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sábado, dezembro 07, 2024

#SeAcabó
— o futebol como poderoso fenómeno cultural

O "Caso Rubiales" foi muito mais do que um banal "incidente" futebolístico

O chamado “Caso Rubiales” surge agora no filme #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol, um documentário produzido e difundido pela Netflix. É importante ver e pensar o jogo para lá da aceleração quotidiana das notícias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 novembro).

Eis uma boa notícia. Por uma vez, através do filme #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol (produzido e difundido pela Netflix), há uma proposta mediática capaz de gerar uma reflexão sobre a dimensão realmente cultural do futebol. Entenda-se: sobre o futebol como fenómeno que transporta, consolida e transfigura valores que são transversais a todo o tecido social.
Foi preciso um facto extremo, realmente fracturante, para que tal acontecesse: o chamado “Caso Rubiales”. A saber: no dia 20 de agosto de 2023, nas celebrações da vitória da Espanha no Mundial Feminino de Futebol, Luis Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, beijou na boca a jogadora Jenni Hermoso numa atitude, no mínimo, desrespeitadora. Mais do que isso: como mostra o filme realizado por Joanna Pardos, tal atitude não pode ser desligada de um sistema de relações com as jogadoras enraizado em mecanismos de regular instrumentalização emocional e rebaixamento moral.
Evitemos, por isso, relançar as histerias “militantes” que, na altura, foram promovidas por alguns discursos mediáticos, sobretudo de natureza televisiva. Não se trata de apelar a generalizações gratuitas sobre a condição masculina (ou feminina), como se o comportamento abusivo de um homem implicasse automaticamente “todos” os homens, obrigando cada um deles a demonstrar que não é um abusador de mulheres.
O filme de Joanna Pardos distingue-se por uma postura realmente pedagógica, não cedendo às facilidades com que se inventam “temas” polémicos apenas para instalar uma gritaria social que, em poucos dias, é descartada… sendo rapidamente substituída por uma nova barulheira concebida de forma igualmente gratuita e sensacionalista. O que está em jogo não se esgota no carácter irresponsável ou maligno de um homem, sendo exposto e analisado como um conjunto de regras (ou da falta delas) que contaminam (ou contaminaram) toda a organização do futebol feminino em Espanha.
Deparamos com uma visão que evita a facilidade, não só descritiva, mas moral, de tratar o “Caso Rubiales” como uma espécie de “prós & contras” da dupla Hermoso/Rubiales. Através dos depoimentos de várias jogadoras — e também da análise do tratamento noticioso do caso —, o filme expõe a perversa teia de comportamentos que permite perceber o “episódio do beijo” como mais, muito mais, do que um incidente descartável. Esta é também a história do nascimento do #SeAcabó, movimento que abalou a sociedade espanhola muito para lá do universo específico do futebol.

Parar para pensar

Daí que sejamos levados a reflectir sobre as regras de qualquer abordagem deste teor: não há um universo “específico” do futebol. Pensar o futebol (feminino ou masculino) como uma “ilha” temática será uma maneira de recalcar o seu imenso poder simbólico e económico, numa palavra, cultural — e isto em qualquer contexto social, incluindo o português.
A conjuntura retratada por #SeAcabó: O Beijo que Mudou o Futebol Espanhol é tanto mais significativa quanto a sua análise implica também um desafio ao próprio trabalho crítico. A pergunta é esta: como lidar com filmes que, de alguma maneira, retomam aquilo que já foi matéria de destaque no interior da aceleração informativa em que vivemos (ou somos obrigados a viver)?
A metódica realização de Joanna Pardos é eloquente. Trata-se de revisitar imagens que passaram pelo dia a dia das notícias, recusando agora a velocidade anedótica com que, por vezes, foram tratadas. Aquietar a vertigem pueril do olhar, parar para pensar, recusar transformar cada notícia em pretexto para um obsceno “tribunal popular” — eis algumas hipóteses clássicas do documentarismo cinematográfico cujo valor permanece intacto.

quinta-feira, agosto 29, 2024

A beleza perdida

Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882), de Édouard Manet

Será que ainda somos capazes de olhar com olhos de ver para um quadro de Manet? Não é certo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 agosto).

