Mostrar mensagens com a etiqueta Xavier Dolan. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Xavier Dolan. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, novembro 01, 2016

Xavier Dolan no papel de Xavier Dolan

Marion Cotillard + Xavier Dolan + Nathalie Baye
Dir-se-ia que Xavier Dolan se perdeu, momentaneamente, no seu próprio estatuto de vedeta "juvenil" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Outubro), com o título 'Xavier Dolan enredado na sua “imagem de marca"'.

Consagrado com o Grande Prémio do Júri, em Cannes, aí está Tão Só o Fim do Mundo, de Xavier Dolan, candidato pelo Canadá a uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Desta vez, o jovem realizador canadiano (n. 1989) não participa como intérprete. Para adaptar a célebre peça homónima do francês Jean-Luc Lagarce (1957-1995), sobre um escritor que decide dar conta à família do facto de sofrer de uma doença terminal, Dolan contou com um elenco de luxo que inclui Marion Cotillard, Vincent Cassel, Léa Seydoux, Nathalie Baye e Gaspard Ulliel (no papel do escritor).
É bem verdade que a energia do trabalho de Dolan tem passado, e muito, por uma elaborada relação com os actores. Lembremos os magníficos exemplos de Laurence para Sempre (2012), porventura a melhor composição de toda a carreira de Melvil Poupaud, ou Tom na Quinta (2013), em que o próprio Dolan interpreta as convulsões de uma personagem enredada no labirinto da sua identidade sexual, num exercício de invulgar exposição e comoção. Infelizmente, no caso de Tão Só o Fim do Mundo, a ostentação dos actores tende a sobrepor-se ao próprio drama — como se estivéssemos a assistir a uma colagem de “experimentações”, porventura arriscadas, mas que, em última instância, ignoram a intensidade humana do que está em jogo.
Na sua exuberância auto-complacente, o filme surge numa curiosa conjuntura que vale a pena compreender para além dos dados específicos do mercado cinematográfico. Assim, soubemos recentemente que Dolan se “tornou um realizador” para se poder “exprimir como actor”. Tal confissão está disponível no site da marca Louis Vuitton e acompanha a apresentação da campanha da linha de produtos “Ombré”, protagonizada pelo próprio Dolan.
Digamos, para simplificar, que o jovem e talentoso canadiano tem muita sorte: por muito menos, outras personalidades mediáticas já foram achincalhadas pelo jornalismo mais moralista com o rótulo de perigosos “aliados” do mundo dos negócios e da moda. Porque é que isso não está a acontecer com Dolan? Por uma razão muito linear que, aliás, a citada campanha ilustra com evidente perspicácia e elegância: nos seus radiosos 27 anos, Dolan encaixa perfeitamente no cliché do “jovem rebelde” reverenciado pela retórica dominante dos meios de comunicação.
Dir-se-ia que o talentoso actor/cineasta que fez Amores Imaginários (2010), celebrando a nostalgia do melodrama e, por isso mesmo, uma especial relação criativa com a música, se enredou na sua própria “imagem de marca”. Nesta perspectiva, Tão Só o Fim do Mundo perde em intensidade emocional aquilo que ganha (?) como ilustração pública dessa imagem. Esperemos que o próximo filme envolva algum tipo de auto-crítica: chamar-se-á The Death and Life of John F. Donovan, está agendado para 2017 e, como sempre, apresenta um elenco que apetece descobrir: Jessica Chastain, Natalie Portman, Michael Gambon, etc.

sábado, dezembro 27, 2014

O psicodrama segundo Xavier Dolan (2/2)

Chegou às salas Mommy, o filme que valeu a Xavier Dolan o Prémio do Júri de Cannes: um título para (re)descobrirmos um jovem e singular criador — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro), com o título 'Os corpos e o seu realismo'.

