviadas às reuniões republicanas
e oposicionistas, entrevistas e intervenções em colóquios censurados ou proibidos,
e um ocasional artigo numa publicação estrangeira.
No seu conjunto, revelam o pensamento de Soares tal como ele se
tinha estabilizado depois da sua saída do PCP no início dos anos cinquenta, ainda
muito preso ao peso do republicanismo histórico, mas já apresentando-se como a sua
ala esquerda socializante, organizada na ASP e depois no PS. Essa tendência
socializante e mesmo nalguns casos esquerdizante veio a acentuar-se nos anos
seguintes, influenciado ele também pelo Maio de 1968, pelas lutas estudantis e
pela sua experiência mais tardia no exílio europeu onde pôde contactar pela
primeira vez com outros socialistas europeus.
Esta deriva para a esquerda faz o caminho entre a ruptura
eleitoral com os comunistas em 1969, até aos acordos frentistas de 1973 entre o
PS e o PCP. Mas não é esse ainda o tempo dos Escritos Políticos. À data da
publicação deste livro, como se pode ver nos seus anexos, Mário Soares
enfileira numa atitude atentista e, por isso mesmo, benévola, em relação à
liberalização caetanista, atitude essa duramente criticada pelo PCP como
"ilusória" e perigosa. Num dos abaixo-assinados transcritos no livro,
os signatários apresentam-se como "socialistas democráticos" e não como
"socialistas totalitários", dispostos a ajudarem Marcelo Caetano a
criar o "clima novo" que este anunciava. Conhecendo-se como se
conhece, após a leitura de milhares de despachos, a cabeça dos censores é este abraço
da oposição moderada a Marcelo Caetano que era "mal intencionado e inoportuníssimo".
Proíba-se pois o livro»
FOTO
2:“Mário Soares em campanha pela CEUD, Outubro 1969” – via Casa Comum
[José
Pacheco Pereira – in jornal PÚBLICO (02/07/2014), sublinhados nossos]
J.M.M.