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domingo, dezembro 22, 2024

2024 / 10 filmes [2]

* UM CASAL, de Frederick Wiseman

Eis um desafio insólito e surpreendente para quem reconhecemos, antes de tudo o mais, como um dos grandes documentaristas contemporâneos. Wiseman encena as relações entre Tolstoi e sua mulher, Sophia, através das cartas que trocaram (vivendo na mesma casa). Em qualquer caso, o homem está literalmente fora de campo, sendo ela quem transporta o peso das palavras que, por vezes, ferem como setas — o cinema é "apenas" esta arte de suspender o tempo e vislumbrar uma eternidade por cumprir.


[ Reality ]
jjlr_lopes

segunda-feira, outubro 30, 2023

Na cozinha de Frederick Wiseman

Menus Plaisirs - Les Troisgros:
gastronomia francesa filmada por um grande documentarista americano

Desta vez em terras francesas, o americano Frederick Wiseman faz um filme saboroso (é a palavra exacta…) sobre restaurantes e gastronomia: Menus Plaisirs - Les Troigros integrou a programado do Doclisboa, na secção “Da Terra à Lua”.

[FOTO: Wolfgang Wesener]
Um novo filme de Frederick Wiseman é sempre um acontecimento singular, realmente sem equivalente. Desta vez na secção “Da Terra à Lua”, o Doclisboa apresentou Menus Plaisirs - Les Troisgros, revelado há poucas semanas no Festival de Veneza. Para (não) variar, esta é uma proposta que se distingue por uma duração invulgar: quatro horas em torno das pessoas, das rotinas e da fascinante engenharia gastronómica da família Troisgros, proprietária de três lendários restaurantes na região central de França, um deles (chamado Troisgros, precisamente) criado há quase um século e, nos últimos 55 anos, detentor de três estrelas Michelin.
A filmografia de Frederick Wiseman está pontuada por estes exercícios cujo tempo desafia as normas correntes do consumo cinematográfico — para nos ficarmos por aquele que, a todos os níveis, me parece o exemplo mais emblemático, lembremos o prodigioso Near Death (1989), sobre o acompanhamento de doentes terminais num hospital de Boston, com uma duração recorde de seis horas (menos dois minutos…).
Em todo o caso, evitemos o pitoresco. Há uma diferença substancial entre as horas repetitivas, redundantes e monótonas de muitas produções dos estúdios Marvel e o trabalho de alguém como Wiseman, “apenas” interessado em esmiuçar o labor filosófico de quem está apostado em discutir todas os possíveis prós e contras de um suave sabor de amêndoa num molho concebido para um prato de peixe…
À pergunta clássica sobre as eventuais dificuldades para filmar em determinado ambientes muito codificados, por vezes envolvidos em algum secretismo, Wiseman responde sempre com a revelação da sua primeira regra para penetrar em tais ambientes: “Peço autorização.” Assim aconteceu com o restaurante Troisgros que ele conheceu, no verão de 2020, levado por um amigo. De tal modo encantado com a comida e o ambiente, Wiseman perguntou ao Chef, César Troisgros, se o deixaria fazer um filme sobre os seus restaurantes. A resposta chegou meia hora mais tarde: “Porque não?”
Curiosamente, é o próprio Wiseman que, num breve texto de apresentação escrito para Veneza, nos chama a atenção para o cerne criativo do seu trabalho. É certo que fazer um filme sobre um restaurante com 3 estrelas Michelin sempre foi uma das suas “fantasias”. Mas há mais: “Pensei também que um filme sobre um restaurante podia ter relações com a minha série de filmes sobre instituições.”
Lembremos também, por isso mesmo, exemplos modelares como High School (1968), Blind (1987) ou Ballet (1995), respectivamente sobre um liceu, um jardim de infância para crianças cegas e o American Ballet Theatre. Para Wiseman, o “institucional” não é uma chancela mais ou menos oficial, mas sim o sistema de regras e comportamentos de uma entidade pensada e organizada para cumprir tarefas muito específicas. Nesta perspectiva, os restaurantes de Menus Plaisirs existem muito para lá da sedução turística que os possa envolver.
O cinema de Wiseman é mesmo o rigoroso contrário de qualquer banalidade turística. Para ele, não se trata, de modo algum, de recolher imagens “decorativas” para alimentar os nossos olhares viciados nos lugares-comuns do Instagram, mas sim de observar, testemunhar e compreender as infinitas subtilezas de um colectivo humano. Neste caso, a chave de tudo isso estará, talvez, na palavra “plaisirs” que o título integra — para lá do prazer dos cozinheiros e, sem dúvida, dos clientes, somos também convocados pelo prazer de um cineasta que sabe, como poucos, cozinhar as imagens e os sons que regista. Construir um olhar livre é o seu método.

