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segunda-feira, dezembro 30, 2024

2024 / 10 filmes [5]

* MEMÓRIA, de Michel Franco

Depois de Meryl Streep, ninguém como Jessica Chastain mantém uma relação directa, exuberante e sofisticada com a tradição que algumas actrizes emblemáticas do classicismo de Hollywood — a começar por Bette Davis e Katharine Hepburn — ajudaram a definir. Aqui, contracenando com o também brilhante Peter Sarsgaard, Chastain expõe, com divina clareza, os meandros de uma relação em que identidade e desejo se igualam e contaminam num mesmo fôlego — humano, demasiado humano.


[ Reality ] [ Um Casal ] [ Challengers ] [ No Interior do Casulo Amarelo ]
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sábado, fevereiro 04, 2023

Jessica Chastain na Broadway

É um dos acontecimentos mais aguardados do ano teatral: A Casa da Boneca, de Henrik Ibsen, vai regressar à Broadway — mais precisamente ao Hudson Theatre —, com Jessica Chastain no papel de Nora. A encenação é de Jamie Lloyd, a partir de uma nova adaptação de Amy Herzog. E porque nestas coisas a arte da promoção também conta, eis um video de 15 maravilhosos segundos.
 

sexta-feira, abril 01, 2022

Jessica Chastain & Tammy Faye

Tammy Faye reinventada por Jessica Chastain:
um prodígio de representação

Centrado no notável trabalho de Jessica Chastain, Os Olhos de Tammy Faye evoca de modo subtil uma figura emblemática da história agitada das igrejas evangelistas dos EUA — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 março, três dias antes dos prémios da Academia de Hollywood), com o título 'Jessica Chastain a caminho do seu primeiro Oscar'.

Jessica Chastain
Num tempo de tão chocante desvalorização social do pensamento crítico, recordemos uma verdade rudimentar do campo cinematográfico: o trabalho do crítico, seja qual for o grau do seu talento, não se confunde com a pueril “adivinhação” do que quer que seja — a começar pelos possíveis vencedores dos próximos Oscars (na madrugada de domingo para segunda-feira, em Los Angeles).
O que não impede a suposição de que, graças à sua prodigiosa composição em Os Olhos de Tammy Faye (Disney+), Jessica Chastain irá arrebatar a estatueta dourada de melhor actriz. Não se trata de um palpite pessoal (irrelevante, para todos os efeitos), mas sim do resultado de diversas análises de jornalistas dos EUA — nomeadamente em The Hollywood Reporter e Variety, ou no site Gold Derby —, conhecedores directos das dinâmicas internas da indústria de Hollywood.
Jessica Chastain tem assim a terceira nomeação para um Oscar, depois de The Help/As Serviçais (2011), de Tate Taylor, neste caso como secundária, e Zero Dark Thirty/00:30 A Hora Negra (2012), de Kathryn Bigelow. Sem esquecer, claro, que a sua filmografia inclui títulos tão admiráveis como A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, Miss Julie (2014), de Liv Ullmann, ou Jogo da Alta Roda (2017), de Aaron Sorkin.
Dir-se-ia que ela possui essa “duplicidade” dramática que, noutros tempos, distinguiu actrizes como Katharine Hepburn ou Bette Davis: uma clássica aura de estrela (com ela, a expressão “star power” volta a ter sentido) e uma invulgar, por vezes desarmante, capacidade de transfiguração que a faz escapar a qualquer estereotipo ou “imagem de marca”. Assim acontece a interpretar a personagem, nada óbvia, afinal misteriosa, de Tammy Faye (1942-2007).

Religião & televisão

No imaginário popular dos EUA, a figura de Tammy Faye surge como protagonista de um capítulo fulcral na história das igrejas evangelistas. É um capítulo visceralmente televisivo, uma vez que, com o seu marido Jim Bakker (interpretado pelo também magnífico Andrew Garfield), ela criou o programa The PTL Club, verdadeiro “talk show” de evangelização emitido ao longo de 14 temporadas, entre 1974 e 1989 (PTL: “Praise the Lord”, “Louvado seja Deus”).
A vida de Tammy Faye contém uma avalanche de elementos susceptíveis de transformar a respectiva evocação num rol de peripécias caricaturais ou num inventário dos escândalos a que, inevitavelmente, o seu nome surgiu associado. Primeiro, porque a exuberância e a lógica de “entertainment” das suas aparições públicas — foi também cantora, tendo gravado cerca de duas dezenas de álbuns — a definem como uma entidade “kitsch”, bizarra e desconcertante; depois, porque The PTL Club foi objecto de um inusitado desenvolvimento financeiro, incluindo a criação do Heritage USA (“parque temático cristão”, encerrado em 1989), numa teia de esquemas fraudulentos que levaram Jim Bakker à prisão.
Numa entrevista dada ao Gold Derby (disponível no YouTube), Abe Sylvia, responsável pelo extraordinário argumento de Os Olhos de Tammy Faye, define de forma exemplar uma regra de trabalho que, em boa verdade, contamina todos os aspectos do filme. A saber: a definição da personagem central através de um princípio de partilha de amor por todos os seus semelhantes. Isso não exclui que o seu enriquecimento tenha acontecido em paralelo com a acção do marido, mas também não a reduz a um ícone parado no tempo. Por vezes, a sua acção desafiou mesmo os preconceitos da sua igreja: recordando a adolescência em que escondeu a sua própria homossexualidade, Abe Sylvia evoca o afecto de Tammy Faye pela comunidade gay, aliás explicitado numa lendária entrevista televisiva, em meados da década de 80, com Steve Pieters, homossexual, pastor cristão, atingido pela sida.

