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domingo, agosto 07, 2022

Russell Crowe em tom secundário

Como relançar a sua carreira? Russell Crowe dá o exemplo...

Retratando um campeão do começo do século XIX, O Pugilista é um drama com tanto de esquemático como de determinista: um produto banal do “streaming” que, insolitamente, teve estreia nas salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 julho).

Não há muito a dizer sobre O Pugilista, o novo filme de Russell Crowe, realizado por Daniel Graham. A própria classificação de “filme de Russell Crowe” carece de pertinência, já que o actor nascido na Nova Zelândia assume apenas um papel secundário na trajectória da personagem central, Jem Belcher — referência lendária na história do boxe, campeão de Inglaterra nos primeiros anos do século XIX —, interpretado pelo galês Matt Hookings.
O nome de Hookings surge, aliás, mais duas vezes no genérico: produtor e argumentista. Dizem as notícias que o seu empenho se enraiza no facto de ser filho de David Pearce, campeão que entrou na história do boxe como o “Rocky galês”.
Estamos perante uma narrativa convencional, dividida em três partes esquemáticas e deterministas: conhecemos Belcher na infância, inspirado pelo espírito rebelde e lutador do avô (Crowe); acompanhamos a sua ascensão, num contexto em que o boxe começava a ser reconhecido pelas classes sociais mais poderosas; enfim, temos o previsível e interminável combate final, pontuado por muita hemoglobina e uma agressiva banda sonora, numa desastrada imitação de O Touro Enraivecido (1980), de Martin Scorsese.
Resta o insólito, para não dizer absurdo, da própria estreia de O Pugilista nas salas portuguesas, prolongando uma estranha decomposição de critérios no tratamento de alguns títulos em língua inglesa. Convém lembrar que este é um filme com chancela dos estúdios Amazon. As suas produções destinam-se, em última instância, à respectiva plataforma de “streaming” (Prime Video), raras vezes tendo “direito” a ser vistas nas salas, dispensando até o efeito promocional dos Oscars.
Lembremos o exemplo sintomático desse filme prodigioso que é Being the Ricardos, de Aaron Sorkin: nem mesmo as suas três nomeações em categorias de interpretação — Nicole Kidman (actriz), Javier Bardem (actor) e J. K. Simmons (actor secundário) — fizeram com que, no mercado português, o pudéssemos ver em sala.
Que faz, então, com que um produto drasticamente secundário, artisticamente irrelevante e comercialmente frágil, surja agora nas salas da NOS? Será uma tentativa de prolongar o sucesso que já conseguiu noutros países?… Não exactamente. Se consultarmos uma fonte fiável sobre os dinheiros do cinema (o site Box Office Mojo), verificamos que O Pugilista apenas estreou em dois países (Croácia e Rússia), tendo acumulado uma receita patética: 106.816 dólares (praticamente o mesmo em euros). Entretanto, vai chegando à Prime Video de outros países (por exemplo, no Reino Unido, no passado dia 22).
Enfim, os filmes não são “melhores” nem “piores” por causa das escolhas (legítimas, não é isso que está em causa) de quem os coloca no mercado. Mas face a estas contradições, podemos voltar a perguntar que se faz — ou anda a fazer — para revitalizar o tão fragilizado circuito das salas. E relembrar que, pelo menos para a Amazon, o nome de Nicole Kidman não basta para valorizar comercialmente um filme.

sexta-feira, março 04, 2022

A caminho dos Oscars

Adriana De Bose em West Side Story:
a caminho do Oscar de melhor actriz secundária

Os prémios da Academia de Hollywood serão entregues a 27 de março. Com 12 nomeações, O Poder do Cão lidera a corrida aos Oscars referentes à produção de 2021, num ano em que, curiosamente, vários filmes, a começar por West Side Story, são testemunho de uma invulgar riqueza musical — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 fevereiro), com o título 'Os Oscars têm uma música própria'.