[ 1 ]

Quando nos sentimos tocados por um filme, gostamos de partilhar com os outros aquilo que, precisamente, nele mobilizou as nossas emoções e pensamentos. Mas, por vezes, ficamos também limitados por um sentimento de prudência, porventura de pudor. Até onde “revelar” aquilo que, afinal, os outros têm o direito de descobrir no primeiro grau, sem qualquer informação prévia? Digamos que é um pouco como quando revemos A Leste do Paraíso (1955), de Elia Kazan, e deparamos com o genial aproveitamento da largura do CinemaScope, apetecendo sublinhar: reparem como Kazan filma James Dean, tirando o máximo partido de um formato que, na altura, era uma novidade.
Assim, gostaria de falar ao leitor do modo como Xavier Dolan concebe, não apenas as imagens do seu filme Mamã mas também, precisamente, o modo como trata o respectivo formato... Ao mesmo tempo, sinto que se for demasiado explícito, estarei a roubar-lhe a possibilidade de ver/sentir a proposta de Dolan, não em função da tal informação prévia, mas apenas através do filme.
Direi, então, que não se trata de uma questão banalmente formal, muito menos formalista. Nada disso: no cinema de Dolan — e, em particular, neste belíssimo Mamã — todos os elementos figurativos, cénicos ou simbólicos são importantes para a relação que ele estabelece com as personagens e, por extensão, com o labor específico dos actores. Neste inusitado triângulo amistoso — a mãe, o filho e a vizinha —, tudo acontece à flor da pele, revalorizando um realismo dos corpos que, convenhamos, não é a lei dominante no cinema mais poderoso (povoado de “super-heróis” com corpos mais ou menos mecanizados) nem na televisão mais corrente (esgotada em formatos de patético determinismo psicológico). Dolan é um paciente e subtil agrimensor dos afectos.

quinta-feira, dezembro 25, 2014

O psicodrama segundo Xavier Dolan (1/2)

Anne Dorval
Chegou às salas Mommy, o filme que valeu a Xavier Dolan o Prémio do Júri de Cannes: um título para (re)descobrirmos um jovem e singular criador — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro), com o título 'Xavier Dolan reinventa as leis do melodrama'.

