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domingo, agosto 08, 2021

A invasão do Capitólio
revista pelo "New York Times"

Capitólio, Washington, 6 de janeiro de 2021
(video de The New York Times)

Num video do jornal The New York Times, revisitamos a invasão do Capitólio: o jornalismo expõe a angustiante duração dos acontecimentos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 julho), com o título 'A informação e a sua batalha contra o tempo'.

A proliferação de circuitos audiovisuais de informação gerou um culto beato da própria informação. A mais básica interrogação pedagógica — que informação? — é muitas vezes dispensada, e tratada como dispensável, cedendo espaço à pueril exaltação do simples facto de “existir” informação.
Somos mesmo levados a aplicar uma curiosa expressão para celebrar essa vertigem. Assim, em particular face à paisagem política, dizemos que determinada informação “vale o que vale”. Regra geral, não vale nada, a não ser o próprio efeito de acumulação que consagra. Não é um fenómeno dos nossos dias. E escusado será dizer que não será possível compreendê-lo a partir de fronteiras nacionais — é mesmo uma “coisa” que justifica uma palavra também frequente na retórica mediática: transversal.
Como se as repetições e redundâncias que sustentam tal retórica nos projectassem no ecumenismo da globalização cuja existência, em qualquer caso, da euforia ao cepticismo, todos reconhecemos.
Em 1994, o historiador e filósofo norte-americano Theodore Roszak (1933-2011) tratou tais questões num livro cujo título não poderia ser mais eloquente: The Cult of Information (University of California Press). A sua avaliação crítica do nosso “culto da informação”, envolvendo o endeusamento do trabalho dos computadores, está longe de ter perdido actualidade: “Se pensar é apenas uma questão de processamento de informação, então, na verdade, não há nenhuma diferença significativa entre o modo de pensar dos seres humanos e o das máquinas, a não ser o reconhecimento de que as máquinas são melhores nessa tarefa. E se processar informação é a primeira necessidade do nosso tempo, então é óbvio que importa reconhecer a vantagem selectiva das máquinas. Mas que espécie de “selecção” estamos aqui a discutir? Não natural, mas, por certo, selecção cultural. O “ambiente informativo” é, afinal, uma coisa gerada por nós. Deveríamos, por isso, ter o poder de o mudar de modo a servir os nossos valores. Será uma visão sombria da vida considerar que, timidamente, devemos tornar-nos vítimas da cultura que criámos.”
Na Internet, no site do jornal The New York Times (e também no respectivo canal do YouTube), podemos encontrar um esclarecedor exemplo dessa vontade de não nos instalarmos, passivamente, no caldeirão da informação quotidiana que recebemos, não poucas vezes sem sequer termos a consciência plena de que a estamos a receber. Tratou-se, neste caso, de fazer um inventário do dia 6 de janeiro, em Washington, quando uma multidão invadiu o Capitólio.
Estamos perante um video de 40 minutos intitulado “Day of rage” (“Dia de raiva”) em que se começa por recordar a campanha de Donald Trump, não apenas apontando o Capitólio como um alvo simbólico, mas também, antes disso, conseguindo convencer muitos cidadãos americanos que as eleições presidenciais estavam “viciadas”. Seja como for, o essencial deste extraordinário exemplo de “investigações visuais” (designação de uma secção audiovisual do jornal) decorre do didactismo do seu labor: através e, sobretudo, para lá das imagens que criaram um “emblema” informativo da invasão, trata-se de revisitar os factos a partir de uma lógica narrativa que resiste à aceleração banal do “clip” noticioso.
Nesta perspectiva, o tema fulcral do video — tema político, por excelência — é o tempo. Entenda-se: a duração dos acontecimentos. Mais do que isso: a simultaneidade de alguns factos, a começar pelo discurso de Trump no parque “The Ellipse”, da Casa Branca, a cerca de 3 quilómetros do Capitólio (“Vamos em direcção ao Capitólio”) e o primeiro ataque dos manifestantes contra as barreiras das forças de segurança.
Subitamente, a confusão figurativa dos eventos vai-se dissipando, revelando uma estratégia montada ao longo de vários meses. As palavras de Trump e seus apaniguados deixam de existir como pontuações mais ou menos delirantes, porventura caricatas, para emergirem como elementos materiais de um projecto de desmantelamento de algumas estruturas básicas da democracia americana (a começar pelo Capitólio). A elaboração do video de The New York Times durou seis meses, lembrando-nos assim que, para lá da equívoca velocidade do dia a dia, o jornalismo pode ser também uma angustiante batalha contra o tempo.

quinta-feira, janeiro 02, 2020

A coisificação da cultura

O DESERTO VERMELHO (1964)
Como é que cada um de nós de relaciona com os filmes que descobre na Internet? Uma coisa é certa: a consolidação das plataformas de “streaming” é um acontecimento cultural marcante do ano que agora termina — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro), com o título 'Os filmes e as coisas'.