Música, eis a questão. Nas nomeações dos Oscars referentes à produção de 2021 encontramos, por exemplo: Billie Eilish, candidata na categoria de melhor canção, com No Time to Die, tema-título do último filme de James Bond (composto com o irmão, Finneas O’Connell). Ou ainda o baterista da banda The Roots, Questlove: o seu Summer of Soul, dando nova vida aos registos do Harlem Cultural Festival de 1969, surge entre os que podem ganhar a categoria de melhor documentário. Isto sem esquecer que Jonny Greenwood, membro dos Radiohead, volta a integrar os nomeados a melhor banda sonora graças à sua partitura para O Poder do Cão, de Jane Campion.
É caso para dizer que ecoa, aqui, uma música muito própria, de tal modo os prémios da Academia de Hollywood conseguem congregar aquela que é a maior estrela pop da actualidade, Billie Eilish, claro, com memórias do património musical afro-americano e o experimentalismo de Greenwood. Foi ele que compôs também a música de Spencer, de Pablo Larraín, porventura o mais “esquecido” dos grandes filmes de 2021, embora esteja representado por uma nomeação, na categoria de melhor actriz, para a admirável Kristen Stewart.
Enfim, não esqueçamos a renovada presença de Steven Spielberg. O seu West Side Story, com sete nomeações, possui o fulgor de um verdadeiro panfleto — musical, justamente. A recriação da obra de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim — que deu origem ao primeiro West Side Story (1961), assinado por Robert Wise e Jerome Robbins — repõe na linha da frente um género nem sempre muito reconhecido na história moderna dos Oscars. E se é verdade que todas as apostas são sempre um exercício superficial, por vezes fútil, não é menos verdade que podemos supor que na comunidade de Hollywood todos ou quase todos acreditam que Ariana DeBose, a “Anita” escolhida por Spielberg, tem garantida a estatueta de melhor actriz secundária.
Enfim, a musicalidade de tudo isto não esgota a sedutora pluralidade das nomeações, este ano com um luso-canadiano também em destaque: graças ao seu excelente trabalho em Nightmare Alley, de Guillermo Del Todo, Luís Sequeira é um dos candidatos ao Oscar de melhor guarda-roupa. E também não diminui, de modo algum, a proeza de O Poder do Cão, líder na estatística das nomeações: encontramo-lo em nada mais nada menos que 12 categorias, incluindo, além de melhor filme, as de realização, actor (Benedict Cumberbatch), actor secundário (duas vezes: Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee) e actriz secundária (Kirsten Dunst). Uma coisa é certa: nenhum filme tem nomeações que lhe permitam obter o “quinteto dourado” dos Oscars — filme+realização+actor+actriz+ argumento —, essa conjugação mágica que só aconteceu três vezes (a última data de 1992, com a consagração de O Silêncio dos Inocentes).
Aliás, O Poder do Cão pode simbolizar também as evidências e ambivalências do confronto que, de uma maneira ou de outra, passou a marcar todo o território cinematográfico. A saber: a tensão entre o circuito tradicional das salas e as plataformas de “streaming”. Assim, O Poder do Cão é o emblema perfeito da produção multifacetada da Netflix e da sua ambição (muito legítima, entenda-se) de conseguir, finalmente, arrebatar o Oscar de melhor filme.
Até ao dia da cerimónia destes 94ºs prémios das Academia (27 de março), iremos, por certo, compreendendo melhor o modo como estas nomeações reflectem o estado convulsivo, afinal eminentemente criativo, em que vive a produção cinematográfica. Inclusive nas suas curiosas “contradições”. Exemplo? Repare-se no quinteto de nomeadas para o Oscar de melhor actriz: Jessica Chastain (The Eyes of Tammy Faye), Olivia Colman (A Filha Perdida), Penélope Cruz (Mães Paralelas), Nicole Kidman (Being the Ricardos) e a já citada Kristen Stewart. Que têm em comum? Pois bem, nenhuma delas está nos dez títulos que concorrem para melhor filme — não é inédito, mas não acontecia há 16 anos.

sábado, fevereiro 05, 2022

A lição de Lucille Ball

Lucille Ball / Nicole Kidman

A evocação da série televisiva I Love Lucy por Aaron Sorkin é, afinal, um filme raro sobre o trabalho. Com uma admirável Nicole Kidman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 janeiro).

Lucille Ball — americana, nascida em 1911, em Jamestown, Nova Iorque; falecida em 1989, em Los Angeles. Eis um nome que há muito deixou de fazer parte da actualidade do imaginário cinematográfico. Desde logo por uma evidente questão de identidade artística: ainda que com uma considerável carreira cinematográfica, ela foi, sobretudo, um fenómeno televisivo, através da série I Love Lucy (1951-57). Depois porque o actual marketing do cinema perverteu as leis do star system, promovendo, não actores humanos, mas “personagens” mais ou menos digitais, quase sempre ligadas às aventuras de super-heróis.
O prodigioso filme Being the Ricardos, escrito e realizado por Aaron Sorkin (estreado na Prime Video, com o subtítulo português Os Ricardos) revisita memórias de Lucille Ball e do seu marido, nascido em Cuba, Desi Arnaz (1917-1986), quando interpretavam Lucy e Ricky Ricardo, o casal de I Love Lucy. Foi um dos maiores fenómenos de toda a história da televisão nos EUA: em 2021, de acordo com dados da YouGov (empresa britânica de investigação e estatística de mercados), ocupava o sexto lugar no Top 100 das séries mais populares de sempre.
O filme apresenta-se, antes do mais, como uma admirável variação sobre o jogo de complementaridades e conflitos entre “vida vivida” e “vida representada”. Com uma componente dramática muito particular: a acção tem lugar em 1953, acompanhando uma semana de trabalho de um episódio de I Love Lucy, da leitura dos diálogos até ao registo final em estúdio, com cerca de duas centenas de espectadores a assistir.
Tudo acontece numa conjuntura social e política muito específica, com o argumento do filme a concentrar naqueles dias uma série de eventos que, de facto, tiveram lugar ao longo de mais de dois anos (o episódio em causa, Fred and Ethel Fight, foi filmado em fevereiro de 1952, tendo sido emitido no mês seguinte). O que realmente aconteceu em 1953 foi algo que abalou seriamente a imagem pública de Lucille Ball: em setembro desse ano, Walter Winchell, especialista em “escândalos”, utilizou o seu programa de rádio para denunciar o facto de, nos anos 30, ela ter sido filiada no Partido Comunista. Ponto importante de contextualização: o pano de fundo é um período negro da história política dos EUA, quando a “caça às bruxas” conduzida pelo senador Joseph McCarthy levou à marginalização compulsiva de muitos profissionais de Hollywood.
Na verdade, tudo isto está longe de se cingir aos modelos correntes de “reconstituição histórica” (frequentes em séries do streaming). E não apenas por causa da condensação temporal a que obedece o labor ficcional do filme. Não estamos perante a vulgar acumulação de guarda-roupa e adereços de uma determinada época que se combinam com diálogos mais ou menos “informativos” em que as personagens falam como se fossem “encarnações” dramáticas da Wikipedia. Nada disso. Claro que estão lá todas as tensões decorrentes da caça aos “vermelhos” em Hollywood. Mais do que isso: o filme não esconde o facto de Lucille Ball se reconhecer na herança ideológica do seu pai como “defensor dos trabalhadores”. Em todo o caso, o motor dramático do filme, ironicamente ou não, é o trabalho.
O empenho de Lucille Ball em corrigir as marcações e os ritmos de uma determinada cena do episódio que está a ser filmado constitui mesmo um dos elementos decisivos na estrutura narrativa de Being the Ricardos. Ao contrário do cliché (cinematográfico e televisivo) da star que se destaca num determinado universo ficcional, quase ignorando a existência de todos os outros elementos humanos e também o respectivo enquadramento técnico, a Lucille Ball de Aaron Sorkin é uma mulher com uma consciência militante do trabalho — o seu e o dos outros.
Ela define assim os seus trunfos e limites: “A cara, o corpo e a voz são tudo o que tenho para trabalhar.” Mais do que isso: o seu modo de trabalhar envolve sempre o questionamento pedagógico dos efeitos que cada movimento, pausa ou silêncio pode desencadear no espectador. Num confronto com o chefe dos argumentistas da série, que lhe diz que ninguém vai perceber a falha narrativa que Lucille Ball insiste em emendar, ela responde-lhe: “Estás a dizer que o público é estúpido. E não te vão perdoar por isso.”
Para que tudo isto aconteça cinematograficamente, escusado será dizer que o trabalho dos actores é fundamental, a começar pelo facto de Javier Bardem compor um Desi Arnaz que existe para lá do cliché “sociológico” do refugiado cubano que, para o melhor ou para o pior, sempre o acompanhou. Depois, há na representação de Lucille Ball por Nicole Kidman a precisão fascinante de quem vive em ziguezague entre a ligeireza da sua imagem pública e a consciência muito aguda do seu talento e do modo como a sua trajectória cinematográfica foi sendo condicionada por opções dos estúdios — veja-se a cena cruel em que é despedida da RKO pelo respectivo presidente, Charles Koerner, que lhe diz que já têm… Rita Hayworth.
Na primeira cena em privado de Lucille e Desi, ainda antes do seu casamento, podemos pressentir o elemento que, afinal, determina todos os actos de Lucille Ball: ela quer ter um “lar”. Quando o diz, usando a palavra “home”, Desi interpreta-a como se fosse um retiro para idosos. “Vivo numa casa pequena”, diz ela, o que leva Desi a uma dedução meramente quantitativa: “A tua ambição é viver numa casa maior.”. Ela corrige: “A minha ambição é viver num lar.” Confundido, Desi pergunta: “Como os das pessoas mais velhas?”. Não, não se trata de uma instituição, mas de um outro tipo de lar: “Com uma família e hora de jantar.” No plano mitológico, reencontramos, assim, um desejo visceralmente americano. Na discreta comoção de tão cristalinas palavras, nada poderia ser mais universal.