quinta-feira, novembro 10, 2022

4 filmes escolhidos por Frederick Wiseman

[ Zipporah Films ]

Regularmente, a Criterion Collection convida personalidades do cinema para, no seu escritório de Nova Iorque, visitarem a "arrecadação" dos respectivos DVD — e escolherem alguns filmes. Há dias, Frederick Wiseman passou por lá, acabando por levar consigo Ladrões de Bicicletas (De Sica, 1948), Horizontes de Glória (Kubrick, 1957), A Faca na Água (Polanski, 1962) e Vencidos pela Lei (Jarmusch, 1986) — em pouco mais de dois minutos, o cineasta de Near Death (1989) e National Gallery (2014) comenta as suas escolhas, explicando, afinal, como mesmo na ficção os elementos documentais podem ser determinantes. E também o contrário?...

terça-feira, outubro 20, 2015

A National Gallery filmada por Wiseman

FREDERICK WISEMAN
Cannes, 2014
(Foto: JL)
O filme de Frederick Wiseman sobre a National Gallery, em Londres, constitui um exemplo modelar de uma visão sensível à arte e à sua história — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Outubro), com o título 'Quando os políticos não falam de arte'.

Revejo o extraordinário documentário de Frederick Wiseman, National Gallery (agora lançado em DVD), e fixo-me, desde logo, na sua breve e fascinante sequência de abertura. No âmbito de uma visita guiada, uma funcionária daquele museu de Londres comenta uma pintura medieval, insistindo em particular no facto de os actuais espectadores do quadro necessitarem de fazer um esforço de raciocínio e adaptação para compreenderem a sua percepção na época (1377) em que foi colocado no interior de uma igreja: desde a luz difusa dessa igreja até às agruras de um dia a dia marcado por muitas doenças e mortes, somos levados a sentir as irredutíveis diferenças entre o efeito simbólico daquele objecto na sua origem e a visão que, agora, dele podemos construir.
Há outra maneira de dizer isto: conhecer a arte e as suas imagens não é o mesmo que acumular referências mais ou menos enciclopédicas, supostamente capazes de consolidar um saber uno e unívoco, fechado e definitivo. Por alguma razão, a câmara de Wiseman dá especial atenção a dois tipos de olhares: o dos espectadores, claro, contemplando, entre a surpresa e o maravilhamento, os tesouros da National Gallery; e o dos que lá trabalham, em particular nas oficinas de restauro, garantindo que as memórias sejam, antes de tudo o mais, um fenómeno eminentemente material.
Falar de arte — do seu valor patrimonial, tanto quanto da nossa relação com os respectivos objectos e criadores — é algo que, infelizmente, quase desapareceu da cena política. Não se trata, entenda-se, de defender qualquer infantilismo “lírico”, segundo o qual os políticos deveriam pontuar o seu discurso público com divagações mais ou menos “artísticas”. O problema está muito para além (ou aquém) desses jogos florais: de facto, os políticos de todas as áreas e sensibilidades demitiram-se de tecer considerações sobre as formas de percepção e representação do mundo. Uma prova? O seu lamentável, sistemático e pusilânime silêncio sobre o espaço televisivo e, em particular, sobre a degradação populista de muitos dos seus conteúdos.
Não é uma questão meramente instrumental. Num contexto em que os horrores da reality TV se tornaram um elemento nuclear da cultura televisiva dominante, trazer a arte para o domínio das nossas preocupações quotidianas seria um exercício de rudimentar profilaxia social (sobretudo quando o “social” está invadido pelas vulgaridades mais ou menos insultuosas de que se fazem as respectivas “redes”).
Numa sociedade com uma relação saudável com o trabalho artístico, desde logo no domínio do ensino, seria possível manter (e enriquecer) uma dinâmica de ideias e valores que recusasse, ponto por ponto (leia-se: politicamente), a desvergonha a que chegaram muitas práticas de raiz televisiva. Neste contexto, silenciado ou não pelo burburinho dos “famosos” e as guerras do futebol, o filme de Wiseman é um acontecimento realmente fora de série.

sábado, maio 23, 2015

A pintura segundo Frederick Wiseman

Os documentários de Frederick Wiseman resultam de um muito particular sistema de trabalho: no caso de National Gallery, o seu método revela os bastidores de uma instituição, reavaliando os modos de olhar a pintura — esta entrevista (realizada no Festival de Cannes de 2014) foi publicada no Diário de Notícias (21 Maio), com o título '“Filmar é um modo de pesquisa”'.