Como e quando aconteceu a desvalorização da beleza? Observe-se a avalanche quotidiana de imagens — da Reality TV aos concertos da chamada música pimba — e o modo como a sua sistemática difusão promove e, mais do que isso, procura naturalizar muitas formas de fealdade. O simples reconhecimento de tal estado de coisas é, ou poderia ser, um vector central de qualquer política cultural. E afigura-se tanto mais significativo quanto importa contornar, ou melhor, superar o infantilismo reinante de muitos discursos sobre o belo.
[ BeauxArts ]
Dito de outro modo: trata-se de fugir do espectro de ideias imposto pelo poder audiovisual da cultura tablóide — fortemente sustentada e alimentada pela normalização do Big Brother televisivo, iniciada há mais de 20 anos — e, pelo menos, reconhecer que a identificação do belo (ou a sua rejeição) existe no coração de qualquer dinâmica cultural.
Importa revalorizar a utilização da palavra “beleza”. Não é fácil, muito menos simples, contribuir para qualquer clarificação do problema, quanto mais não seja porque, da imprensa mais medíocre até ao uso populista dos admiráveis poderes televisivos, assistimos todos os dias ao triunfo de um conceito de beleza ocupado (como se fosse uma ocupação militar) pela vacuidade intelectual e a depressão existencial de “influencers”, vedetas da auto-ajuda, sacerdotes do bem estar universal, etc.
Evitemos, por isso, a vulgaridade estética e os seus agentes. Não se trata de discutir a beleza da pessoa A ou B, eventualmente a comparação da sua beleza com X ou Y. A fulanização da beleza constitui, aliás, o complemento tosco de um pensamento que não ultrapassa as banalidades correntes do marketing e reduz o mundo a mecanismos de “personalização” — há mesmo quem nos queira convencer que, da escolha do mais recente creme depilatório até à descoberta íntima de Deus, tudo é “personalizado” e passível de ser tratado com receitas mágicas herdades de mezinhas medievais.
O desafio que a conjuntura nos coloca é bem diferente — e é, sobretudo, de outra dimensão. O que está em jogo não é a beleza desta ou daquela pessoa, deste ou daquele objecto: é, isso sim, o modo como olhamos o mundo à nossa volta. Ou ainda: a capacidade que temos (ou, definitivamente, perdemos) de construir laços criativos, inteligentes e contagiantes entre o que nos é dado ver e, se possível, a partilha daquilo que vemos com os outros. Nesta perspectiva, a beleza pode ser uma questão de imagens, mas é também, talvez seja mesmo sobretudo, o aparato de circuitos, valores e pensamentos com que reconhecemos que habitamos um espaço comum.
[ Taschen ]
Contemplo os Cravos e Clematites num Vaso de Cristal (c. 1882) pintados por Édouard Manet. Resisto à solução pueril de dizer que o pintor soube reproduzir a vida contagiante de algumas flores tão “bonitas”… Na verdade, a mais básica disciplina do olhar recorda-me que as mesmas flores representadas por um pintor medíocre não passariam de um acontecimento banal, incapaz de mobilizar a minha atenção.
Nada a ver com um saber “superior” enraizado no reconhecimento prévio de Manet como personalidade incontornável na história da pintura. Entenda-se: o que está em jogo não é a confirmação da informação contida na ficha da Wikipedia dedicada a Manet (muito útil, reconheço), mas sim a percepção de que o quadro que contemplamos nasce de algo radical e insubstituível. A saber: uma relação. Talvez duas: primeiro, a do pintor com “aquilo” que decidiu partilhar connosco; depois, a do olhar de cada um de nós com o olhar do pintor.
Por que não expor este quadro numa emissão de televisão? Por que não mostrá-lo em silêncio, 60 segundos apenas, para ser visto no nosso ecrã caseiro?
São perguntas de um lirismo selvagem. Perante o estado das coisas constituem, pelo menos, uma arma legítima de reflexão. Afinal de contas, se se gastam horas, dias, semanas a perorar sobre as crises psicológicas que têm pontuado a carreira de João Félix (a quem manifesto a minha solidariedade), será assim tão escandaloso supor que talvez seja salutar não nos esquecermos de Manet? Não tenho a pretensão se supor que sei exactamente o que temos a ganhar, mas observo com tristeza o que vamos perdendo.

>>> Documentário de Jacques Vichet sobre Édouard Manet (2015).

domingo, fevereiro 25, 2024

A IMAGEM: William Keo, 2022

WILLIAM KEO / Magnum
Um espectador do jogo de futebol Marrocos-Argélia para a versão amadora da Taça das Nações Africanas
Aulnay-sous-bois, França, 2022.

sexta-feira, outubro 20, 2023

O tempo dos amadores
— ou Chaplin e o futebol

Caldas da Rainha: os Pavilhões do Parque

A defesa do património é uma ilusão: a cultura dominante na sociedade portuguesa é o futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 outubro), com o título 'O tempo dos amadores'.

Ao ler no DN de ontem (7 out.) o excelente artigo de Jorge Mangorrinha sobre “Os Pavilhões do Parque das Caldas da Rainha” não pude deixar de pensar na sala de cinema que existiu ao lado desses pavilhões, “prolongando” a sua iconografia: o Salão Ibéria. Assim mesmo, com a saborosa palavra ancestral, “Salão”, a remeter-nos para um tempo em que ir ao cinema era um genuíno ritual social, não uma correria histérica à mais recente produção da Marvel que, de um dia para o outro, ocupa não uma meia dúzia de salas, mas 20 por cento do mercado cinematográfico.
Através de um amargo simbolismo, o artigo recorda o longo processo de degradação dos Pavilhões: “Quando um património arde, ardemos todos nós”. Isto porque, há dias, essa degradação foi “confirmada” pelo fogo que, segundo a Gazeta das Caldas (28 set.), consumiu “o último piso do primeiro pavilhão, mas rápida acção evitou o pior”.
Recordo-me do último filme que vi no Ibéria, em meados da década de 1970, na companhia dos meus pais: Luzes da Ribalta [Limelight], a desencantada obra-prima de Charlie Chaplin com data de 1952, na altura em reposição em cópia nova. Ficámos no balcão, esse mesmo balcão que ruiu numa noite de chuva — foi a 9 de outubro de 1978. O Ibéria nunca mais funcionou.
Sabe-se que existe um projecto para a reconversão dos edifícios: “Os Pavilhões, que são património do Estado cedido à autarquia, foram, em 2017, concessionados à Visabeira para construir um hotel 5 estrelas, num investimento de 16 milhões de euros”, lê-se na mesma notícia da Gazeta das Caldas. O projecto deveria estar concluído em finais de 2023, mas as obras só terão começado há pouco tempo (Jornal de Leiria, 7 agosto). Há uma dedução simples a extrair da secura destes factos: apesar dos inequívocos sinais de degradação dos Pavilhões, durante quase meio século nada aconteceu no sentido de evitar a actual situação.
Não pretendo distribuir “culpas” ou “fulanizar” os problemas em causa — até porque estou longe de conhecer as nuances de tudo aquilo que aconteceu (e, sobretudo, do que não aconteceu) ao longo de 50 anos. Por isso mesmo, espero que se compreenda também que a tristeza com que recordo o Ibéria não pode ser resumida através da frase feita segundo a qual tudo isto reflecte um grande “desinvestimento” na cultura.
'Restos de Colecção'
Nada disso. Embora sabendo que o meu ponto de vista é radicalmente minoritário, para mim a palavra “cultura” não se refere a uma entidade única e unívoca. Tentando ser tão claro quanto os limites da minha linguagem mo permitem, entendo que a questão não decorre de qualquer tipo de unicidade: não há cultura, mas culturas — plural. E na sociedade portuguesa a cultura dominante é o futebol.
De tal modo que os “Ibérias” deste país vão desaparecendo — veja-se o horror em que transformaram o Cine-Teatro Eden, em pleno centro de Lisboa, ou o escândalo da destruição do velho Monumental, também na capital do país. Ao mesmo tempo, agora, perante a placidez de todas as forças políticas, de todos os quadrantes ideológicos, somos organizadores de um Mundial de Futebol.
Não é, de facto, uma questão de “culpas”. Antes fosse… Nem se trata de alimentar uma gritaria pueril entre os que “gostam” de futebol (sou um deles) e os que “não gostam”. É, isso sim, a “futebolização” de uma sociedade ferida por um esvaziamento de valores que faz com que a indiferença pela história e pelo património seja mais poderosa do que as energias que a arte pode transportar. Veja-se um outro exemplo que também conheço directamente: as ruínas do Teatro Rosa Damasceno de Santarém, sala indissociável das primeiras edições do Festival de Cinema da cidade (também há cerca de 50 anos).
A saga do Rosa Damasceno tem, pelo menos, duas décadas. Há cerca de um ano, o jornal O Mirante (6 nov. 2022) resumia a situação num artigo com um título esclarecedor: “Antigo Teatro Rosa Damasceno é a vergonha do centro histórico de Santarém”. As suas ruínas continuam a servir de cartão de visita para turistas ou locais que passam a caminho das Portas do Sol… Entretanto, por estes dias, também em Santarém, a obra que avança com mais celeridade está em pleno centro da cidade, no Jardim da Liberdade. Que obra é essa? Pois bem, uma Casa do Benfica!
O leitor que teve a paciência de me ler até aqui poderá, com toda a legitimidade, discordar dos meus pontos de vista, mas espero ser poupado à insinuação de que há uma qualquer componente clubista na anterior observação. A questão é outra. E é, sobretudo, bem diferente. Ninguém discute o valor desportivo, muito menos o lugar social, dos clubes de futebol. Fosse qual fosse o clube a ocupar um espaço central no tecido urbano de Santarém (ou em qualquer outra cidade), o que fica claro é o facto de, socialmente, o futebol funcionar como uma prioridade autárquica — e, nessa medida, política — que não é partilhada por nenhum outro domínio cultural.
As lágrimas do velho Calvero, interpretado por Chaplin em Luzes da Ribalta [trailer], arrastam um perturbante simbolismo: ele sabe que os palcos em que foi rei já não o acolhem, a não ser através de um cinismo paternalista. Daí que, por ágil paradoxo, as suas palavras tristes envolvam uma alegria pedagógica que muitas formas de poder tendem a desconhecer: “Somos todos amadores. Não vivemos tempo suficiente para sermos outra coisa.”