domingo, janeiro 02, 2022

10 filmes de 2021 [3]


Aaron Sorkin

Na convivência cúmplice, por vezes perversa, muitas vezes cúmplice & perversa, de "cinema" e "televisão", o filme de Aaron Sorkin investe — e, no limite, inverte — o cliché que trata a ficção como o "contrário" da vida vivida. Nesta evocação do trabalho de Lucille Ball (Nicole Kidman, um prodígio de composição) na série I Love Lucy (1951-57), é-nos mostrado como qualquer fronteira é pura convenção, iluminando a mais inesperada demanda: estando ou não sob o olhar das câmaras, Lucille Ball ama a verdade. Há uma comovente solidão num filme como Being the Ricardos: trata-se de incrustar no território mediático a exigência heróica de alguma forma de verdade.
 

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1 - West Side Story / 2 - Time

terça-feira, junho 20, 2017

Nicole Kidman, 50 anos

Grace de Mónaco (2014)
No filme Grace de Mónaco (2014), de Olivier Dahan, a memória de Grace Kelly é sujeita a uma evocação sóbria, mas convencional, das tensões entre o recato da intimidade e as obrigações da figura pública. Sendo tal abordagem em parte fundamentada num efeito de "duplicação" figurativa da própria personagem, por que é que, apesar de tudo, nos recordamos das singularidades do olhar e da pose, numa palavra, do trabalho de Nicole Kidman?
A resposta é simples: é isso que define uma actriz (ou um actor). A saber: a capacidade de aceitar as exigências, desde logo de natureza física, da personagem, sem alienar a irredutibilidade do seu labor de composição. Encontramos na sua carreira os mais variados testemunhos dessa dialéctica, por exemplo nos infinitos segredos de Retrato de uma Senhora (1996), de Jane Campion, na solidão primordial de Dogville (2003), de Lars von Trier, ou na pulsão trágica de O Outro Lado do Coração (2010) — no original Rabbit Hole, realização absolutamente extraordinária de John Cameron Mitchell, integra a lamentável lista dos grandes filmes nunca estreados nas salas portuguesas, embora tenha sido lançado em DVD com o título O Outro Lado do Coração [trailer].


Estamos a falar, afinal, da actriz que, em De Olhos Bem Fechados (1999), a obra-prima terminal de Stanley Kubrick, enfrentou o desafio supremo de se diluir nas dores de uma personagem capaz de conjugar o feminino num tempo sagrado em que transparência e negrume se confundem, contradizem e completam. E se é verdade que a sua trajectória envolve alguns percalços pouco motivadores — Horizonte Longínquo (1992), de Ron Howard... quem se lembra do embaraço da sua passagem em Cannes? —, não é menos verdade que ela persiste como imagem da própria ideia de cinema, radiosa e radical.
Nicole Kidman nasceu em Honolulu, Havaí, EUA, no dia 20 de Junho de 1967 — faz hoje 50 anos.
De Olhos Bem Fechados (1999)
>>> Site oficial de Nicole Kidman.

sábado, abril 15, 2017

CANNES - Cinema & televisão

Nicole Kidman
TOP OF THE LAKE
A 70ª edição do Festival de Cannes vai, uma vez mais, diluir as "barreiras" entre cinema e televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Abril), com o título 'Nicole Kidman está em quatro obras da selecção oficial de Cannes'.