Michael Showalter
Uma escrita realista

Surpreendente em tudo isto é o misto de contenção e contundência da realização de Michael Showalter, ele cuja carreira tem passado sobretudo pela televisão, com algumas derivações cinematográficas, incluindo a curiosa comédia romântica Amor de Improviso (2017). Os Olhos de Tammy Faye possui, aliás, as qualidades de um modelo de biografia em que a cuidada contextualização histórica das personagens e da sua acção — lembrando, por exemplo, o papel dos evangelistas na eleição de Ronald Reagan — evita sempre a sua redução a “símbolos” parados no tempo. Abe Sylvia diz isso mesmo, lembrando como era importante que as personagens não surgissem “como se já conhecessem o seu lugar na história”.
A composição de Tammy Faye por Jessica Chastain é tanto mais complexa quanto o filme contorna todas as possibilidades de determinismo dramático, resistindo a qualquer demonização da personagem, mas também recusando tratá-la como expressão de uma inocência desligada dos factos e da época da sua história. Nesta perspectiva, creio que importa não confundir as suas componentes teatrais com a escrita do próprio filme: Os Olhos de Tammy Faye é um objecto de um realismo intransigente e, afinal, fora de moda.

sexta-feira, março 04, 2022

A caminho dos Oscars

Adriana De Bose em West Side Story:
a caminho do Oscar de melhor actriz secundária

Os prémios da Academia de Hollywood serão entregues a 27 de março. Com 12 nomeações, O Poder do Cão lidera a corrida aos Oscars referentes à produção de 2021, num ano em que, curiosamente, vários filmes, a começar por West Side Story, são testemunho de uma invulgar riqueza musical — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 fevereiro), com o título 'Os Oscars têm uma música própria'.

Música, eis a questão. Nas nomeações dos Oscars referentes à produção de 2021 encontramos, por exemplo: Billie Eilish, candidata na categoria de melhor canção, com No Time to Die, tema-título do último filme de James Bond (composto com o irmão, Finneas O’Connell). Ou ainda o baterista da banda The Roots, Questlove: o seu Summer of Soul, dando nova vida aos registos do Harlem Cultural Festival de 1969, surge entre os que podem ganhar a categoria de melhor documentário. Isto sem esquecer que Jonny Greenwood, membro dos Radiohead, volta a integrar os nomeados a melhor banda sonora graças à sua partitura para O Poder do Cão, de Jane Campion.
É caso para dizer que ecoa, aqui, uma música muito própria, de tal modo os prémios da Academia de Hollywood conseguem congregar aquela que é a maior estrela pop da actualidade, Billie Eilish, claro, com memórias do património musical afro-americano e o experimentalismo de Greenwood. Foi ele que compôs também a música de Spencer, de Pablo Larraín, porventura o mais “esquecido” dos grandes filmes de 2021, embora esteja representado por uma nomeação, na categoria de melhor actriz, para a admirável Kristen Stewart.
Enfim, não esqueçamos a renovada presença de Steven Spielberg. O seu West Side Story, com sete nomeações, possui o fulgor de um verdadeiro panfleto — musical, justamente. A recriação da obra de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim — que deu origem ao primeiro West Side Story (1961), assinado por Robert Wise e Jerome Robbins — repõe na linha da frente um género nem sempre muito reconhecido na história moderna dos Oscars. E se é verdade que todas as apostas são sempre um exercício superficial, por vezes fútil, não é menos verdade que podemos supor que na comunidade de Hollywood todos ou quase todos acreditam que Ariana DeBose, a “Anita” escolhida por Spielberg, tem garantida a estatueta de melhor actriz secundária.
Enfim, a musicalidade de tudo isto não esgota a sedutora pluralidade das nomeações, este ano com um luso-canadiano também em destaque: graças ao seu excelente trabalho em Nightmare Alley, de Guillermo Del Todo, Luís Sequeira é um dos candidatos ao Oscar de melhor guarda-roupa. E também não diminui, de modo algum, a proeza de O Poder do Cão, líder na estatística das nomeações: encontramo-lo em nada mais nada menos que 12 categorias, incluindo, além de melhor filme, as de realização, actor (Benedict Cumberbatch), actor secundário (duas vezes: Jesse Plemons e Kodi Smit-McPhee) e actriz secundária (Kirsten Dunst). Uma coisa é certa: nenhum filme tem nomeações que lhe permitam obter o “quinteto dourado” dos Oscars — filme+realização+actor+actriz+ argumento —, essa conjugação mágica que só aconteceu três vezes (a última data de 1992, com a consagração de O Silêncio dos Inocentes).
Aliás, O Poder do Cão pode simbolizar também as evidências e ambivalências do confronto que, de uma maneira ou de outra, passou a marcar todo o território cinematográfico. A saber: a tensão entre o circuito tradicional das salas e as plataformas de “streaming”. Assim, O Poder do Cão é o emblema perfeito da produção multifacetada da Netflix e da sua ambição (muito legítima, entenda-se) de conseguir, finalmente, arrebatar o Oscar de melhor filme.
Até ao dia da cerimónia destes 94ºs prémios das Academia (27 de março), iremos, por certo, compreendendo melhor o modo como estas nomeações reflectem o estado convulsivo, afinal eminentemente criativo, em que vive a produção cinematográfica. Inclusive nas suas curiosas “contradições”. Exemplo? Repare-se no quinteto de nomeadas para o Oscar de melhor actriz: Jessica Chastain (The Eyes of Tammy Faye), Olivia Colman (A Filha Perdida), Penélope Cruz (Mães Paralelas), Nicole Kidman (Being the Ricardos) e a já citada Kristen Stewart. Que têm em comum? Pois bem, nenhuma delas está nos dez títulos que concorrem para melhor filme — não é inédito, mas não acontecia há 16 anos.