sábado, março 25, 2023

A sociedade do VAR

Charlton Heston em Os Dez Mandamentos (1956),
celebrando o prazer do espectáculo

A ciência do video-árbitro vai a par de uma quase total ausência de pensamento sobre a cultura do futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 março).

O título desta crónica podia ser: “Os erros humanos fazem falta ao futebol”. Seria polémico, mas já bastam as polémicas que todos os dias brotam da calçada. Reconheço mesmo que só valeria como brincadeira fútil, ainda que sugestiva, que nos afastaria ainda mais de qualquer reflexão interessante sobre o novo altar do futebol.
De que falo, então? Do VAR, precisamente. E das atribulações que introduziu na vida social do futebol. Eis que assistimos a um golo prodigioso, celebramos o feito… mas há um senhor de equipamento diferente que usa um apito e, de repente, atrai a nossa atenção. Porquê? O seu olhar vago, mas iluminado, significa que alguma voz transcendental está a comunicar com ele. Aliás, toca no auricular que usa para que não tenhamos dúvidas sobre a epifania que protagoniza — esperamos um minuto, dois minutos, três minutos… e o senhor do apito levanta o braço: não foi golo!
Parece-me óbvio que quem inventou o video-árbitro nunca gostou de cinema. Não vejo outra explicação… Lembrem-se, por exemplo, da cena de Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, em que Charlton Heston, em pose monumental de Moisés, abre as águas do Mar Vermelho para oferecer um caminho ao seu povo. Se DeMille fosse fã do VAR, na cena seguinte o mesmo Moisés, mesmo sem auricular, receberia uma mensagem divina: o milagre teria que ser revertido porque ele não tinha renovado a licença de pesca em alto mar… Convenhamos que seria preciso reescrever a história e a mitologia de Hollywood.
A ironia é cruel e a sua crueldade gasta-se depressa. Ainda assim, talvez ajude a pensar para lá do seu confesso esquematismo. E, sobretudo, a reconhecer que há na sociedade portuguesa uma inércia de pensamento que resiste a qualquer reflexão sobre o futebol como domínio nuclear, emocional e intelectual, na formação e promoção de valores sociais.
Na prática, o VAR tende a ser encarado e discutido como uma via imaculada para uma verdade sancionada pelo discurso intocável da ciência. Estranha crença: afinal, observando o panorama circundante, todos os dias contaminado por acusações cruzadas de incompetência ou corrupção, somos levados a reconhecer que a santificação do discurso científico já teve dias mais felizes.
Acontece que o futebol, sobretudo o futebol do VAR, deixou de ser um fenómeno estritamente futebolístico. E não se trata, entenda-se, de discutir o empenho e a boa fé dos que abordam o futebol em nome da transparência que defendem para a prática desportiva. Afinal de contas, não foi preciso inventar o VAR para reconhecermos o valor moral e a pertinência técnica de tal discurso — no século passado, andava eu na escola primária e, mesmo sem VAR, os temas eram os mesmos.
Acontece que, porventura de modo incauto, o sistema de pensamento que o VAR sustenta — e pelo qual é sustentado — reforça uma forma de dependência e interdependência social que se tornou ideologicamente dominante: qualquer actividade humana tende a ser vista, encenada e, no limite, celebrada como humanamente descartável… a não ser que a possamos descrever, percepcionar e, sobretudo, sancionar através de alguma legitimação científica.
O tecido social passou mesmo a ser frequentemente exposto, desde logo no espaço mediático, como “algo” que existe entre duas alternativas, únicas e insuperáveis: ou a nossa vida consegue ilustrar um equilíbrio redentor, legitimado por algum discurso científico (à maneira do VAR), ou então só nos resta prepararmo-nos para algo de catastrófico.
Bem sabemos que o nosso presente (social e político, nacional e internacional) está cheio de dramas brutais e perturbantes. Mas o catastrofismo reinante não decorre de tais dramas, mesmo se muitas vezes os transfigura em histeria quotidiana. É um catastrofismo ambiental, de ideias fracas e espasmos violentos: no limite mais caricatural (cujas boas intenções serão, por certo, respeitáveis), já nem sequer existe a possibilidade de termos “chuva intensa”. Nada disso: entramos em “alerta amarelo”.
“Alerta” tornou-se mesmo uma palavra de ordem da banalidade televisiva (incluindo a versão lusitana, cunhada por D. Afonso Henriques, de “breaking news”). “Alerta” passou a ser o estado compulsivo do imaginário social — como o jovem repórter que, já há alguns anos, à porta de um estádio de futebol, comentando uma manifestação de adeptos, informava que “ainda não há violência”…
Os eventos que o VAR, sempre “alerta”, vai convocando para o seu tribunal, alimentado pela nossa candura científica, conseguem mesmo gerar o contrário do seu programa. A saber: esvaziar o gosto, o prazer e, por fim, o pensamento do próprio espectáculo. Ou, então, sou eu que não respeito as linhas virtuais traçadas no relvado e estou fora de jogo.