O Festival de Cannes continua a ser o grande ponto de encontro das estrelas de todo o mundo? Tendo em conta a programação oficial, anunciada na quinta-feira em Paris, podemos apostar que sim. Assim, a 70ª edição do certame (17-28 Maio) vai contar, por exemplo, com quatro títulos cujo elenco surge liderado pelo nome de Nicole Kidman: The Killing of a Sacred Deer, de Yorgos Lanthimos, e The Beguiled, de Sofia Coppola, estarão na competição; extra-concurso surgirão How to Talk to Girls at Parties, de John Cameron Mitchell, e Top of the Lake: China Girl, de Jane Campion e Ariel Kleiman.
Mas não simplifiquemos. A descrição de Cannes como uma colecção de passagem de modelos na passadeira vermelha é sempre redutora. O festival faz questão em continuar a ser uma montra das experiências da linha da frente do audiovisual. Este ano, tal descrição justifica-se tanto mais quanto as produções de raiz televisiva ganham uma invulgar visibilidade.
Top of the Lake, por exemplo, é a segunda temporada de uma série de grande impacto internacional (a primeira surgiu em 2013). Aliás, importa corrigir a nossa terminologia, sublinhando que a mudança, que começou na edição de 2016, tem a ver com a atenção dada ao chamado “streaming”, isto é, as plataformas audiovisuais da Internet.
A Amazon regressa à corrida à Palma de Ouro com o mais recente trabalho de Todd Haynes, Wonderstruck. A grande novidade é a estreia da Netflix, através de Okja, do sul-coreano Bong Joon-ho, com um elenco internacional que inclui Tilda Swinton e Paul Dano, e The Meyerowitz Stories, uma comédia de Adam Sandler dirigida por Noah Baumbach. Como sublinhou Thierry Frémaux, director do festival, trata-se de dar a ver obras de realizadores que “usam a arte clássica do cinema” para contar histórias, independentemente das “plataformas” em que os seus trabalhos circulam. Isto sem esquecer que a recriação de Twin Peaks, por David Lynch, terá também direito a estreia mundial na Côte d’Azur.

O regresso de Haneke

O júri oficial, presidido pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar, irá apreciar um conjunto de 18 longas-metragens (a organização deixou em aberto a possibilidade de acrescentar mais um ou dois títulos à lista apresentada). Confirmando que há uma espécie de “família” de autores que o certame vai acompanhando, vários nomes estão de regresso a Cannes.
O mais “repetente” será o austríaco Michael Haneke, a competir com Happy End, crónica sobre uma família a viver próximo da zona de Calais onde forma recolhidos muitos refugiados. Com um elenco que inclui Isabelle Huppert, Toby Jones e Jean-Louis Trintignant, Haneke é, este ano, o único que pode ganhar uma terceira Palma de Ouro (depois das vitórias com O Laço Branco e Amor, respectivamente em 2009 e 2012). Entre os nomes que regressam, estão ainda, por exemplo, a escocesa Lynne Ramsay (You Were Never Really Here), o sul-coreano Hong Sang-soo (The Day After), a japonesa Naomi Kawase (Radiance) e o francês François Ozon (L’Amant Double). Outro francês, Arnaud Desplechin, tem honras de abertura oficial, extra-competição, com Les Fantômes d’Ismaël, protagonizado por aquela que é, actualmente, a estrela mais internacional do cinema francês, Marion Cotillard.
Este ano, o festival começa um pouco mais tarde que o habitual, de modo a não se sobrepor às datas das eleições presidenciais francesas (cuja segunda volta está marcada para 7 de Maio). Como disse Pierre Lescure, presidente do Festival de Cannes, politicamente, o certame será precedido por um verdadeiro “filme de suspense”.

>>> Trailer oficial de Cannes/2017.

quarta-feira, março 15, 2017

Califórnia, verdade e mentira

Alexander Skarsgard e Nicole Kidman
Big Little Lies está a passar no TV Séries e é mais um notável exemplo da produção com chancela HBO — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Março), com o título 'Cenários e palavras da Califórnia'.

Mais um prodígio televisivo vindo da HBO: chama-se Big Little Lies (está a passar no TV Séries) e adapta o romance homónimo de Liane Moriarty, publicado entre nós como Pequenas Grandes Mentiras (ed. Asa). Para além da excelência do elenco — liderado por Reese Witherspoon, Nicole Kidman e Shailene Woodley — e do requinte da realização de Jean-Marc Vallée (O Clube de Dallas, Livre), este é um projecto com as marcas do veterano argumentista e produtor David E. Kelley (L.A. Law, Ally McBeal, etc.).
Trata-se, afinal, de desafiar as representações correntes do espaço “novelesco”. Deparamos com uma galeria de famílias de uma zona de bem-estar social e económico, de deslumbrantes cenários naturais (Monterey, Califórnia), que conhecemos através de quatro personagens femininas, interpretadas pelas actrizes referidas e ainda Laura Dern. A perturbação desencadeada pela morte de alguém (anunciada logo no primeiro de sete episódios) funciona como perverso mecanismo de exposição e desmontagem de uma complexa teia dramática — em jogo estão as marcas das diferenças sociais, as convulsões do espaço conjugal e as relações entre pais e filhos.
Uma das dimensões mais espantosas, e também televisivamente mais raras, de Big Little Lies provém da sua capacidade de desmontar a “naturalidade” do quotidiano, expondo os seus recalcamentos, máscaras e feridas interiores. Repare-se, em particular, na caracterização do par interpretado por Nicole Kidman e Alexander Skarsgard. No terceiro episódio, numa cena incrível (desde logo, pela sua duração invulgarmente dilatada), vêmo-los numa sessão de terapia, falando sobre a conjugação de amor, sexo e violência física do seu casamento. Subitamente, com uma intensidade que faz lembrar Ingmar Bergman, as palavras emergem como cruéis instrumentos de uma verdade tão cristalina quanto dura de enfrentar.
O impacto da cena é tanto maior quanto Jean-Marc Vallée resiste ao cliché televisivo do grande plano, “demorando” algum tempo a aproximar-se dos seus admiráveis actores. A distância a que a câmara se coloca de Kidman e Skarsgard envolve, assim, um sábio pudor que, paradoxalmente ou não, intensifica o contundente poder de revelação das palavras.
Há outra maneira de dizer tudo isto: alguns dos mais radicais objectos televisivos do nosso tempo reflectem a riqueza plural de um património enraizado no cinema e na sua história. Não é uma forma de dependência, muito menos um banal exercício de citações — antes uma consciência da riqueza interior das imagens.

sábado, junho 11, 2016

Nicole Kidman, rainha do deserto

Werner Herzog ainda e sempre à procura das epopeias individuais em ambientes de convulsão colectiva — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (9 Junho).