Quando vemos o seu filme National Gallery, sentimos uma estranha e fascinante conexão entre os rostos que estão nos quadros e os rostos dos visitantes — sentiu, de alguma maneira, que estava a fazer uma espécie de pintura para o séc. XXI?
Enfim, não poderei dizer que pensei no assunto exactamente dessa maneira, mas é um facto que pensei nas relações entre as imagens de agora e as pinturas. Mais do que isso: pensei que, realmente, passou a ser possível fazer retratos através do cinema. Claro que há relações complexas entre as pessoas que estão nas pinturas e aquelas que circulam na galeria... Lembro-me, por exemplo, daquela cena em que uma guia refere que as figuras do quadro Os Embaixadores [Holbein, 1533] fizeram pose para “tirar uma fotografia”, o que não deixa de ser uma maneira sugestiva de dizer que a fotografia não existia.

Ao entrar na National Gallery, com a sua câmara e o aparelho de registo sonoro, tinha definido alguma estratégia de filmagem?
Posso dizer que segui um caminho idêntico ao de todos os meus filmes: ando pelo espaço durante algum tempo e filmo bastante, mesmo sabendo que há muitas coisas que não vão ficar na montagem final. Não sei se isso de pode considerar uma estratégia... Antes de fazer o filme nunca tinha visitado os bastidores da National Gallery, não sabia nada sobre o seu departamento científico ou o restauro dos quadros — nessa medida, filmar é também um modo de pesquisa.

Frederick Wiseman / Cannes 2014 (FOTO: JL)
Portanto, a estrutura do filme apenas surge através da montagem.
Apenas surge no fim da montagem. Em boa verdade, nem sequer penso na estrutura antes de concluir a montagem de todas as cenas que, em princípio, vou conservar na montagem final — e isso pode demorar seis a nove meses.

Em algumas cenas, parece que utilizou duas câmaras...
De facto, não: é tudo feito com uma única câmara. A sensação de duas câmaras, se existe, resulta da montagem. Isto porque, durante a rodagem, devemos pensar em mudar de posição, tendo em conta, precisamente, a montagem. Posso mesmo dizer que aprendi a filmar através da montagem.

Sente que as pessoas filmadas de alguma maneira resistem à sua presença?
É uma velha questão, claro, saber se a câmara e os microfones mudam os comportamentos. Em função da minha experiência, terei que dizer que não. Isto porque posso passar 12 horas por dia nos lugares que filmo — se filmarmos 3 horas por dia, é imenso. Na prática, há constantes repetições de comportamento. Além do mais, não creio que as pessoas tenham a capacidade de mudar os seus comportamentos: se não querem participar, limitam-se a dizer que não ou a sair de cena. Por fim, se chego à montagem e deparo com um comportamento que me parece falso, “inventado” para a câmara, é muito simples: não o uso.

E o que acontece antes das filmagens? Como é que consegue circular por aqueles espaços?
Tenho um segredo: peço licença para filmar [riso].

Mas as equipas de televisão também pedem licença e os resultados são bem diferentes.
É que eles pedem para fazer entrevistas, e eu não faço entrevistas. Chegam com luzes, e eu não as uso. E são uma equipa de seis ou sete pessoas, enquanto no meu caso somos apenas três — muitas vezes, a terceira pessoa nem sequer está na sala em que estamos a filmar.

segunda-feira, maio 19, 2014

Cannes 2014: personagens

[Ferrara]  [mitologias]  [Nicole]  [Eden]  [rostos]  [ecrãs]  [Inverno]  [Marcello]

Fazer documentários não é "reproduzir" nem "transcrever" o que quer que seja. Porquê? Porque o olhar, mesmo o mais distraído ou preguiçoso, é sempre selectivo. No caso do cinema de Frederick Wiseman, o olhar não só tem consciência plena das escolhas que faz, como sabe expor os ziguezagues simbólicos que o seu labor desencadeia. Assim, em National Gallery, o cineasta não se limita a inventariar "curiosidades" — filma o museu londrino como uma paisagem de permanente cruzamento de visões, numa dialéctica em que, em última análise, personagens do passado e personagens do presente partilham a sensualidade do mesmo desejo de história. Se não houvesse mais nada, National Gallery seria suficiente para justificar esta 67ª edição de Cannes.

quarta-feira, novembro 02, 2011

A nudez segundo Frederick Wiseman

Frederick Wiseman, por certo um dos maiores cineastas contemporâneos (documentarista ou não), filma agora os bastidores do "Crazy Horse", em Paris — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Outubro), com o título 'A nudez nunca existiu'.