quarta-feira, janeiro 11, 2023

Do futebol como religião

[ 23-01-11 ]

Em Portugal, o futebol é vivido, encenado e santificado como uma ficção de muitos pecados. Muitos estão sujeitos a todos os desvios pecaminosos, mas alguns possuem o condão (inevitavelmente divino) de administrar culpas e atribuir perdões — de uma maneira ou de outra, somos todos personagens, crentes e acólitos desta singular religião colectiva.

sábado, dezembro 24, 2022

Isto não é um jogo de futebol

Stanley Kowalski, aliás, Marlon Brando em 1951: "Stella!"

O futebol relança uma velha pergunta cultural: como é que os seres humanos se relacionam com o olhar de uma câmara? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 dezembro).

Porque gritam os adeptos de futebol? Recuemos algumas décadas, afastemo-nos das tragédias do Mundial e, por momentos, embora correndo o risco de ofender a pátria, acreditemos que a nossa felicidade poderá não estar dependente do próximo piscar de olhos de Cristiano Ronaldo — não custa tentar. Tentemos outra pergunta: porque grita Marlon Brando?
Quem conhece o filme Um Eléctrico Chamado Desejo, de Elia Kazan, adaptado da peça de Tennessee Williams, lembrar-se-á que Brando é Stanley Kowalski, casado com Stella. Vivem no “bairro francês” de Nova Orleães. Com a chegada de Blanche DuBois, a irmã de Stella que transporta as memórias e os fantasmas de uma riqueza perdida no Mississippi, o casal vai ser profundamente abalado. Esta imagem possui o poder de um lendário ícone do cinema, a ponto de simbolizar uma personagem complexa, um actor genial e, por fim, a primeira e gloriosa geração do Actors Studio. Que acontece, então? Desesperado com o efeito perverso de Blanche nas atribulações do seu território conjugal, Stanley grita: “Stella!”
Estava-se em 1951. Que é como quem diz: a imagem pertence a uma “pré-história” cinéfila, agora muitas vezes reduzida a clichés paternalistas, esmagada pelo poder de “super-heróis” e “efeitos especiais”. Apesar da sua intensidade e beleza, incólume à passagem das décadas, a imagem remete-nos para um passado tristemente desconhecido de muitos cidadãos, a ponto de alguns participantes nos concursos televisivos tenderem a ridicularizá-lo como coisa dispensável porque, como às vezes dizem a propósito de temas desse passado, “eu ainda não tinha nascido”…
Ainda assim, falemos de gritos. Através de um rudimentar, mas sugestivo, esquematismo histórico, conseguimos perceber que, entre 1951 e 2022, algo mudou na relação dos extremismos humanos com as câmaras. Repito e sublinho: na relação com as câmaras.
O grito de Brando é apenas um detalhe de uma performance (e um filme) que, de facto, lançou o primeiro acto de uma verdadeira revolução cinematográfica. Os intérpretes ligados ao Actors Studio (de que Kazan tinha sido um dos fundadores, em 1947) definiram uma nova teatralidade dos corpos e das palavras que, paradoxalmente ou não, gerou uma fascinante linguagem cinematográfica — lembremos que nessa primeira vaga do Actors Studio encontramos nomes como James Dean, Paul Newman, Joanne Woodward, Montgomery Clift, Ellen Burstyn… sem esquecer que Marilyn Monroe também por lá passou.
“Stella!” é um grito que não se esgota na angústia amorosa do colérico e frágil Stanley. Não existe como mero apontamento “psicológico” para definir a personagem. É um gesto de representação que, em cinema — através do olho clínico da câmara de filmar —, encontra a sua razão narrativa, consolidando-se no nosso olhar como acontecimento visceralmente dramático.
A câmara existia, assim, como testemunho técnico e formal de um evento singular, singularmente humano. Saltando mais de 70 anos, deparamos com a tragédia contemporânea dos olhares: o papel revelador da câmara perdeu poder cultural, deixou de suscitar a paixão contraditória das linguagens, dando lugar à promiscuidade visual de que os nossos telemóveis e as redes (ditas) sociais são o novo teatro. No futebol televisivo, isso traduz-se num comportamento que, como se prova, se instituiu como fórmula global de espectáculo. A saber: os adeptos de futebol vêem uma câmara e desatam aos gritos para… Para quem?
Vivemos tempos de metódica desqualificação da complexidade do factor humano. Tal fenómeno é mesmo exponenciado como linguagem triunfante do quotidiano e dos seus valores “sociais”. De tal modo que berrar para o mundo — encarando a câmara como oráculo redentor, sem fronteiras, realmente global — passou a funcionar como gesto de afirmação individual e, mais do que isso, ritual de pertença a um determinado colectivo que, garantem-nos, corresponde a uma saudável forma de patriotismo.
O que, enfim, nos abre mais um inusitado espaço de reflexão. A saber: o do sofrimento. Porquê? Porque, num plano meramente contabilístico, para lá da gritaria, a palavra “sofrimento” associada ao futebol se tornou muito mais frequente do que em qualquer abordagem da guerra na Ucrânia. Como lidar com esta banalização cognitiva? Talvez escolhendo a companhia de Marlon Brando e arriscando um grito catártico: “Stella!”