Ao realizar um filme como Rainha do Deserto, compreende-se que o alemão Werner Herzog se tenha interessado pela história de Gertrud Bell (1868-1926), arqueóloga inglesa que, entre os dois conflitos mundiais, desempenhou um papel fundamental no desmantelamento político do Império Britânico e, em particular, nos processos que conduziriam à independência da Jordânia e do Iraque. Ela foi uma dessas figuras maiores que a vida cuja saga encontra o seu primeiro eco simbólico na beleza das paisagens (desérticas) em que se aventurou.
Parece óbvio que Herzog não teve condições práticas para rentabilizar ao máximo esse apelo paisagístico (a rodagem foi marcada por diversos problemas logísticos e de produção). Em todo o caso, o filme consegue reavivar um espírito de epopeia humana que tem uma referência emblemática no Lawrence da Arábia (1962), de David Lean. T. E. Lawrence é, aliás, uma das personagens, interpretado por Robert Pattison, mas a evidência vai toda para Nicole Kidman, emprestando a Bell a grandeza dramática de quem, além do mais, era suposto submeter-se às regras de um mundo totalmente masculino.

quinta-feira, março 19, 2015

Retratos de Nicole Kidman

RETRATO DE UMA SENHORA (1996)
Através de dois novos filmes — Antes de Adormecer e Paddington —, redescobrimos a admirável versatilidade de Nicole Kidman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Março), com o título 'As muitas vidas cinematográficas de Nicole Kidman'.

Em Maio do ano passado, no Festival de Cannes, Nicole Kidman não era uma estrela feliz. Perante a respeitadora frieza com que foi recebido o seu filme Grace de Mónaco, a actriz enfrentava os jornalistas de todo o mundo num tom prudentemente defensivo: segundo as suas palavras, a realização de Olivier Dahan tinha respeitado o mais possível as memórias de Grace Kelly, lenda de Hollywood e Princesa do Mónaco, tentando evitar qualquer alusão que favorecesse especulações gratuitas.
O filme não se livrou da indiferença oficial do Principado do Mónaco e, mesmo tendo tido honras de abertura oficial do certame da Côte d’Azur, foi rapidamente secundarizado nos media franceses e internacionais. Em todo o caso, o episódio deixava uma pequena lição artística: mesmo interpretando figuras verídicas, o talento de Nicole Kidman não depende de qualquer caução (histórica ou biográfica), exprimindo-se sempre melhor quando a actriz pode apropriar-se de uma personagem, transfigurando-a em coisa sua. Recordemos o revelador paradoxo: não é verdade que foi a sua elaborada composição de Virgina Woolf que lhe valeu um Oscar, em As Horas (2002)?
Os dois filmes com Nicole Kidman esta semana lançados nas salas portuguesas são significativos da sua agilidade: Antes do Amanhecer, dirigido por Rowan Joffe, adapta um “best-seller” de S. J. Watson centrado numa mulher que acorda todos os dias sem saber o que lhe aconteceu na véspera, ao mesmo tempo que pressente ter vivido uma tragédia que a sua memória teima em não lhe devolver; num registo bem diferente, ligado a uma tradição britânica simultaneamente literária e cinematográfica, Paddington, escrito e realizado por Paul King, centra-se na personagem do urso Paddington, saído dos livros de Michael Bond, e na sua demanda de um lugar para viver, viajando das profundezas da América do Sul para a casa de uma típica família de Londres.
A composição de Nicole Kidman em Paddington corresponde ao clássico conceito de “estrela convidada” (guest star), assumindo a personagem de Millicent, a má da fita que só vê o urso aventureiro como um espécimen susceptível de ser sujeito às suas artes de taxidermista. O filme ilustra, aliás, um modelo de espectáculo em que a verdadeira estrela é o próprio universo fantasista em que tudo acontece, aliás recuperando uma sofisticada tradição de estúdio a que também pertencem, por exemplo, os títulos clássicos da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger.
O caso de Antes de Adormecer é bem diferente, quanto mais não seja porque a realização de Rowan Joffe possui as vantagens, mas também as limitações, de um modelo que procura tão só garantir o funcionamento do mistério que a história instala desde as primeiras cenas. Nicole Kidman enfrenta, assim, o desafio de representar uma personagem que, literalmente, não sabe contextualizar aquilo que vê. Não por acaso, torna-se uma obcecada acumuladora de imagens — a começar por aquelas que obtém através de uma pequena câmara digital —, tentando organizá-las de modo a encontrar a narrativa que possa definir toda a sua existência.
Mesmo considerando que está longe de ser um filme fulcral na trajectória da actriz — longe, por exemplo, de títulos como Disposta a Tudo (1995), de Gus Van Sant, ou De Olhos Bem Fechados (1999), de Stnaley Kubrick — Antes do Amanhecer, corresponde a um labor de extrema solidão criativa, quanto mais não seja por esse desamparo que define a personagem central. Nessa perspectiva, podemos, talvez, aproximá-lo de outras performances de Nicole Kidman, por exemplo em Retrato de uma Senhora (1996), adaptação de Henry James assinada por Jane Campion, ou Birth – O Mistério (2004), insólito e fascinante exercício introspectivo em que Jonathan Glazer encenava a experiência surreal de uma jovem viúva que recebia a visita de um rapaz, garantindo-lhe que era o seu marido reencarnado...
As muitas vidas cinematográficas de Nicole Kidman ilustram uma evolução da sua carreira que, afinal, a afastou da linha da frente dos grandes estúdios (americanos, pelo menos), mesmo se nunca lhe retirou visibilidade nos mercados internacionais. Ironicamente, na última década, o seu maior sucesso nas bilheteiras é mesmo um filme em que ela... não aparece: Happy Feet (2006), de George Miller, delicioso desenho animado sobre o mundo dos pinguins (Kidman dá voz à figura da mãe, de nome Norma Jean).
Uma das mais prodigiosas composições de toda a sua carreira está em Rabbit Hole (2010), de John Cameron-Mitchell, interpretando com Aaron Eckhart um casal que tenta enfrentar a perda do filho num acidente. Apesar de lhe ter trazido mais uma nomeação para o Oscar de melhor actriz, o filme passou quase despercebido em todos os mercados (em Portugal, nem sequer chegou às salas, tendo sido lançado directamente em DVD com o infeliz título O Outro Lado do Coração).
Pode mesmo dizer-se que, com frequência, a actriz passou a adoptar uma atitude “experimental”. Este ano, por exemplo, deverão estrear mais dois filmes com Nicole Kidman que correspondem a estreias na realização cinematográfica: são eles Genius, de Michael Grandage, sobre o editor Max Perkins, e Lion, de Garth Davis, centrado na odisseia de uma criança indiana adoptada por um casal australiano.