Perante o impacto da obra de Xavier Dolan, cineasta canadiano nascido em Montreal a 20 de Março de 1989, apetece reescrever um velho adágio sobre os méritos profissionais da antiguidade, proclamando agora: a juventude não é um posto... O mínimo que se pode dizer de Dolan é que ninguém ficará indiferente ao facto de, apenas com 25 anos, ele ter realizado um filme como Mamã, colocando em cena de forma tão dramática, e também tão irónica, os eternos conflitos de gerações.
O filme valeu mesmo a Dolan um dos prémios mais saborosos de uma carreira curta, mas já pontuada por diversas distinções. Assim, no passado mês de Maio, no Festival de Cannes, Mamã recebeu o Prémio do Júri, ex-aequo com o mais recente trabalho de Jean-Luc Godard, Adeus à Linguagem (que chegará às salas portuguesas a 8 de Janeiro). Presidido pela cineasta neozelandesa Jane Campion, o júri aproximava, assim, num mesmo gesto de reconhecimento e consagração, o mais jovem e o mais veterano dos autores presentes no certame (Godard completou 84 anos no dia 3 de Dezembro).
Aliás, importa esclarecer que não se estava perante a revelação de um novo cineasta. Nada disso: Dolan assinou a sua primeira longa-metragem, Como Matei a Minha Mãe, em 2009, portanto com 20 anos. Depois disso, já realizou mais três títulos: Amores Imaginários (2010), Laurence para Sempre (2012) e Tom na Quinta (2013), em todas assumindo também as responsabilidades de escrita de argumento, em três deles interpretando também uma das personagens principais (a excepção é Laurence para Sempre, protagonizado por Melvil Poupaud).
No caso de Mamã, o nome de Dolan também não aparece na ficha dos actores. É Antoine Olivier Pilon, de 17 anos (tinha 16 durante a rodagem), que surge na linha da frente, assumindo a personagem quase burlesca, mas marcada por muitas componentes dramáticas, de Steve Després, um rapaz com evidentes problemas de integração familiar e social, não poucas vezes derivando para comportamentos violentos. No núcleo do filme está, precisamente, a relação com a mãe, Diane Després (Anne Dorval), viúva, com crescentes dificuldades para lidar com o filho, ao mesmo tempo que tenta manter o equilíbrio financeiro do lar.
Estão reunidas, assim, as componentes necessárias (e mais que suficientes...) para um psicodrama com tanto de intimista como de perturbante. E talvez se possa dizer que, até certo ponto, o filme é isso mesmo, encenando as atribulações de uma paisagem afectiva marcada por muitos momentos de convulsão e, aqui e ali, breves fogachos de apaziguamento e intensa ternura. De qualquer modo, e de acordo com uma lógica muito enraizada nas narrativas de Dolan, tudo pode mudar com a emergência de uma personagem inesperada. Neste caso, é Kyla (Suzanne Clément), a vizinha de Diane e Steve, que surge como um insólito e paradoxal “anjo da guarda”, de alguma maneira levando mãe e filho a reavaliar os seus modos de relação.
Dolan faz retratos do mundo dos afectos em que, no limite, todos são conduzidos a essa reavaliação do seu lugar familiar e simbólico, social ou sexual. No filme anterior, Tom na Quinta, interpretava o Tom do título que, ao comparecer no funeral de um outro jovem, compreendia que toda a família ignorava a sua relação amorosa com o defunto. Agora, em Mamã, Dolan “força” ainda mais os limites tradicionais do melodrama através de uma história marcada por componentes psicológicas muito particulares, mas que nos confronta com uma interrogação muito mais abrangente, por certo ligada ao “progresso” dos nossos usos e costumes. A saber: que é feito dos valores do espaço familiar tradicional? Ou ainda: na nossas sociedades de aceleração de contactos e relações, como comunicam (ou não) as pessoas de diferentes gerações?
E se o melodrama pressupõe uma aliança entre drama e música, então importa acrescentar que Dolan é também um criador que revaloriza as componentes musicais da narrativa cinematográfica, em particular o uso de canções muito populares. Em Os Amantes Imaginários recuperava, por exemplo, o lendário Bang Bang, interpretado por Dalida. Agora, na banda sonora de Mamã, escutamos, entre outros, Dido (White Flag), Oasis (Wonderwall) e Lana Del Rey (Born to Die).

terça-feira, julho 22, 2014

Três meses, três filmes


Continuando a fazer um balanço do segundo trimestre de 2014, hoje passamos pelos ecrãs de cinema. Entre os filmes que vi em sala merecem claro destaque Only Lovers Left Alive, espantoso olhar sobre um casal de outsiders (que escapa em tudo aos clichés dos "filmes de vampiros") por Jim Jarmusch (e belíssimo curto elenco onde se destaca Tilda Swinton) e para Tom na Quinta, filme que mostra como, depois do monumental Lawrence Anyways, Xavier Dolan usou pouco para fazer muito naquela que é a sua melhor longa-metragem já mostrada entre nós. Entre os festivais de cinema merece clara chamada de atenção o espantoso Stand Clear of The Closing Doors, de Sam Fleischner, a história de um rapaz autista perdido no metro de Nova Iorque que foi exibida na edição deste ano do IndieLisboa.

Entre o melhor cinema visto em sala entre abril e junho de 2014 vale a pena apontar ainda títulos como Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson, O Acto de Matar de Joshua Oppenheimer e Mistaken For Strangers, de Tom Beringer. Da colheita do IndieLisboa há que não esquecer ainda Mouton, de Gilles Deroo e Marianne Pistone.

terça-feira, junho 24, 2014

Para acabar com as dúvidas
sobre o talento de Xavier Dolan

Este texto surgiu na edição de 30 de junho do DN com o título ‘A prova de maturidade de um jovem talento do nosso tempo’.