Godard

Um lugar-comum insidioso e, mais do que isso, muito poderoso faz crer que o “objectivo” do crítico de cinema é encontrar no outro (leitor, espectador, ouvinte) um ponto de vista que duplique o seu. Segundo esse lugar-comum, não seria possível conceber que o crítico, pensando, se interesse pelo pensamento do outro.
Inútil rebater tal lugar-comum através das formas do mais rudimentar racionalismo: a sua força passa pela rejeição implícita de qualquer hipótese racional. Ultimamente, com a generalização das formas de acesso aos filmes através da Internet — a consolidação das plataformas de “streaming” é, a meu ver, o principal acontecimento cultural de 2019 —, tenho deparado com um fenómeno de outra natureza, ainda que, a meu ver, igualmente penalizador da nossa relação com os filmes. Mais do que uma mudança de hábitos, corresponde àquilo a que darei o nome de desagregação do conceito de espectador.
Beckett
Refiro-me a quê? Pois bem, ao facto de no dia a dia social ser possível encontrar cada vez mais pessoas que, na sua qualidade de espectadores, celebram de modo abstracto determinado filme que descobriram na Internet. Porquê? Porque sim. Que filme é? Apenas um filme que encontraram disponível… Com que actores? De que realizador? Não importa: estava disponível. Qual o título? “Não me lembro.”
O que se discute não é a capacidade seja de quem for para lidar com um filme, muito menos a inteligência para o fazer. Nem sequer o facto de todos sermos consumidores (por exemplo, de filmes). O que está em causa é o esvaziamento de qualquer relação com o cinema gerado por este sistema de consumo acidental.
Não se trata de recuar meio século, menosprezando as muitas e fascinantes alternativas de acesso ao património cinematográfico de que passámos a dispor. A questão é de outra natureza: diz respeito à nossa identidade tecnológica, concretizada através das técnicas do próprio consumo. Recorro, por isso, às palavras do historiador, ensaísta e filósofo Theodore Roszak (1933-2011): “(…) quando o imperativo mecânico tiver sido interiorizado como o modo de vida dominante da nossa sociedade, descobrir-nos-emos no interior de um mundo de consumados burocratas, gestores, analistas e engenheiros sociais que não se distinguirão dos sistemas que gerem.”
São palavras do livro The Making of a Counter Culture, lançado há meio século, precisamente (entre nós editado, na altura, pelas Publicações Dom Quixote, com o título Para uma Contracultura). Para exemplificar esses “seres humanos mortos por dentro”, Roszak cita as personagens “sem paixão” que podemos encontrar em grandes filmes da época assinados por Jean-Luc Godard, François Truffaut, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini, ou nas peças de Harold Pinter e Samuel Beckett.
Roszak
Será que podemos confundir o nosso presente com o misto de angústia e cepticismo que encerrou as convulsões dos “sixties” e que Roszak espelha com tão admirável precisão? Não creio. Nem é essa a questão. Acontece que o espectador acidental de cinema já não possui qualquer réstia de cinefilia. Para ele, tudo se equivale: os filmes não pertencem a uma história, não remetem para nenhum contexto, não envolvem a aplicação de linguagens específicas — são apenas acidentes intermutáveis de um fenómeno de anónima e continuada coisificação.
Assistimos, aliás, participamos assim de algo ainda mais insidioso do que o velho ódio ao pensamento e ao prazer de pensar. Decorre daquilo que, em 1969, Roszak caracterizava como “um mundo de relações humanas coisificadas”, de tal modo que “cada um se torna um espécime observado pelo microscópio do outro”. A solidão das personagens de Antonioni nas paisagens industriais do seu filme O Deserto Vermelho (1964) pode servir de ilustração de tal estado de coisas — no limite, “ninguém pode continuar a ter a certeza de que qualquer outro não possa ser um robot”.

segunda-feira, novembro 21, 2016

Ewan McGregor adapta Philip Roth

Ewan McGregor, Jennifer Connelly e Dakota Fanning
Um belo acontecimento de cinema: o romance Pastoral Americana, de Philip Roth, revisto e reinventado por Ewan McGregor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Novembro), com o título 'Filmando a herança do Sonho Americano'.

De que falamos quando falamos de classicismo? Simplifiquemos, isto é, não esqueçamos o essencial. Falamos de um cinema que não se ilude com as suas próprias proezas técnicas e que, obviamente não as renegando, se mantém atento à fascinante pluralidade do factor humano. Falamos de filmes que sabem respeitar a complexidade de cada personagem sem ocultar o movimento histórico, social e simbólico a que a sua história pertence. Falamos, por exemplo, de Uma História Americana.
É pena que o título português não se limite a traduzir o original, chamando-lhe Pastoral Americana, afinal o título do romance de Philip Roth em que se baseia (editado em Portugal pela Dom Quixote). Dir-se-á que é um pormenor... Em qualquer caso, está longe de ser secundário. É através dele que se sugere a dimensão quase religiosa da saga da família Levov, na América de finais da década de 1960. O pai, conhecido na sua comunidade como “Swede” (“Sueco”, por causa do seu cabelo invulgarmente louro) dirige uma próspera fábrica de luvas; a mãe, Dawn, foi consagrada na juventude como “miss” de um concurso de beleza; enfim, Merry, a filha, é a herdeira do ideal de felicidade que, socialmente, os pais representam. Em resumo, os Levov parecem destinados a existir como uma encarnação perfeita do “Sonho Americano”.
Há, no entanto, um primeiro desvio a tão cândida utopia: Merry gagueja de forma compulsiva, a ponto de as suas dificuldades de articulação serem vistas (e até diagnosticadas) como sinal de uma desordem subconsciente que funciona no sentido de contrariar o peso excessivo da “pureza” que o casal Levov está, por assim dizer, condenado a viver. As coisas tornam-se inevitavelmente menos transparentes e mais perturbantes quando Merry, já adolescente, envolvida em muitos protestos de cariz político (em particular contra as políticas de Lyndon Johnson no Vietname), surge como suspeita de um atentado à bomba...