sexta-feira, dezembro 09, 2022

Croácia - Brasil: duas notícias

Marca

É verdade que, na aceleração da Internet, mal ou bem, a informação é um magma em contínua transfiguração: identificamos um determinado momento, mas no momento seguinte tudo pode ter mudado. Por isso estas duas imagens não correspondem ao "aqui e agora", mas sim a um desses momentos em que dois modos de informação coexistiram, expondo as suas diferenças.
L'Équipe

São essas diferenças que vale a pena registar. Assim, logo após a eliminação do Brasil pela Croácia, no Mundial do Qatar, os jornais Marca e L'Équipe davam conta do ocorrido de maneira bem diferente. No primeiro caso, incensando o luto dos vencidos; no segundo, dando conta da alegria dos vencedores — a Marca convoca, implicitamente, os factos que "deviam" ter acontecido; L'Équipe escolhe os factos.
Há outra maneira de dizer isto: sendo essencial para pensarmos o jornalismo, a oposição verdade/mentira não é suficiente para compreendermos as diferenças das suas práticas.

sábado, julho 02, 2022

David Bowie na AS Roma

Nesta época de muitas e, por vezes, inesperadas transferências no mundo do futebol, pode dizer-se que David Bowie também faz parte das opções de José Mourinho. Dito de outro modo: a AS Roma propõe uma muito interessante colecção de playlists.
E com uma diversidade, no mínimo, sedutora: além de Bowie, encontramos, por exemplo, Grunge, Morricone e uma lista de uma centena de 'Classic Covers', incluindo Jesus Doesn't Want Me for a Sunbeam, pelos Nirvana (MTV Unplugged in New York, 1993), refazendo o original dos Vaselines (Jesus Wants Me for a Sunbeam). As alternativas estão disponíveis no site do clube.
Na lista de Bowie, dos idos de 1993, surge esta muito rara Leftfield Remix de Jump they Say (original do álbum Black Tie White Noise).

domingo, junho 05, 2022

A nossa cultura futebolística

Um emblema histórico:
de que falamos quando falamos de futebol?

Com a descida da Académica à “terceira divisão”, fica ainda mais secundarizado um clube que já simbolizou outras formas de viver o futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 maio).

Terminada a época futebolística, a equipa da Associação Académica de Coimbra desceu à “terceira divisão”. Bem sei que a designação dos campeonatos há muito abandonou este modelo de classificação (agora há ligas, campeonatos de Portugal e não sei que mais), mas faço questão em escrever assim. Porquê? Porque, ao tomar conhecimento do último lugar da Académica na “segunda divisão”, não pude deixar de me recordar dessas designações, ou melhor, do meu pai e das nossas conversas sobre futebol.
Na minha infância vivíamos em Pombal e, como outros habitantes da vila (sim, era ainda uma vila), íamos de vez em quando a Coimbra assistir aos jogos da Académica. Nunca estudei, nem sequer vivi, em Coimbra — de qualquer modo, para mim, a cidade sempre foi a terra da Académica. Ao que parece, depois de duas derrotas da equipa dos estudantes — com o Benfica (1-2) e o F. C. Porto (1-5), se a memória não me engana —, declarei-me adepto da Académica, sentido-me, ainda sem o saber, para sempre fora dessa compulsão pueril que obriga cada cidadão português a ser militante de um dos três “grandes” (que, em boa verdade, nessa altura eram quatro, incluindo o Belenenses).
O meu pai tinha a nobreza de quem, face às convulsões do futebol, resistia a todos os maniqueísmos clubistas. Sem que na altura pudesse sequer pressentir que isso estava a acontecer, com ele aprendi a admirar e, mais do que isso, a desfrutar o facto de um jogo de futebol não ser uma ficção unívoca, antes um acontecimento com duas equipas, nessa medida solicitando a nossa disponibilidade — e uma paciente atenção — para os talentos de todos os que estão em campo.
Embora tenha falecido há quase trinta anos, num tempo em que, apesar de tudo, a saturação futebolística do tecido social & mediático não tinha o gigantismo do presente, era com desgosto, por vezes cruel sarcasmo, que observava as muitas formas de clubismo histérico. Ensinou-me a ver e perceber, por exemplo, que a própria Académica emanava de um conceito de desporto em que o empenho no jogo nunca secundarizava outros valores, a começar pelo caloroso simbolismo enraizado na relação com a Universidade.
Simpatizante do Benfica, contava-me com genuína alegria que tinha estado presente no Campo das Salésias (do Belenenses), na primeira final da Taça de Portugal, em 1939, em que a Académica venceu o Benfica por 4-3. Sem esquecer que vibrámos com a brilhante equipa que a Académica teve em meados da década de 60, com jogadores como Maló, Curado, Rui Rodrigues, os irmãos Campos (Vítor e Mário), Toni ou Artur Jorge — na época de 1966-67, essa equipa conseguiu mesmo o segundo lugar do campeonato (ganho pelo Benfica).