Poucos cineastas se podem gabar de, com apenas 25 anos, ter visto quatro das suas cinco primeiras longas-metragens a ser estreadas em Cannes, a quinta tendo competido em Veneza (e de lá saindo com o Prémio Fipresci). Ele chama-se Xavier Dolan. É canadiano, nasceu em 1989 e acaba de ver estreado nas salas portuguesas o filme Tom na Quinta (poucas semanas depois de Cannes ter dado o Prémio do Júri a Mommy, que assinou depois deste que agora está entre nós).

Ao contrário do anterior Laurence Anyways (reflexão de grande fôlego sobre questões de identidade de género com brilhante interpretação de Melvil Poupaud e nomes como os Depeche Mode, Duran Duran ou Visage na banda sonora), em Tom na Quinta Xavier Dolan volta a ser ator protagonista de um filme por si realizado. Foi-o logo em J’ai Tué Ma Mère (2009), pungente retrato do relacionamento conflituoso de um filho com uma mãe. E repetiu o sistema em Amores Imaginários (2010), o primeiro dos seus filmes a ter estreia entre nós.

Com antestreia nacional na noite de encerramento da edição 2014 do IndieLisboa, Tom na Quinta representa uma clara demanda de outros caminhos para o cinema de Dolan. Depois de abordar três situações de amor impossível, desta vez mostra como ele floresceu, apenas a morte tendo depois colocado um inesperado ponto final na narrativa que serve de ponto de partida para a ação. Tom (interpretado por Dolan) é um jovem urbano que chega à quinta onde vivem a mãe e irmão de Guillaume, o namorado, que morreu. Chega para o funeral. E repara que ninguém sabe ali sobre a sua vida e a de Guillaume. E vê-se obrigado a subjugar-se às intimidações do irmão, figura violenta e de personalidade instável que guarda segredos de um passado que a pequena comunidade rural não esqueceu.

Baseado na peça de teatro homónima de Michel Marc Bouchard, Tom na Quinta é, apesar desse berço num texto, o menos verborreico dos filmes de Xavier Dolan, os choques e tensões que antes explorava sobretudo através dos diálogos cedendo agora vez a um clima de violência latente, por vezes até mais calada que falada e que o ritmo tranquilo das imagens ainda mais vinca por contraste. Inicialmente voltado para deixar os silêncios bem claros na composição sonora do filme, Dolan optou contudo por encomendar uma banda sonora original (foi a primeira vez que o fez), cabendo a tarefa a Gabriel Yared, que criou momentos de placidez pastoral para orquestra que sublinham outra das marcas de novidade no cinema do realizador canadiano (que tinha usado nomes como os Crystal Castles, Vive La Fête, The Knife ou Fever Ray em filmes anteriores). Apenas nos créditos finais a pop (que era até aqui uma presença inevitável em Dolan) ganha visibilidade, ao som de Going to a Town de Rufus Wainwright.

Sem os desejos de citação que surgiam em Amores Imaginários nem a ambição colossal (mas bem gerida) de Lawrence Anyways, Tom na Quinta pode representar o arranque seguro de uma nova etapa no cinema de Dolan. Menos ostensivo, mais firme, Dolan ganha aqui outra dimensão.