sexta-feira, fevereiro 18, 2022

Isto não é 007

Nobody's perfect...

Jessica Chastain lidera um elenco apostado em refazer James Bond em tom “feminino”: não vem daí mal ao mundo, mas a imaginação cinematográfica está longe de ser brilhante — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 janeiro).

O que significa Agentes 355? Digamos que quando um filme nos faz encalhar na “mensagem” do seu título algo vai mal (no original: The 355). Até porque, lá para o meio da acção, vamos deparar com uma cena, dramaticamente dispensável, em que uma das personagens vem explicar que se trata de um epíteto lendário ligado à história da espionagem no feminino…
Eis a eventual chave da questão: a possibilidade de “mudar o sexo” das histórias de espiões. Não exactamente regressando ao esplendor romântico de outros tempos — lembramo-nos, claro, de Greta Garbo em Mata Hari (1931) —, antes apostando numa derivação algo requentada de James Bond, agora com mulheres a defender a humanidade de uma arma (informática, pois claro) capaz de destruir tudo e mais alguma coisa.
Há aqui um daqueles simplismos ideológicos que, atrevo-me a pensar, os feminismos vários que têm proliferado no recente cinema americano teriam interesse em questionar — e nós com eles. A saber: porque é que um banal filme de espionagem com heróis masculinos passa a ser um manifesto artístico (e, nessa medida, um “statement” moral) quando são mulheres a protagonizar a mesma banalidade?
Enfim, esta descrição pessimista não faz justiça à excelência dos talentos envolvidos. A começar por Jessica Chastain, actualmente em destaque em duas ofertas do “streaming”: a mini-série Scenes from a Marriage (HBO) e o filme Jogo da Alta-Roda (Prime Video). Foi ela que, na dupla condição de actriz e produtora, propôs o conceito de uma variação feminina sobre 007 e a série Missão Impossível ao realizador Simon Kinberg, depois de com ele ter rodado X-Men: Fénix Negra (2019). Chastain e as protagonistas inicialmente escolhidas — Penélope Cruz, Marion Cotillard, Fan Bingbing e Lupita Nyong’o — estiveram mesmo na edição de 2018 do Festival de Cannes para promover o projecto de The 355.
Os resultados são reveladores de uma bizarra insensatez. É verdade que, tentando explorar uma lógica “intimista” que ganhou força nos mais recentes títulos de James Bond — com destaque para os que foram dirigidos por Sam Mendes: Skyfall (2012) e Spectre (2015) —, aqui encontramos alguns momentos de sofisticada vibração emocional, sobretudo a cargo de Chastain e Diane Kruger (que, entretanto, substituíra Cotillard). Mas não é menos verdade que a “obrigação” de tudo pontuar com soluções estereotipados de acção física (?) vai diminuindo as singularidades com que, apesar de tudo, as personagens femininas foram concebidas — ainda que, convenhamos, Penélope Cruz não consiga emprestar verosimilhança à sua terapeuta colombiana envolvida numa operação da CIA…
Nos momentos mais felizes, Agentes 355 faz lembrar um certo misto de drama e ironia que marcou alguns notáveis filmes de espiões feitos há cerca de meio século — penso, por exemplo, em Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack. É pena que o projecto se vá refugiando num estilo convencional que Simon Kinberg aplica com a eficácia de um tarefeiro sem imaginação. Como se prova, é um risco confiar nos homens.

domingo, fevereiro 13, 2022

O valor esquecido da intimidade

Jessica Chastain e Oscar Isaac:
face ao olho clínico da câmara de filmar

Na série Scenes from a Marriage reencontramos o valor dos olhares, palavras e silêncios que não são uma mercadoria audiovisual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 janeiro).