Sinto, agora, que a dramática desqualificação da Académica, muito para lá das minhas memórias familiares, corresponde ao definhar de uma bela cultura futebolística — de gosto pelos contrastes do jogo jogado — que, nestes tempos de conflitos “obrigatórios”, se foi tornando cada vez mais débil. Um sinal revelador desse processo é o facto de proliferarem discursos — do jornalismo à política — apostados em alimentar uma lamentável dicotomia: de um lado estaria o futebol como festivo fenómeno “neutro”, do outro a chamada vida cultural.
Creio, assim, que importa relembrar que o território cultural se faz das dinâmicas de valores associados a todas as trocas sociais — não é um domínio estável, está mesmo pontuado por muitas diferenças e tensões, nem existe por decreto, por melhores que sejam as intenções de quem legisla. E uma vez que o futebol todos os dias serve para sustentar discursos “patrióticos” ou para dirimir questões de “justiça”, importa também acrescentar que a nossa existência social está marcada por componentes culturais que envolvem o futebol como matriz dominante dos nossos comportamentos e, de forma muito sistemática, dos valores identitários que se incutem nos mais jovens.
O tratamento audiovisual do futebol tem também contribuído para uma desvalorização da liberdade dos olhares. De facto, embora definindo-se apenas como “juiz” de validação dos golos, o VAR tem vindo a contaminar o espaço audiovisual com uma noção perniciosa (culturalmente perniciosa, quero eu dizer): do futebol à política, passando pelo patético imaginário dos “famosos”, as imagens tendem a ser implicitamente tratadas e, mais do que isso, promovidas como meros instrumentos vigilantes de uma “verdade” que, ao ser enunciada, purificaria tudo e todos.
Que se está a perder? Face à desvalorização social das outras imagens (cinema, fotografia, pintura, etc.), instala-se implicitamente uma ideia preguiçosa segundo a qual só olhamos as imagens em geral para procurar validar uma forma compulsiva de unicidade e significação. Ora, como explicar a um jovem que nenhum VAR (ou seu derivado) vai estabilizar, muito menos esgotar, os significados de um quadro de Pablo Picasso, uma fotografia de Robert Frank ou um filme de Ingmar Bergman? Como ensinar que as imagens são algo mais do que armas de “policiamento” dos actos humanos? Entretanto, faço votos para que a Académica comece a sua odisseia de regresso à primeira divisão — o meu pai ficaria contente.

quinta-feira, maio 05, 2022

Futebol & surrealismo

[ 5 maio 2022 ]

Maravilhas do futebol: revisitar as ambivalências da noção de real, relançando a hipótese do surreal e, sobretudo, a memória do surrealismo.
Como se prova, há mais mundos para lá dos exercícios pueris que confundem o imponderável do futebol com a aplicação de uma patética noção de "justiça" — que lei fundamenta esse "raciocínio" que tantos convocam e ninguém enuncia?
Ou ainda: importa descartar os enigmas do "último terço", superar a divisão das equipas entre as que jogam com a "cabeça" e as que jogam com o "coração" e... pensar com outra alegria. No jornalismo, pourquoi pas?

segunda-feira, setembro 13, 2021

O dinheiro e a sua pornografia

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street: para onde estão a olhar?

De que falamos quando falamos de dinheiro? Entre lágrimas e euforia, as recentes imagens de Lionel Messi relançam a pergunta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 agosto).

Há uma perversão simbólica no espaço das nossas culturas. Exactamente: culturas, no plural — diferentes, contrastadas, não poucas vezes inconciliáveis. Que perversão é essa? O liberalismo informativo que domina as representações sociais do futebol.
Será preciso relembrar que não há nada mais cultural — entenda-se: produtor e transportador de valores — que o mundo do futebol? Afinal de contas, Cristiano Ronaldo é o mais forte símbolo de patriotismo que, todos os dias, se propõe e promove junto da nossa juventude. Nada poderia ser mais visceralmente cultural.
Essa cultura do futebol envolve algumas curiosas representações mediáticas do dinheiro. Assim, ouvimos alguns comentadores de futebol, na condição de adeptos de determinados clubes, a protagonizar uma carinhosa identificação (“nós”) com a vida financeira dos respectivos emblemas: “Gastámos X milhões para comprar o jogador A, B ou C… Ainda podemos gastar mais Y milhões…”
Nada disto, entenda-se também, tem que ver com a legitimidade discursiva de tais adeptos. Nem se trata de convocar essa ilusão segundo a qual o dinheiro existe numa espécie de vasos comunicantes que, por mera boa vontade, poderíamos equilibrar… Só mesmo por patética inocência poderemos pensar que o rendimento anual de Jorge Jesus (3 milhões de euros, segundo notícias sobre o seu mais recente contrato) seria a solução mágica para resolver, por exemplo, o imbróglio da TAP ou os dramas estruturais que afectam as populações do interior do país.
O que importa ter em conta não é a vida pessoal seja de quem for, muito menos a discussão dos méritos profissionais que lhe permitem auferir determinado rendimento. É, isso sim, o “naturalismo” das representações do dinheiro na cultura do futebol. Recorde-se como a história do cinema português regista a indignação de muitas vozes contra “dinheiro mal gasto” na produção de filmes, ao mesmo tempo que os rendimentos anuais de Cristiano Ronaldo (que davam para fazer, pelo menos, umas dezenas de filmes portugueses) são tratados como um objectivo de vida que os jovens devem integrar.
Reencontrámos tal ligeireza na maior parte dos tratamentos da mudança de clube de Lionel Messi. Vimo-lo a chorar na despedida de Barcelona; três dias mais tarde, exultava de alegria em Paris — não tenho nenhuma moral redentora para contrapor a tão brutal contraste, embora seja inevitavelmente sensível ao facto de o protagonista ser o mesmo. Senti apenas a falta de alguma representação do dinheiro neste conto moral protagonizado por Messi, quase sempre reduzido a dois clichés mediaticamente muito poderosos: primeiro, as lágrimas (“quem chora está do lado da verdade”); depois, a festa (“quem celebra desfruta de uma razão inquestionável”).
Em nome do mais básico pudor, creio que seria saudável dispensar, de uma vez por todas, os discursos altruístas sobre o “amor à camisola”. Mas não afunilemos a questão no universo do futebol, mesmo não esquecendo o seu planetário poder discursivo e político (incluindo o facto de a classe política aceitar ser câmara de eco desse mesmo poder). A questão de fundo é, aqui, o modo como vemos e representamos o dinheiro.
Em 2016, Money Monster, filme realizado por Jodie Foster, com George Clooney no papel central, colocava em cena uma situação limite (fictícia, é verdade) da pornografia mediática do dinheiro: numa subtil composição, Clooney compunha uma estrela de televisão que protagonizava um programa de “entretenimento” em que dava sugestões para o cidadão comum investir as suas poupanças… Digamos, para simplificar, que as coisas não corriam bem.
Isto sem esquecer a obra-prima de Martin Scorsese, O Lobo de Wall Street (2013), em que Leonardo DiCaprio interpretava um corretor da bolsa, Jordan Belfort (personagem verídica, neste caso). Poderá dizer-se que Scorsese se assumia como herdeiro das encenações da ganância que pontuam a história de Hollywood, a começar pelo genial Greed, realizado por Eric von Stroheim em 1924. Mas não era uma simples passagem de testemunho. Scorsese mostrava como, dos artigos de luxo à sexualidade, das palavras aos ecrãs, o dinheiro não existe como banal adereço das relações humanas — o dinheiro é um cenário e, para utilizar uma palavra que já foi demonizada e agora está na moda, uma narrativa.