Podem ver aqui o trailer do filme.
E aqui podem recordar o teledisco de Going To a Town, de Rufus Wainwright.

sábado, maio 24, 2014

Cannes 2014: escrita

[Ferrara]  [mitologias]  [Nicole]  [Eden]  [rostos]  [ecrãs]  [Inverno]  [Marcello]  [personagens]  [livros]  [país]  [Cronenberg]  [star]  [família]  [Marion]  [Godard / Roxy]  [reflexos]  [pensar]  [Godard / OH]  [maternal]  [Godard / Bonnard]

De tantos ecrãs, de tanta redundância visual, deixámos que a física dos corpos se confundisse com a ambivalência material das imagens. Neste caso, é Xavier Dolan, ou melhor, a sua fotografia que parece existir com o mesmo grau de pertinência dos jornalistas no final de uma sessão matinal na sala Lumière — tudo é, ou pode ser, holograma. E se convocarmos as delícias macabras do photoshop, suprimindo o nome, compreendemos que, quand même, é a escrita que nos redime dos nosso pecados visuais.

Cannes 2014: maternal

[Ferrara]  [mitologias]  [Nicole]  [Eden]  [rostos]  [ecrãs]  [Inverno]  [Marcello]  [personagens]  [livros]  [país]  [Cronenberg]  [star]  [família]  [Marion]  [Godard / Roxy]  [reflexos]  [pensar]  [Godard / OH

Em mais de metade do comovente Mommy, Xavier Dolan não utiliza as zonas laterais do formato panorâmico, remetendo a imagem para um quadrado central, em claustrofóbico equilíbrio. Tendo em conta que a mãe é a matriz central do filme (porventura de todo o universo cinematográfico de Dolan), hesitamos entre dizer que, assim, entramos no espaço de uma incestuosa angústia ou na segurança utópica de um casulo onde o luto pela figura do pai há muito foi concluído. Daí o singular mistério de Anne Dorval, no papel da mãe — carnal e abstracta, resiste à infinita repetição do "diz-me que me amas". 

segunda-feira, março 04, 2013

O melodrama segundo Xavier Dolan

Xavier Dolan é um caso invulgar de um muito jovem cineasta (24 anos a 20 de Março) que se distingue já por um universo tão denso quanto fascinante; Laurence para Sempre, a sua terceira longa-metragem, chegou às salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Março), com o título 'A revolta branda do melodrama'.

Em Laurence para Sempre, quando Laurence (Melvil Poupaud) diz a Frédérique (Suzanne Clément) que quer viver como uma mulher, ela reage com a perplexidade de quem esperava a verdade do seu companheiro: “Por que não me disseste que és homossexual?”. O filme de Xavier Dolan é sobre o carácter compulsivo, porventura inevitável, de tal pergunta, mas também sobre a sua dramática insuficiência. Porquê? Laurence não está a revelar uma descoberta íntima (resultante de uma qualquer “introspecção”) nem a propor um discurso de intervenção social (para “sair do armário”). Nada disso. Laurence quer apenas ser fiel à sua identidade.
Não há nada mais melodramático do que tal projecto. Porquê? Porque, de Douglas Sirk a Rainer Werner Fassbinder (para apenas lembrarmos autores que Dolan cita de modo muito directo), o melodrama nunca foi a visão “adocicada” do amor que o senso comum lhe atribui (a ponto de haver quem considere que dizer de um filme que é “muito melodramático” constitui um automático juízo negativo). A visão melodramática nasce da colisão entre as convulsões da intimidade e a ordem familiar ou social que as enquadra. O herói melodramático é aquele que protagoniza uma revolta branda. Porquê? Sabendo ele que nada se pode equivaler à sua experiência, sabe também que não é sua vocação transformar-se em norma seja do que for, ou para quem for.
Daí a dor imensa da história de Laurence e Frédérique. E a beleza que essa dor inscreve nos rostos de tão admiráveis actores. Eles vivem, afinal, até às últimas consequências, o desnudamento que o amor implica e desencadeia. No limite mais estranho de tão estranho e fascinante filme, Dolan sugere que esta é uma história exterior à própria identidade sexual dos protagonistas. E porque não?