Numa carta enviada a Jean-Paul Sartre, a 19 de janeiro de 1940, Simone de Beauvoir (Lettres à Sartre, ed. Gallimard, 1990) tece algumas considerações sobre o processo de escrita de O Ser e o Nada (que Sartre publicaria em 1943), derivando depois para diversos apontamentos sobre o amor. “Amo-vos”, escreve ela, evitando como sempre o tratamento por “tu” (“Je vous aime”). Por contraste ou ironia, logo a seguir refere também que uma vez, em Saint-Germain-les-Belles, Sartre lhe disse que ela é alguém que, no amor, “não se dá”. Entrecortada por várias considerações domésticas, surge então esta frase radical, de um radicalismo trágico contaminado por uma metódica promessa de riso: “Acontece que o amor não é uma simbiose, mas sobre isso havemos de verter algumas lágrimas noutra altura”.
Há, talvez, outra maneira de dizer isto: a intimidade que o amor deseja, promete ou imagina não é um dado adquirido, muito menos uma garantia enunciada ou, por assim dizer, promulgada pelo contrato (afectivo “ou” legal, eventualmente afectivo “e” legal) que une dois humanos. Da intimidade apenas sabemos que exprime a intensidade microscópica do presente, sem passado que a caucione ou futuro que garanta a sua repetição. Ou como escreve Roland Barthes nos seus Fragmentos de um Discurso Amoroso (Edições 70, Lisboa, 1981, tradução de Isabel Gonçalves): “Passada a primeira confissão, ‘eu amo-te’ deixa de ter significado; nada mais faz do que retomar de modo enigmático, tão vazia parece, a mensagem antiga (que talvez não tenha sido veiculada por estas palavras). Repito-o sem qualquer relevância: sai da linguagem, divaga, onde?”
Reencontro a questão labiríntica da intimidade na prodigiosa mini-série de Hagai Levi, Scenes from a Marriage (à semelhança de outras plataformas de streaming, a HBO ignora a possibilidade de traduzir os seus títulos para português). A inspiração provém de Cenas da Vida Conjugal, mini-série e filme que Ingmar Bergman realizou em 1973. Em termos esquemáticos, assistimos às convulsões do casamento de Jonathan e Mira — interpretados por Oscar Isaac e Jessica Chastain —, num processo de ruptura e reconciliação, amor e ódio, que parece não ter fim. E tanto mais quanto tal processo, ainda que com inevitáveis ressonâncias familiares, profissionais e sociais, só pode ser vivido como “coisa” íntima, alheia a qualquer exterior.
No domínio social (no “nosso” domínio social, entenda-se), a intimidade desapareceu como valor — e quase ninguém encara ou problematiza semelhante desastre existencial. Por um lado, é verdade, a sua simples definição apela a um certo “afastamento” de tudo o que é social. Ao mesmo tempo, no plano social, precisamente, a intimidade surge diariamente reduzida a mercadoria obscena do Big Brother televisivo, fenómeno que, perante a demissão argumentativa das chamadas entidades culturais e políticas, nos massacra com a noção de que a intimidade é “aquilo”. Sintoma triste: tem pertencido apenas a alguns registos de comédia a pedagogia de nos mostrarem a mediocridade do Big Brother — penso, concretamente, no programa de rádio Portugalex (Antena1), nos videos de Nilton (Instagram) e em quadros recentes de Herman José e dos actores do programa Cá por Casa (RTP1).
Ora, aquilo que regressa em Scenes from a Marriage, com uma contundência dramática plena de pudor, é a irredutibilidade de qualquer espaço íntimo. Não se trata de caracterizar o território daquele casal como algo que vai ser “revelado”, dir-se-ia “posto a nu” pelo facto de alguém o encenar e filmar. Afinal, quem pode garantir que o humano se encerra numa fronteira nítida ou estável? Certamente não por acaso, a realização pontua todos os episódios com elementos de mise en scène que nos recordam que estamos perante actores a representar uma ficção (de alguma maneira retomando o efeito de estranheza que Bergman aplicava, “entrevistando” os seus actores, Erland Josephson e Liv Ullmann).
Aquilo que regressa é o carácter intratável, infinitamente vulnerável, de qualquer intimidade. Na certeza de que a sua verdade não é partilhável — qualquer abertura a qualquer exterior anula a sua dinâmica, isto é, decompõe a dimensão íntima, mesmo quando tal dimensão possa ser habitada pela mais cruel ilusão comunicacional.
Nesta perspectiva, Scenes from a Marriage é também um belíssimo testemunho do valor antigo (“bergmaniano”, se quiserem) do trabalho dos actores. Jessica Chastain e Oscar Isaac são, por certo, dois dos mais fabulosos actores contemporâneos — recorde-se esse filme admirável que é Um Ano Muito Violento (2014), de J. C. Chandor, em que interpretavam um casal bem diferente, mas também, de alguma maneira, a experimentar a fragilidade da sua intimidade. Reencontramo-los, aqui, na corda bamba emocional de um trabalho em que, do mais breve movimento do olhar à hesitação gutural de uma palavra, tudo é importante, tudo pertence à maravilhosa instabilidade de ser, de estar vivo. E tudo decorre desse acontecimento sem equivalente que consiste em arriscar tal instabilidade, os seus gestos e também os seus silêncios, face ao olho clínico de uma câmara de filmar.