quarta-feira, maio 14, 2014

Cannes 2014: Nicole


[Ferrara]  [mitologias]

O problema não está na maior ou menor "coincidência" de Nicole Kidman com as imagens mitológicas de Grace Kelly — aliás, a actriz consegue a proeza nada fácil de se colar a tais imagens sem alienar a subtileza do seu trabalho de representação. O problema está na relação da personagem com as outras figuras que povoam o filme de Olivier Dahan, Grace de Monaco, do príncipe Rainier (Tim Roth) a Maria Callas (Paz Vega), mais ou menos reduzidos a marionetas de telefilme... Creio que os herdeiros da princesa do Mónaco se enganam quando protestam contra os "erros" do filme — estamos perante um assumido trabalho de ficção que, em todo o caso, se fundamenta numa genuína conjugação de fascínio e respeito. É pena que o filme não esteja à altura da sofisticação mitológica que enaltece.

domingo, maio 11, 2014

A sensualidade debaixo da pele

Não é todos os dias que deparamos com um filme que arrisca jogar em terrenos exteriores a qualquer modelo corrente de narrativa: Debaixo da Pele, de Jonathan Glazer, com Scarlett Johansson, é um desses filmes, além do mais capaz de nos devolver às delícias e perturbações do cinema como happening das salas escuras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Maio), com o título 'O cinema é uma coisa sensual'.

Vivemos tempos de consagração do mais absoluto determinismo. Um repórter dirige-se a um manifestante com um cravo vermelho e pergunta: “O que significa o seu cravo vermelho?...” Ou, então, apanha um jogador ofegante no final de um jogo: “O seu golo teve um significado especial, não teve?...” Isto tem um nome: sobre-significação, quer dizer, recalcamento das singularidades humanas e formatação do factor humano. Passámos a viver sob o jugo de uma ditadura linguística da significação: o “significado” de um espirro de Cristiano Ronaldo pode pôr em risco a identidade nacional...
Na sua elegante paixão pelo irracional, Debaixo da Pele não é, por isso, um filme para encaixar nos lugares-comuns do nosso tempo: uma extraterrestre que vem à terra para seduzir e, aparentemente, devorar homens?... O que é que isso “significa”?
Jonathan Glazer gosta destas narrativas em que, curiosamente, a figura feminina se confronta com as mais cândidas incongruências. Em Birth (2004), filmava Nicole Kidman, no papel de uma jovem viúva, face a uma rapaz de 10 anos que se apresentava como o seu marido reencarnado... Em Debaixo da Pele, Glazer convoca Scarlett Johansson para reinventar um dispositivo clássico de ficção científica — o frente a frente entre o humano e o não-humano —, encenando-o num espaço de paradoxal verdade orgânica, em tudo e por tudo ligado à riquíssima herança do realismo britânico.
Tal como Stanley Kubrick (como não pensar no seu 2001: Odisseia no Espaço?), Glazer procura um cinema em que o desafio intelectual vai a par da fruição sensorial. No limite, o cinema não serve para “reproduzir” o mundo, mas sim para o recriar como coisa puramente sensual. Cézanne não fez outra coisa... Mas que “significa” isso de evocar Cézanne a propósito de um filme?

PAUL CÉZANNE
La Route Tournante en Sous-bois
1873-75

terça-feira, janeiro 01, 2013

Grace e Nicole

Entre estas duas capas da mesma revista — e respectivas imagens — há 58 anos (2012/1954) de história. De histórias. São imagens e histórias que nos convocam para qualquer coisa que o conceito banal de "imitação" talvez não consiga preencher. A questão é: quando, nos nossos dias, Nicole Kidman roda um filme sobre Grace Kelly (1929-1982), que acontece? Ou que esperamos que aconteça? Uma repetição mágica da lenda ou uma nostalgia de impossível gratificação?
Em qualquer caso, seja qual for o resultado artístico do filme, assistimos aqui ao reforço de uma obsessão muito dos nossos dias. A saber: a estranha "insuficiência" dos originais e a continuada celebração das cópias. Como se a proliferação de imagens que habitamos (e nos habita), em vez de apaziguar a nossa ânsia visual, a multiplicasse numa vertigem de impossível quietude. Provavelmente, é pedir demais a alguém que sustente semelhante comparação — mas é também um facto que, por vezes, a excelência de um actor (ou uma actriz, hélas!) se joga na maravilhosa insensatez destes desafios.

sexta-feira, dezembro 28, 2012

Nicole Kidman e os outros

Nomeada como actriz secundária para os Globos de Ouro, Nicole Kidman é, de facto, o centro simbólico de The Paperboy - Um Rapaz do Sul, contundente retrato das convulsões de uma cidade do Sul dos EUA — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (26 Dezembro), com os títulos, respectivamente, 'Nicole Kidman filma contra a sua imagem de glamour' e 'Elogio dos actores e dos corpos'.