quinta-feira, junho 10, 2021

Fernando Santos está a ganhar
4525,62 euros por mês !!!

(Portugal abandona o Euro)

[ Museu Bordalo Pinheiro ]

* E o escândalo rebentou! E ainda bem.

* Afinal, não é apenas Pedro Adão e Silva que, como comissário para as comemorações dos 50 anos do 25 de abril, vai receber aquilo que vai receber.

* Veio a saber-se que Fernando Santos, seleccionador nacional de futebol, também está a ganhar por mês a mesma quantia obscena que Pedro Adão e Silva passa a receber. Ou seja: 4.525,62 euros (3745,26 + 780,36 em despesas de representação).

* O escândalo é ainda maior porque tal verba foi divulgada há vários anos, sem que nenhum governo ou qualquer entidade política tenha posto fim a tal desmando.

* Francisco Rodrigues dos Santos e Rui Rio, há várias décadas empenhados na denúncia dos dinheiros públicos investidos no futebol, exigiram de imediato a retirada da selecção portuguesa do Euro. A proposta foi bem acolhida pelo Presidente da República, pela Federação Portuguesa de Futebol, pelo governo e por todos os partidos com representação parlamentar — a selecção deverá regressar ainda hoje de Budapeste.

* Fernando Santos passou compulsivamente à reforma, repondo-se, assim, a justiça social: o ex-seleccionador nacional irá receber a quantia mensal de 275,30 euros. É um valor exorbitante, mas tendo em conta os serviços prestados à Pátria, os tribunais autorizaram o respectivo pagamento.

sábado, maio 29, 2021

Futebol
— os adeptos e as suas "bolhas"

FRANCIS BACON
Estudo para um retrato
1952

1. Onde está alguém, com responsabilidades políticas, desportivas e mediáticas, que venha dizer o óbvio sobre os adeptos do futebol? A saber: que há sectores desses adeptos que, movidos a álcool ou a ódio, se comportam de forma bárbara.

2. Será, por certo, uma minoria de adeptos, mas não é um problema quantitativo que está em causa. É, isso sim, uma questão genuinamente cultural, já que envolve a degradação dos mais básicos laços sociais, menosprezando a noção salutar de confronto desportivo, sobrepondo-lhe a estupidez de uma ininterrupta lógica de conflito.

3. Encerrar os adeptos em "bolhas" significa reduzir a questão fulcral da responsabilidade social a estratégias de policiamento. E quando as forças policiais são concebidas como único índice de ordem colectiva, isso quer dizer que os princípios sagrados do contrato social — entenda-se: a responsabilidade de cada um em relação aos outros — foram esvaziados.
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PS - Não creio que a questão (cultural, insisto) que envolve a miséria futebolística possa ser encarada apenas através da mera avaliação dos actos de responsáveis policiais e políticos. Seja como for, registo que, já depois de escrita a nota em cima, pelo menos um dirigente político [Rui Rio] veio lembrar que há uma diferença importante entre "turismo" e "vandalismo".

quarta-feira, maio 19, 2021

José Mourinho
e o nosso mundo mediático

Ver e ser visto: os repórteres face a Mourinho,
ou a reportagem da reportagem

Os repórteres em torno de Mourinho constroem um ponto de vista. E se Mourinho usar um telemóvel para os filmar? Eis uma sugestiva, incontornável e muito pertinente questão deontológica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 abril).