terça-feira, novembro 16, 2021

Da China, com Jessica Chastain

Cinema? Moda? Fotografia? Uma star é alguém com o poder de diluir todas as fronteiras, geográficas ou culturais. Eis Jessica Chastain na edição de dezembro da Vogue China — eloquente, elegante, com a serena sofisticação que distingue as estrelas.

domingo, dezembro 29, 2019

10 filmes que marcaram a década [2]


[ A Rede Social ]

A ÁRVORE DA VIDA (2011), de Terrence Malick


Não é por acaso que o nome e a obra de Terrence Malick têm estado no centro de alguns dos debates mais interessantes sobre o presente e o futuro do cinema. Com este filme, em particular, o veterano cineasta americano consegue relançar o tema do sagrado no interior da paisagem humana, ao mesmo tempo pressentindo a necessidade de um cinema capaz de reinventar as suas linguagens clássicas, sem renegar as respectivas memórias.

domingo, setembro 09, 2018

Jessica Chastain e os índios

Jessica Chastain interpreta Caroline Weldon, uma mulher que retratou, em pintura, os índios Sioux. Ou como o cinema reencontra o valor crítico do “western” moderno — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro).

Um dos efeitos do movimento #MeToo no campo do cinema tem sido o reforço de uma reivindicação feminina, de uma só vez profissional e artística. A saber: na percepção da história (e das histórias que os filmes narram), é importante que as personagens de mulheres sejam realmente consistentes e contrastadas, porventura contraditórias, evitando clichés dramáticos ou morais.
Jessica Chastain tem sido uma das vozes mais militantes nesse domínio e não há dúvida que o seu sofisticado talento tem estado ao serviço de personagens genuinamente complexas. Para nos ficarmos por um único exemplo, lembremos esse filme admirável que é Molly’s Game/Jogo da Alta Roda (2017), retrato íntimo de uma promotora de jogos privados de poker que marcou a estreia na realização do grande Aaron Sorkin [trailer].


Agora, graças a Mulher que Segue à Frente, produção americana dirigida pela inglesa Susanna White, Chastain encontra outra admirável figura histórica: Caroline Weldon (1844-1921), pintora americana de origem suíça que, além de ter militado pelos direitos dos índios Sioux, retratou o lendário chefe Touro Sentado [eis o respectivo quadro].


O filme terá como limitação maior uma certa indecisão de tom. Por um lado, apresenta-se como uma crónica romanesca, não romântica, sobre a convivência de Weldon e Touro Sentado, este interpretado por Michael Greyeyes (actor canadiano cuja árvore genealógica remonta aos índios Cree); por outro lado, Mulher que Segue à Frente reflecte uma época de grandes convulsões em que, de forma mais ou menos compulsiva, o governo norte-americano tentava colocar vários tribos em reservas.


O filme torna-se francamente esquemático na encenação da cavalaria dos EUA, desde logo na caracterização do coronel Silas Grove, interpretado por um Sam Rockwell à deriva. Seja como for, encontramos aqui um espírito, de uma só vez cinematográfico e histórico, que nos remete para a herança de alguns “westerns” críticos das décadas de 1960/70, empenhados, precisamente, em superar as visões mais esquemáticas da expansão para Oeste e, em particular, da violência entre brancos e índios.
Podemos recordar, assim, títulos como A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, ou O Pequeno Grande Homem (1970), de Arthur Penn. E se é verdade que o trabalho de Susanna White nunca se aproxima da excelência de tais referências, não é menos verdade que Mulher que Segue à Frente consegue demarcar-se do “cinema de Verão” (?) que se esgota nos lugares-comuns de super-heróis e afins. Desta vez, trata-se mesmo de discutir as componentes do heroísmo e o valor das imagens — afinal de contas, Caroline Weldon era uma mulher que acreditava nesse valor.

quinta-feira, janeiro 18, 2018

Sorkin & Chastain (2/2)

Aaron Sorkin escreveu e realizou, Jessica Chastain interpreta: Jogo da Alta Roda é, entre nós, uma das primeiras grandes estreias de 2018 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Janeiro), com o título 'Aaron & Jessica'.

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Alfred Hitchcock e Grace Kelly. John Ford e John Wayne. Jean-Luc Godard e Anna Karina. Sydney Pollack e Robert Redford. André Téchiné e Catherine Deneuve. A história do cinema apresenta-nos muitas relações de trabalho entre realizadores e intérpretes que distinguimos pela singularidade dos seus resultados. Sentimos mesmo que há actores e actrizes que, independentemente do brilhantismo de outras composições, exibem um suplemento (de alma, talvez) quando dirigidos por determinados cineastas.
Molly's Game
É cedo para dizer se Aaron Sorkin e Jessica Chastain têm, ou vão ter, uma relação desse teor — Jogo da Alta Roda é, afinal, a primeira realização de Sorkin. Em qualquer caso, a sua maneira de contar a história de Molly Bloom, promotora de jogos de poker, é tanto mais fascinante quanto o filme vai escapando, ponto por ponto, às soluções mais fáceis e, sobretudo, mais moralistas que tal história podia atrair.
Especialmente interessante (porventura frustrante para alguns espectadores) é a frieza erótica que contamina todos os aspectos do filme. Sedução do dinheiro? Transfiguração de Molly em objecto de desejo por causa do dinheiro que manipula? Atracção feérica da “alta roda” que, com algum simplismo, está no título português? Nada disso. Este é, de facto, um filme sobre o jogo de Molly (recorde-se o título original: Molly’s Game) e o seu enigma primordial cujo assombramento ela parece querer superar através da própria vertigem de milhões de dólares em que se envolve. Daí a beleza radical da cena com que Sorkin decide encerrar o seu filme. Explicando o enigma de Molly? Sim, até certo ponto, mas sobretudo mostrando que a identidade de um ser humano não cabe em nenhum cliché dramático — chama-se a isso ser um grande narrador.