O passado e o presente

Uma História Americana pertence a um modelo nobre de Hollywood, com raízes nas obras de grandes autores dramáticos e melodramáticos como Elia Kazan ou Otto Preminger, infelizmente pouco praticado na actual produção — Clint Eastwood é, claramente, uma das excepções. A sua matéria nuclear será a amarga distância que as personagens descobrem (e nós com elas) entre um certo imaginário familiar, poético e redentor, e as convulsões muito concretas de um quotidiano em que todos os valores tradicionais estão a ser postos à prova.
Deparamos, assim, com a presença transversal de temas emblemáticos dos anos 60, desde os protestos contra a guerra do Vietname até às dramáticas derivas de uma intensa contra-cultura, para utilizarmos o termo consagrado por Theodore Roszak (no seu livro The Making of a Counter Culture, editado em 1969). Merry é a ambígua ilustração de tal dinâmica, com tanto de heroína como de vítima, arrastando os pais para terrenos de intimidade e introspecção que, em boa verdade, desmentem o seu próprio projecto de vida.
Para explicar as peculiares emoções de Uma História Americana, talvez seja fundamental lembrar que se trata de um filme dirigido por um actor. É mesmo uma estreia: Ewan McGregor assina, aqui, a sua primeira realização, ancorando o seu trabalho na rigorosa gestão de um elenco dominado por ele próprio, no papel do pai, e Jennifer Connelly, compondo a figura da mãe como um fantasma das tradicionais matriarcas do cinema clássico americano (John Ford é o contraponto que vem à memória), vivendo a tragédia da filha como uma viagem entre a lucidez e a loucura. Isto sem esquecer, precisamente, a singular personagem da filha, interpretada por Dakota Fanning (e, nas cenas da infância e da adolescência, por Ocean James e Hannah Nordberg, respectivamente).
Será preciso acrescentar que este é também um filme de inusitada actualidade política? Não “pró” ou anti” Trump — evitemos os simplismos da moda. Nele deparamos com uma América de identidade dolorosamente esfrangalhada, com as suas gerações separadas de modo radical. São temas e sinais com 50 anos, mas interiores ao nosso presente.

domingo, março 06, 2016

Excesso de informação [citação]

FOTO: Jordi Vicent / El País
>>> Em algumas das sociedades totalitárias do mundo, o grande problema político pode ser uma censura oficial que labora para estrangular o fluxo da informação. Na nossa, o problema é exactamente o oposto. Acima de tudo, sofremos de um excesso de informação não tratada, não digerida, a circular em todos os meios à nossa volta.

THEODORE ROSZAK
University of California Press, 1994

sábado, julho 24, 2010

Fotografia documental
no "Getty" de Los Angeles

LEONARD FREED
Nova Orleães
1965

A história da fotografia dos últimos 50 anos — e, muito em particular, a história iconográfica dos EUA — sofre uma viragem dramática ao longo da década de 60, com a emergência de novas temáticas sociais e políticas sustentadas pelos mais diversos fenómenos culturais e contraculturais [vale a pena evocar, a propósito, a noção de contracultura tal como foi formulada por Theodore Roszak]. É, justamente, para observar algumas marcas dessa viragem que surge a exposição 'Engaged observers', em Los Angeles, no Museu Getty (29 Junho/14 Novembro).
Os observadores empenhados a que se refere o título são modelos da fotografia documental ("fotojornalismo", se preferirem) do último meio século, incluindo Philip Jones Griffiths (cuja foto de um soldado americano a falar com uma criança vietnamita surge na capa do catálogo), Leonard Freed (retratando a segregação racial nos anos 60, trabalho que deu origem ao livro de 1968, Black in White America), Susan Meiselas (com as suas imagens dos conflitos que abalaram a Nicarágua, em finais da década de 70), Mary Ellen Mark (testemunhando, em 1983, o quotidiano das crianças errantes das ruas de Seattle) e James Nachtwey (com um portfolio sobre as unidades médicas na guerra do Iraque, em 2006) — um painel notável de uma prática fotográfica que não desiste de olhar o mundo à sua volta, à nossa volta.

MARY ELLEN MARK
"Rat" e Mike com uma pistola, Seattle
1983