O menos que se pode dizer sobre um filme como The Paperboy, entre nós lançado com o subtítulo Um Rapaz do Sul, é que dificilmente encaixa em qualquer modelo corrente do cinema americano, quer de Hollywood, quer das áreas da produção independente. Em boa verdade, estamos perante um objecto que nos remete para a herança de algumas obras emblemáticas dos anos 50, retratando vivências específicas do Sul dos EUA, como Baby Doll (1956), de Elia Kazan, Gata em Telhado de Zinco Quente (1958), de Richard Brooks, ou Paixões que Escaldam (1958), de Martin Ritt. Ponto comum a todos esses títulos: o jogo de contrastes e contradições entre um sistema de vida gerido por regras morais muito estritas e um submundo de comportamentos que, de forma mais ou menos consciente, desafiam essas regras e respectivos valores.
Baseado no romance homónimo de Pete Dexter [foto] (distinguido com o prémio PEN Center USA de 1996), o filme teve a sua estreia absoluta no Festival de Cannes, no passado mês de Maio. Realizado por Lee Daniels, o cineasta que dirigiu o aclamado Precious (2009), sobre uma adolescente que tenta escapar a uma existência de repressão e continuados abusos sexuais, The Paperboy apresenta-se com a estrutura de um tradicional inquérito policial: um repórter (Matthew McConaughey) e o seu jovem irmão (Zac Ephron) tentam provar a inocência de um prisioneiro (John Cusack) condenado à pena de morte. Em todo o caso, os eventos vão adquirindo uma dimensão insólita através dessa singularíssima personagem que é Charlotte Bless, uma desconcertante femme fatale que se corresponde com o condenado, apostando num futuro duplamente radioso: primeiro, ajudando a provar a sua inocência; depois, acreditando que se casará com ele...
No papel de Charlotte, o filme possui um trunfo decisivo: a interpretação de Nicole Kidman. Mesmo não sendo a figura central do filme, é por ela que passa uma perturbação erótica que contamina todas as personagens e situações. Mais do que isso: sendo Charlotte uma figura que oscila entre uma sexualidade enigmática e uma postura mais ou menos grosseira, reforçada por uma desabrida linguagem, Nicole Kidman arrisca trabalhar, assim, contra a sua própria imagem de sofisticação e glamour (cristalizada em alguns dos anúncios, para perfumes ou relógios, em que tem participado).
Quando The Paperboy foi apresentado em Cannes, alguns observadores previram-lhe uma presença forte na temporada de prémios, no final do ano e começo de 2013. E é um facto que Nicole Kidman surge, para já, como uma das nomeadas para os Globos de Ouro, na categoria de melhor actriz secundária. O certo é que a fraca carreira nas salas dos EUA inverteu o seu favoritismo inicial. Ainda assim, não será arriscado supor que o filme pode vir a ter uma presença significativa na corrida para alguns Oscars, a começar pelo de melhor argumento adaptado (co-assinado por Lee Daniels e Pete Dexter). Seja como for, com ou sem prémios, The Paperboy fica como um dos objectos mais estranhos, e também mais sedutores, da produção americana de 2012.

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É verdade que algum jornalismo rotineiro só fala de filmes americanos a partir dos números de bilheteira. Como se a história do cinema (americano ou não) fosse uma banal variação sobre os valores do marketing... Não que se possa compreender essa história recalcando os mais diversos e complexos factores económicos. Acontece que a mentalidade do box office venera os relatórios financeiros, menosprezando todos os valores específicos dos filmes. Não haverá alternativa a tal visão?
Este ano, por exemplo, no top dos maiores sucessos nos EUA, desde Os Vingadores (1º lugar) até O Hobbit (para já, em 14º), é impossível encontrar um filme cujo trunfo promocional seja... um actor ou uma actriz! A estrela (star!), valor visceral da história clássica de Hollywood, tornou-se um frágil apêndice da vida financeira da maior parte dos filmes. Por exemplo, o magnífico The Paperboy, de Lee Daniels. É verdade que conta com Nicole Kidman, uma estrela realmente planetária, isto é, reconhecida e reconhecível por plateias de todo o mundo... Que lugar consegue na lista dos filmes mais rentáveis do ano? Pois bem, parece uma anedota mal contada, mas surge em nº 220.
A evidência cruel é esta: um cinema alicerçado em personagens de enorme complexidade psicológica está automaticamente condenado pelos padrões correntes do mercado. O absurdo de tudo isto é tanto maior quanto vivemos sob o jugo de uma cultura mediática (de raiz televisiva) que todos os dias nos massacra com estereótipos sexuais supostamente “chocantes”... The Paperboy, por sua vez, é um subtil retrato de um contexto perversamente erotizado, em que sexualidade e poder político se enredam de forma bizarra e perturbante. Será que o público dos “efeitos especiais” já não reconhece a vibração dos corpos vivos?

segunda-feira, agosto 27, 2012

A volta ao mundo de Fernando Meirelles

Fernando Meirelles, brasileiro, através de uma produção de quatro países (Reino Unido/França/Áustria/Brasil) reencontra a inspiração de um texto austríaco de finais do século XIX: o filme 360 inspira-se numa peça de Arthur Schnitzler para filmar o turbilhão das relações contemporâneas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Agosto), com o título 'Fernando Meirelles encena a solidão contemporânea'.