sábado, janeiro 13, 2018

Sorkin & Chastain (1/2)

Jessica Chastain
Aaron Sorkin escreveu e realizou, Jessica Chastain interpreta: Jogo da Alta Roda é, entre nós, uma das primeiras grandes estreias de 2018 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Janeiro), com o título 'O jogo de poker, o dinheiro, a fama e a solidão de tudo isso'.

O ano cinematográfico começa com a revelação de um brilhante cineasta: Aaron Sorkin. A sua primeira realização, Jogo da Alta Roda, aborda uma personagem verídica: Molly Bloom, organizadora de jogos de poker em Los Angeles e Nova Iorque que, em 2013, na sequência de uma investigação do FBI, foi acusada de cumplicidade em esquemas de lavagem de dinheiro: ilibada da maior parte das acusações, seria condenada a um ano de pena suspensa, ao pagamento de uma multa de mil dólares e ao cumprimento de 200 horas de trabalho comunitário.
Em boa verdade, o nome de Sorkin não é uma surpresa. Afinal de contas, ele impôs-se como um dos mais brilhantes argumentistas de Hollywood, tendo obtido o Oscar de melhor argumento adaptado com A Rede Social (2010), a história do nascimento do Facebook realizada por David Fincher. Antes disso, escreveu, por exemplo, a peça A Few Good Men, por ele próprio adaptada para um filme de 1992, dirigido por Rob Reiner, com Tom Cruise e Jack Nicholson (entre nós chamado Uma Questão de Honra); foi também criador e principal argumentista da série televisiva Os Homens do Presidente (1999-2006), tendo assinado, mais recentemente, os argumentos de Moneyball – Jogo de Risco (Bennett Miller, 2011) e Steve Jobs (Danny Boyle, 2015).
Aaron Sorkin
Estamos perante um criador moderno, mas de perfil clássico. Quando recebeu o seu Oscar, Sorkin fez mesmo questão de evocar a herança de Paddy Chayefsky (1923-1981), referência lendária da arte do argumento num tempo em que as interacções cinema/televisão se tornavam cada vez mais importantes — foi ele que escreveu Network – Escândalo na TV (Sidney Lumet, 1976), filme premonitório dos horrores do populismo televisivo.
A complexidade humana das personagens constitui a matéria primordial de Sorkin, de tal modo que não parece possível imaginar Jogo de Alta Roda sem a prodigiosa composição de Molly Bloom por Jessica Chastain. Vogamos para além da questão da “inocência” ou “culpa” da figura central, mesmo se tal questão funciona como motor da dimensão “policial” do argumento. Para Sorkin, trata-se de colocar em cena o misto de vulnerabilidade e força de uma personagem que falhou o seu sonho de ser esquiadora (sendo, por isso, essencial o valor simbólico da cena de abertura), de alguma maneira “compensando” através dos jogos de poker essa falha fundadora da sua identidade — o título original do filme é Molly’s Game, retomando o do livro que a própria Molly Bloom escreveu.
Ironia sugestiva, sem dúvida: Molly Bloom tem o mesmo nome da personagem feminina de Ulisses, de James Joyce, tecendo uma infindável teia de reconciliação com a realidade. Daí a comoção que Sorkin e Chastain colocam em cena: por um lado, Molly acede a um universo de gente famosa interessada nos seus jogos, incluindo Tobey Maguire, Leonardo DiCaprio e Ben Affleck (nenhum deles identificado no filme, embora a personagem interpretada por Michael Cera remeta, talvez, para a figura de Maguire); por outro lado, a sua vulnerabilidade passa pela possibilidade de refazer o seu primitivo laço com o pai (Kevin Costner, numa breve mas delicada composição, por certo das mais subtis de toda a sua carreira). Este é, afinal, um filme sobre o sucesso e a circulação do dinheiro, mas também sobre o preço incalculável da solidão.

terça-feira, agosto 15, 2017

Aaron Sorkin + Jessica Chastain

Aaron Sorkin, argumentista das séries Os Homens do Presidente (1999-2006) e The Newsroom (2012-2014), e de filmes como A Rede Social (David Fincher, 2010) e Steve Jobs (Danny Boyle, 2015), estreia-se na realização com Molly's Game — trata-se da adaptação do livro homónimo de Molly Bloom que, durante alguns anos, dirigiu um clube privado de poker frequentado por algumas das figuras mais poderosas de Hollywood.
Para além da expectativa suscitada pelo novo trabalho daquele que é um dos mais notáveis argumentistas da actualidade, não será arriscado supor que, no papel de Molly, Jessica Chastain surgirá, no mínimo, na linha da frente para uma nova nomeação para o Oscar. Seja como for, registe-se que Molly's Game será revelado em Setembro no Festival de Toronto, chegando aos ecrãs dos EUA no dia 22 de Novembro. 