O jornalismo que explora os “escândalos” da nudez feminina é um jornalismo miseravelmente machista. Entenda-se: nele se reduz a dimensão humana a uma miséria existencial. Mais do que isso: os seus produtos afectam toda a classe jornalística, todos os dias contribuindo para degradar o seu prestígio (e também para minimizar as qualidades da maioria dos seus representantes).
Face à estreia de Crazy Horse, não pude deixar de me perguntar de onde vem a indiferença desse jornalismo perante o notável filme de Frederick Wiseman. Afinal, tal jornalismo está sempre disponível para anunciar o apocalipse apenas porque, algures, em alguma imagem, uma actriz surge a expor um mamilo... (e se o leitor julga que estou a caricaturar, peço licença para lhe dizer que tem andado distraído). Acontece que, ao filmar os bastidores da célebre casa de espectáculos de Paris, Wiseman mostra, serenamente, o que lá se vive: os números musicais com bailarinas nuas, os ensaios das mesmas, etc.
Em boa verdade, o alheamento do jornalismo dos “escândalos” decorre da mais básica coerência: Wiseman pertence a outra classe, não é um explorador grosseiro das suas personagens, mas sim um aristocrata da dignidade humana. Já filmou o funcionamento dos mais variados universos “fechados”: um liceu, um quartel, um hospital, até mesmo uma companhia de dança (no anterior A Dança, de 2009, sobre o Ballet da Ópera de Paris, também lançado nas salas portuguesas). O “Crazy Horse” é mais um espaço que o interessa pela especificidade da sua organização interna.
Como sempre acontece nos seus filmes, também Crazy Horse é, em grande parte, um objecto de palavras. As coreografias, o guarda-roupa, a encenação dos corpos ou a composição das luzes são, naturalmente, matérias em destaque, mas só adquirem verdadeira espessura através dos diálogos. Daí o lugar fundamental que ocupam as cenas em que assistimos às reuniões de preparação (até mesmo a um casting) no interior do “Crazy Horse”. De acordo com uma lógica que não é estranha ao interesse de Wiseman pela psicanálise (ele próprio já o reconheceu), é pelo labor infinito das palavras que o mundo se organiza e produz significações.
Sem dúvida por isso, o resultado prático de Crazy Horse nada tem a ver com qualquer cliché, seja ele descritivo ou moralista. Deparamos, aqui, com a demonstração prática de uma interpretação avançada por Roland Barthes, em 1957, nas suas clássicas Mitologias (Edições 70): “O striptease – pelo menos o striptease parisiense – baseia-se numa contradição: dessexualizar a mulher no próprio momento em que esta é despida.” Daí que Barthes o defina como um “espectáculo do medo”, ou antes, do “faz-me medo”. Wiseman filma essa contradição na banalidade do seu dia a dia. Grande cinema, a provar que nenhuma imagem está nua: é apenas uma etapa de um processo de compreensão dos olhares.

sexta-feira, agosto 13, 2010

O esplendor de Frederick Wiseman

Frederick Wiseman é o cinema em todo o seu esplendor de olhar reinventado face à complexidade do real — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 de Agosto), com o título 'Gestos, corpos e trabalho'.

Qualquer espectador minimamente interessado na diversidade do cinema já não suporta o ruído das campanhas dos blockbusters de Verão (mesmo se é verdade que o filme com Angelina Jolie, Salt, a estrear na próxima semana, é um delicioso e inteligente divertimento). Digamos, para simplificar, que vale a pena prestar também alguma atenção às zonas do mercado onde acontecem coisas mais discretas, mas não menos empolgantes. Ou ainda: A Dança – Le Ballet de l’Opéra de Paris, de Frederick Wiseman, é não apenas o acontecimento central do Verão cinematográfico, mas por certo uma das grandes estreias de todo o ano de 2010.
No seu sereníssimo envelhecimento (celebrou 80 anos no dia 1 de Janeiro), Wiseman prossegue uma saga pessoal e sofisticada que, em boa verdade, o transforma num capítulo à parte de toda a história do documentarismo. Ele filma lugares institucionais, desde o quartel militar de Basic Training (1971) até ao hospital de Near Death (1989). Mas filma também espaços públicos que, pelo seu funcionamento e simbolismo, adquiriram o valor de verdadeiras instituições sociais: acontece, por exemplo, em Central Park (1989), genial retrato do coração de Nova Iorque.
No caso da Ópera de Paris, Wiseman dá-nos a ver tudo aquilo que os acelerados concursos de dança recalcam. Ou seja: a duração dos gestos, a singularidade dos corpos, numa palavra, o trabalho. E não haverá muitos filmes (ficção ou documentário) que nos confrontem, de forma tão cristalina, com a suprema beleza do trabalho como expressão da dignidade do ser humano. Wiseman é, afinal, um exemplar de uma raça que a mediocridade televisiva colocou em vias de extinção: a dos humanistas.