segunda-feira, novembro 12, 2012

Xavier... anyways

Somos um pouco aquilo que vemos, ouvimos e lemos. E o que fazemos traduz por isso aqueles que admiramos, mas também a forma como os integramos em nós, o que deles assimilamos e o modo como os reinventamos. De geração espontânea, convenhamos, o mundo tem pouco, muito pouco... Xavier Dolan é por isso, e naturalmente, espelho dos modelos e das referencias que o entusiasmam. Nada de mal nisso, antes pelo contrário... Depois de um surpreendente J’ai Tué Ma Mère (2009) sobretudo autobiográfico e de uns falhados Amantes Imaginários (2010) talvez demasiado próximos da soma Godard + Kar Wai + Almodóvar que então juntava, o novo Laurence Anyways, que ontem teve antestreia nacional ao passar na secção competitiva do LEFF, representa não o seu grito do Ipiranga face às suas referências (porque não mostra vontade em romper com aqueles que o inspiram), mas o momento em que o mesmo “eu” que dominava as personagens e clima do filme de estreia aprende a dominar as citações e figuras que quer levar ao seu cinema.

Com dimensões de alguma ambição épica (são 169 minutos de filme) Laurence Anyways em nada rompe com o que Dolan já nos mostrou. Barroco nas formas, ocasionalmente histriónico nos diálogos e com alma de grande teledisco, o filme acompanha retalhos da vida de um professor que vive um dia a dia arrumado. Trabalho, uma relação estável... Mas que desde sempre sentiu que nascera com o corpo errado. O processo de transição, a forma como a mulher com que vive, a família e colegas reagem evoluem entre saltos no tempo, porém sob uma condução narrativa que partilha um permanente diálogo com uma demanda de sons e imagens que faz afinal do filme um corpo que se afirma essencialmente como uma experiência estética (o que não significa, note-se, um abafar do tema, antes juntando esse texto ao contexto, um diluindo-se no outro).

Se a personalidade compósita que é expressão natural de uma linguagem em formação na era da informação – onde tantos dados circulam e podem ser assimilados – tem aqui a sua mais evidente expressão de um “eu” ainda em construção, as citações continuam a morar sem receio no cinema de Xavier Dolan. Das folhas que caem do céu como no Written In the Wind de Douglas Sirk ao desfile de rostos e poses como na versão do teledisco de Fade To Grey dos Visage que está disponível no DVD antológico da banda, Laurence Anyways herda elementos de uma genética que, afinal, é o DNA que constrói este olhar. Junta-se ainda a música de uns Fever Ray, Depeche Mode, Tindersticks, Kim Carnes, Beethoven ou Duran Duran (dando maior visibilidade que nunca ao brilhante The Chauffeur, a canção do álbum Rio que nunca foi single – e devia ter sido), somam-se olhares que por vezes abandonam a medula da narrativa para observar gentes e lugares ao seu redor e uma espantosa composição do protagonista por Melvil Poupaud, e encontramos em Laurence Anyways uma das melhores supresas deste ano. É que, depois do passo em falso de Amores Imaginários, a ambição evidente deste projeto poderia ter acabado num verdadeiro tropeção. Pelo contrário, e mais que nunca, mostra porque em Xavier Dolan podemos encontrar uma das vozes mais interessantes da sua geração.


Três imagens para “escutar” sons que integram a espantosa banda sonora de Laurence Anyways. Memórias pop que passam pelos Visage, Duran Duran e Depeche Mode.


Lisbon & Estoril Film Festival (dia 3)

Hoje o LEFF apresenta , pelas 19.00, no Cinema Monumental, Holy Motors, o muito esperado novo filme de Leos Carax. Ali perto, no Nimas, pelas 20.00, inicia-se o ciclo dedicado ao cinema de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, hoje com duas sessões entre as quais passam Parabéns, Esta é A Minha Casa, O Pastor, O Fantasma e China China. Pelas 22.00, no Monumental, Winter Go Away, de vários realizadores, é um retrato de espaços de oposição a Putin na Rússia dos nossos dias.