>>> Trailer de Molly's Game + extracto de uma conversa com Aaron Sorkin na Loyola Marymount University, em 2016 + entrevista de CinemaBlend com Aaron Sorkin e Jessica Chastain, no ComicCon 2017.





sábado, julho 22, 2017

Jessica Chastain a preto e branco

O belga Willy Vanderperre fotografou (e filmou) Jessica Chastain para a nova campanha da marca Prada: um portfolio a preto e branco, intitulado 'Persona', em que a elegância da pose se combina com uma sofisticação eminentemente nostágica — a preto e branco, claro.

quarta-feira, abril 26, 2017

Jessica Chastain no Zoo (2/2)

Jessica Chastain protagoniza um drama da Segunda Guerra Mundial cujo cenário principal é o Jardim Zoológico de Varsóvia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Crianças e animais'.

[ 1 ]

Numa entrevista a propósito do seu trabalho com animais em O Jardim da Esperança, Jessica Chastain arriscava um paralelismo artístico, dando conta do seu gosto em trabalhar com outros seres “difíceis” como são as crianças. Não era uma curiosidade mais ou menos pitoresca. Nem significava, muito menos, qualquer menosprezo pela exigência profissional de uma carreira, sendo ela, além do mais, uma das mais admiráveis actrizes reveladas nos últimos anos (desde que a descobrimos, em 2011, em Coriolano, uma ousada versão de Shakespeare, protagonizada e dirigida por Ralph Fiennes). Acontece que contracenar com crianças pode envolver a revelação de um desconcertante desprendimento face aos poderes de fixação da câmara.
Não falo, como é óbvio, dos mecanismos de tipificação que encontramos em linguagens muito poderosas (e estereotipadas) como são as telenovelas ou, de um modo geral, a publicidade — muitas vezes, temos mesmo a sensação que, em tais universos, as crianças só têm direito a ser figuradas como inevitavelmente patetas, desagradáveis e destruidoras ou, então, exibindo a complexidade de argumentação de uma tese universitária.
Falo antes de uma espécie de desprendimento físico e emocional que se pode manifestar face à câmara de filmar — aliás, em boa verdade, como se a câmara não estivesse lá. Não é um tema específico do cinema que está em jogo. No limite, trata-se mesmo de uma questão com fundas raízes sociais que envolve, em particular, a capacidade (ou a impotência) para figurar o mundo infantil e juvenil. Aquilo que Chastain evoca não é o carácter “ligeiro” das personagens de crianças, antes o facto de a sua identidade instável envolver um desafio radical à compreensão do próprio factor humano — lidar com isso, dentro ou fora dos filmes, nunca é simples.

sábado, abril 22, 2017

Jessica Chastain no Zoo (1/2)

Jessica Chastain protagoniza um drama da Segunda Guerra Mundial cujo cenário principal é o Jardim Zoológico de Varsóvia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'A guerra vista através de um Jardim Zoológico'.

Nos últimos anos, pelo menos desde a produção alemã Lore (2012), dirigida pela australiana Cate Shortland, temos assistido ao aparecimento de vários (e muito interessantes) filmes apostados em reencenar a Segunda Guerra Mundial e, em particular, as memórias do Holocausto muito para além das regras dramáticas e simbólicas do tradicional “filme de guerra”. Um desses filmes, O Filho de Saul (2015), do húngaro Lászlo Nemes, arrebatou mesmo o Oscar de melhor filme estrangeiro. Baseado no livro homónimo da americana Diane Ackerman (entre nós publicado pela Editorial Presença), O Jardim da Esperança é mais um significativo exemplo da mesma tendência.
Tal como o extraordinário Paraíso, do russo Andrei Konchalovsky (lançado há uma semana nas salas portuguesas), somos confrontados com episódios muito particulares da política de extermínio dos judeus pelos nazis. No caso de Paraíso, tratava-se de construir uma teia situações e testemunhos elaborada a partir de três personagens fictícias. Em O Jardim da Esperança, deparamos com a experiência dramática do casal Jan e Antonina Zabinski, tratadores do Jardim Zoológico de Varsóvia — a invasão das tropas de Hitler, iniciada a 1 de Setembro de 1939, iria confrontá-los com a necessidade de reconstrução do seu jardim e, mais do que isso, com a urgência de defender as vidas de muitos judeus (escondendo-os nas caves do jardim) que tentavam escapar aos comboios destinados aos campos de concentração.
Estamos, neste caso, perante personagens verídicas. Aliás, o trabalho de Ackerman baseia-se, em grande parte, nas memórias da mulher do tratador do Jardim Zoológico (facto reflectido no título original do livro e do filme: The Zookeeper’s Wife). Interpretada pela brilhante Jessica Chastain, Antonina emerge como símbolo da decomposição brutal de todo um sistema de valores. Para ela, o seu jardim existia como a materialização prática, quase romântica, de um ideal de convivência com a pluralidade fascinante do mundo animal. Mais do que isso: através da relação íntima com os animais (veja-se, logo no começo, a cena em torno do pequeno elefante que acaba de nascer), o Zoo define-se como um espaço de genuína afirmação dos valores clássicos do humanismo.
Niki Caro, a realizadora neozelandesa de O Jardim da Esperança, não é estranha a este tipo de universos. Na sua filmografia, destaca-se A Domadora de Baleias (2002), um drama em tom de fábula marcado pelo património lendário do povo Maori, da Polinésia. Distinguido com vários prémios internacionais, chegou mesmo aos Oscars, tendo valido à jovem australiana Keisha Castle-Hughes (na altura com 12 anos) uma nomeação na categoria de melhor actriz.
Coproduzido pelo Reino Unido e EUA (com distribuição internacional da Focus Features americana), O Jardim da Esperança foi rodado na República Checa e constitui um típico exemplo daquilo que, hoje em dia, é um modelo corrente de produção independente. O seu orçamento de 20 milhões de dólares (18,7 milhões de euros), ainda que elevado para os padrões europeus, é francamente baixo quando comparado com os valores médios de Hollywood. Actualmente a estrear em vários países europeus, as suas receitas de 10 milhões de dólares no mercado americano (EUA e Canadá) dão-lhe o primeiro lugar na lista dos mais rentáveis filmes independentes de 2017.