No início do novo filme do cineasta brasileiro Fernando Meirelles, intitulado 360, vemos, algures em Bratislava, a personagem de Mirka (Lucia Siposová) numa sessão de fotografias “artísticas” [foto]. Depois, o fotógrafo pede-lhe para ela se despir, no final deixando-lhe indicações para um encontro num hotel a que deverá comparecer muito em breve... Rapidamente percebemos que Mirka passou, de facto, a integrar uma rede internacional de prostituição. Quando ela aguarda o seu primeiro cliente, Michael (Jude Law), inicia-se o movimento circular (360 graus) do próprio filme: através de um jogo de encontros e desencontros, coisas ditas e coisas ocultas, cada uma das personagens vai estabelecer algum tipo de relação com alguma das outras, nem sempre vislumbrando ou pressentindo a natureza dos factores que as poderão ligar. Daí o subtítulo, porventura dispensável, com que o filme acaba de ser lançado no mercado português: “ A Vida É um Círculo Perfeito”.
Para Meirelles, nascido em São Paulo (1955), esta é a confirmação plena do seu envolvimento com a produção ligada ao espaço anglo-saxónico. Foi o impacto internacional de Cidade de Deus (2002), sobre uma favela do Rio de Janeiro, que projectou o seu nome, abrindo-lhe novos mercados de trabalho. O Fiel Jardineiro (2005), adaptado de John Le Carré, seria a primeira consequência prática: com um elenco liderado por Ralph Fiennes e Rachel Weisz, o filme cumpriu uma boa carreira internacional (com mais de 80 milhões de dólares de receitas nas bilheteiras), consagrando Weisz com o Oscar de melhor actriz secundária.
Seguiu-se Ensaio sobre a Cegueira (2008), segundo o romance de José Saramago, tendo surgido 360 de uma possibilidade de colaboração com o argumentista inglês Peter Morgan, já duas vezes nomeado para os Oscars: na categoria de melhor argumento original, por A Rainha (2006), de Stephen Frears, e para melhor argumento adaptado, por Frost/Nixon (2008), de Ron Howard.
Morgan partiu de uma lendária referência teatral: a peça Reigen, escrita em finais do século XIX pelo austríaco Arthur Schnitzler. Reigen é um texto em grande parte celebrizado pela sua versão francesa, La Ronde, filmada por Max Ophuls em 1950 (aliás, a peça é frequentemente citada pelo título francês). O seu princípio dramático consiste em partir de uma série de encontros sexuais para definir inesperadas relações entre as suas personagens. Roger Vadim foi outro cineasta que adaptou a peça, em 1964, mantendo a acção no começo do século XX. Em 1998, o dramaturgo inglês David Hare escreveu a sua própria versão, The Blue Room, transferindo-a para o tempo presente (a estreia de The Blue Room ocorreu no Donmar Warehouse, em Londres, com Nicole Kidman no papel principal).
Com um elenco que inclui ainda o britânico Anthony Hopkins, o francês Jamel Debbouze e a brasileira Maria Flor, 360 evolui como uma espécie de fábula intercontinental, com cenas em Paris, Londres, Rio de Janeiro e Phoenix. A colaboração de Morgan e Meirelles dá origem a um desencantado retrato das relações humanas em pleno século XXI. Por um lado, este é um mundo de permanentes viagens e deslocações, e também de aceleradas formas de comunicação, garantidas por todos os gadgets das modernas tecnologias; por outro lado, as personagens lutam constantemente por contrariar as muitas formas contemporâneas de solidão, como se a proliferação de “mensagens” não fosse mais do que uma ilusão criada por um ambiente cada vez mais desumanizado.

quinta-feira, maio 31, 2012

Aventuras do sono (o livro e o filme)

Nicole Kidman esteve no centro de muitas notícias do Mercado do Filme, em Cannes, sobretudo por causa das vendas internacionais de Grace of Monaco, um retrato de Grace Kelly (1929-1982) a ser dirigido por Olivier Dahan e com lançamento previsto para 2014. De qualquer modo, nas ruas de Cannes apareceram também os primeiros cartazes promocionais de Before I Go to Sleep, a ser protagonizado por Kidman, com Rowan Joffé a assinar a realização.
Foi Ridley Scott, neste caso na qualidade de produtor, que adquiriu os direitos de adaptação do romance de estreia do inglês S. J. Watson (n. 1971), um hábil thriller centrado na personagem de uma mulher que acorda em recorrente estado de amnésia — é graças a um detalhado e obsessivo diário, todos os dias relido e acrescentado, que vai conseguindo descobrir as atribulações da sua existência. Before I Go to Sleep resulta um requintado exercício estilístico, uma verdadeira aventura do sono e seus fantasmas, porventura capaz de gerar um filme tão insólito quanto envolvente.

segunda-feira, abril 16, 2012

Nicole Kidman e Clive Owen na HBO

É a capa de Maio da revista W., com Nicole Kidman e Clive Owen fotografados por Emma Summerton e entrevistados por Lynn Hirschberg. O pretexto? Kidman no papel de Martha Gelhorn, Owen como Ernest Hemingway: um par muito especial para protagonizar Hemingway & Gelhorn, um épico romântico com assinatura de Philip Kaufman (o cineasta de Os Eleitos, A Insustentável Leveza do Ser e Henry e June), recordando a relação do escritor com a jornalista que foi a sua terceira mulher (1940-45) e, em particular, o envolvimento de ambos na Guerra Civil de Espanha.


Dir-se-ia uma daquelas sagas cinematográficas à maneira clássica, cruzando destinos de excepção com contextos históricos de profunda convulsão... Mas não: este é um filme de produção televisiva (HBO, trailer em baixo), a provar que a grande indústria, perdida no labirinto dos efeitos especiais e seus derivados, nem sempre sabe cultivar a nobreza dos seus valores mais antigos. A expectativa é grande, claro — primeira exibição nos EUA a 28 de Maio (às nove da noite, não no deserto esquecido de uma qualquer madrugada...).