segunda-feira, janeiro 16, 2017

Jessica Chastain, politicamente

Uma magnífica surpresa nas primeiras estreias do ano: centrado numa notável interpretação de Jessica Chastain, Miss Sloane apresenta uma visão contundente dos bastidores da política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Janeiro), com o título 'Jessica Chastain na selva política de Washington'.

Será que o fantasma de Bette Davis (1908-1989) reencarnou em Jessica Chastain? Ao vermos Miss Sloane, a pergunta adquire um sugestivo simbolismo. A personagem de Chastain — Elizabeth Sloane, uma figura de maquiavélica inteligência dos lobbies da cena política de Washington — parece reeditar para os espectadores do século XXI esse movimento de sedução e perversidade que Davis encarnou em clássicos como Jezebel, a Insubmissa (William Wyler, 1939) ou Eva (Joseph L. Mankiewicz, 1950). No seu misto de luminosidade e negrume, a performance de Chastain envolve qualquer coisa de radical, a colocar a par dos momentos mais altos da sua carreira em títulos como A Árvore da Vida (Terrence Malick, 2011), 00:30 A Hora Negra (Kathryn Bigelow, 2012) ou Miss Julie (Liv Ullmann, 2014).
A actriz convoca-nos através de um cliché automaticamente reconhecível: a mulher poderosa no interior de uma selva dominada por personagens e valores masculinos (daí resulta, aliás, o não muito feliz subtítulo português: Uma Mulher de Armas). A pouco e pouco, faz-nos ver que qualquer dicotomia masculino/feminino será insuficiente para compreender a lógica interna daquele universo.
Que está, então, em jogo? Uma questão de perturbante actualidade. A saber: de que modo as convulsões do mundo político são realmente geridas pelos seus protagonistas, ou apenas geradas por “consultores” e “agências” peritos na criação de aparências mais ou menos maliciosas? Mais ainda: até que ponto a acção de muitos políticos se foi reduzindo à administração dessas aparências?
Se acrescentarmos que o principal assunto que mobiliza Sloane é a legislação sobre o acesso dos cidadãos a armas de fogo, poderemos entender a sua redobrada actualidade. Realizado por John Madden (assinou, em 1998, o “oscarizado” A Paixão de Shakespeare), este é, afinal, um filme apostado em reavivar uma tradição narrativa em que o poder político não passa apenas pelas imagens (ou pelas plataformas audiovisuais, como agora se diz), mas também pelo valor primordial das palavras.
Daí que seja fundamental destacar o brilhante argumento de Miss Sloane, por certo um dos melhores da produção de 2016. É seu autor um principiante, de nome Jonathan Perera, que começou por ser advogado — de origem britânica, tentou uma carreira de professor de inglês na China e na Coreia do Sul, aí descobrindo o seu gosto de escrever... para cinema.
Na sofisticada elegância com que trata os diálogos, Jonathan Perera parece ser um discípulo de Aaron Sorkin, criador da série Os Homens do Presidente (1999-2006), vencedor de um Oscar com o argumento de A Rede Social (David Fincher, 2010). Mais do que isso: na sua arte de expor as ambivalências do poder através da tragédia das palavras, Perera afirma-se como um herdeiro directo do teatro e do cinema de David Mamet. Se quisermos romancear tudo isto, ma non troppo, podemos lembrar que, para rodar o filme Wild Salomé (2011), de e com Al Pacino, Chastain teve de desistir de uma hipótese de trabalho, em televisão, com... David Mamet. E também que, por esta altura, ela está a rodar Molly’s Game, escrito e dirigido por... Aaron Sorkin.