Na sequência do despedimento do cargo de treinador do Tottenham, José Mourinho tinha um batalhão de repórteres à porta de sua casa, em Londres. O canal Sky Sports divulgou um breve registo da sua chegada, com o repórter Gary Cotterill a perguntar-lhe se tinha algo para comentar; Mourinho agradece, dizendo que não. O treinador vai tirando alguns objectos da bagageira do carro, Cotterrill segue-o, não obtém qualquer resposta, acabando por expressar um voto: “Regresse ao futebol assim que for possível.” O video termina com a frase: “Estou sempre no futebol.”
Eis um belo momento de reportagem que, como todos os momentos televisivos, os mais nobres e também os mais horríveis, pode ser confrontado com aquilo que quase nunca é mostrado: o ponto de vista daquele (ou daqueles) que é (ou são) objecto eleito pelos microfones e câmaras. Ou, em termos cinematográficos: as imagens em contracampo, isto é, o olhar do outro.
O certo é que, desta vez, temos mesmo um contracampo: Mourinho colocou no Instagram um video, ainda mais breve, em que a câmara do seu telemóvel oscila duas vezes entre Cotterill e alguns dos repórteres de imagem. Em off, podemos ouvir a voz do próprio Mourinho: “Não me dão privacidade. Até mesmo o meu amigo Gary me está a perturbar. É a minha vida.”
Não se trata, entenda-se, de tomar o video como pretexto para discutir a performance profissional de Mourinho, até porque, neste contexto, corremos o risco de nos perdermos num miserável desporto “social”: assim como há dias predominavam as vozes que censuravam o trabalho de Mourinho, não poucas vezes com insultos e difamações que as “redes” naturalizaram, agora quase todos parecem querer canonizá-lo… “The best”, escrevem os mais entusiasmados.
Acontece que Mourinho, “bom” ou “mau” treinador, humilde ou arrogante, continua a possuir esse talento pedagógico, hoje em dia raro (em particular na classe política), que consiste em confrontar o trabalho jornalístico com os efeitos descritivos, argumentativos e simbólicos das suas linguagens. A saber: com a percepção do mundo que, através dessas linguagens, somos levados a elaborar.
Infelizmente, não é fácil pensar tal questão como inerente à ética jornalística. Mais do que isso: vital. A sua formulação tende a atrair uma resistência automática: estaríamos a demonizar “todo” o jornalismo, a começar pelo jornalismo televisivo… Na verdade, o que está em jogo não é qualquer generalização do género, antes a necessidade (a meu ver, a urgência) de reconhecermos que a nossa visão do mundo passou a ser maioritariamente construída sobre e sob informações — imagens e sons — que recebemos através da chamada comunicação social. Daí uma primeira pergunta: o que é que se comunica? Logo seguida de outra: que noção de sociedade se está a comunicar?
No seu livro Olhando o Sofrimento dos Outros (ed. Quetzal, 2015), Susan Sontag refere esse campo/contracampo de olhares, analisando o funcionamento das exposições de fotografias que mostram “atrocidades infligidas aos de pele mais escura em países exóticos”. Não porque ela minimize a importância moral e política de denunciar as formas de violência que as imagens dão a ver. Antes para chamar a atenção para a ausência de qualquer dialéctica de conhecimento, “pois o outro, ainda que não inimigo, é olhado apenas como alguém para ser visto, não alguém (como nós) que também vê.”
Ora, Mourinho resiste a ser tratado como alguém que existe apenas “para ser visto”, isto é, como marioneta da agitação informativa. Claro que tudo aquilo que ele possa protagonizar não passa de um percalço benigno face aos horrores que motivam a análise de Sontag. Não é isso que está em causa. Nem é, obviamente, a legitimidade do olhar jornalístico: o que está em causa é o facto de aquele que é olhado também ter direito ao seu olhar.
Ou ainda: se o video de Mourinho tivesse sido difundido pelo menos um décimo das vezes que foi mostrado o grupo de microfones e câmaras a correr atrás dele, a nossa percepção do acontecimento seria outra. “Melhor”? “Pior”? Apenas outra.

* * * * *

NOTA: Um video publicado pelo jornal The Daily Mail dá-nos uma outra perspectiva sobre a situação em que foi registado o video que José Mourinho publicou no Instagram — uma preciosa multiplicação (logo, relativização) de pontos de vista.

quinta-feira, maio 13, 2021

Futebol
— uma cultura da irresponsabilidade

[FOTO: Álvaro Isidoro / DN]

A. Face às imagens chocantes das celebrações futebolísticas (imagens que, na verdade, se repetem, apenas variando as preferências clubistas dos protagonistas), o sistema político-mediático tenta pensar a situação através de uma noção pueril de ordem, com "polícias", "autarcas" e "ministros" a servirem de bodes expiatórios.

B. Seria útil — mais do que isso: seria socialmente saudável — encarar de frente a conjuntura e a sua dimensão trágica. A saber: a existência, e também o imenso poder normativo, de uma cultura da gratificação imediata, da celebração histérica e da irresponsabilidade individual e colectiva.

C. Quem pode colocar na actualidade a urgência de alguma reflexão sobre tal conjuntura? A resposta é de uma candura linear: jornalistas e políticos.

sexta-feira, março 19, 2021

António Silva, o português suave [1/3]

O Leão da Estrela (1947)

Foi homem de teatro e pioneiro da televisão, mas é na memória da comédia cinematográfica “à portuguesa” que a sua imagem persiste como fundamental referência artística e afectiva: 50 anos depois do seu falecimento, lembramos o actor António Silva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 fevereiro).

O cinema português, tantas vezes mal conhecido, porque reduzido a clichés sem fundamento, não deixa de ter a sua pequena mitologia popular. Pequena não por qualquer menoridade artística, antes porque sempre lhe faltou a estabilidade duradoura de uma indústria e a consistência económica do respectivo mercado. António Silva é uma das poucas personalidades que há muito conquistou um lugar de eleição nessa mitologia. Agora que se assinala o cinquentenário do seu falecimento (a 3 de março de 1971, contava 84 anos), podemos dizer que o seu nome superou épocas e modas, sendo conhecido e reconhecido como símbolo alegre e contagiante da arte de ser português — uma espécie de português suave.
Recordemos o exemplo modelar de O Leão da Estrela, realização de Arthur Duarte que a Tóbis Portuguesa produziu e lançou em 1947. António Silva interpreta aquela que é, muito provavelmente, a sua mais célebre personagem cinematográfica: o impagável Anastácio, adepto ferrenho do Sporting que anda desesperado para conseguir um bilhetinho de qualquer preço ou qualidade, “de pé, sentado, de cócoras…”, para ir ver o jogo da sua equipa com o Porto, a disputar na casa do rival.
Eram tempos de paixões futebolísticas bem diferentes das que envolvem as análises televisivas dos nossos dias, sob a pedagógica vigilância do VAR. Aliás, O Leão da Estrela inclui a figura emblemática, afinal realista, de Pedro Moutinho, devidamente identificado logo no genérico de abertura como “o locutor da Emissora Nacional”, a interpretar, como se diz, o seu próprio papel… Num tempo em que a televisão não passava de uma risonha utopia (as emissões regulares começariam uma década mais tarde), a vivência social do futebol era, assim, essencialmente radiofónica.
Em 1942, em O Costa do Castelo, também sob a direcção de Arthur Duarte, António Silva protagonizara já uma cena exemplar dedicada ao fenómeno radiofónico. Aí, na pele do enérgico Simplício Costa, apresentava à sua atónita e maravilhada comunidade familiar um instrumento ultra-moderno, coisa que “canta, mas não é canário”, aparelho revolucionário que emite sons e, pormenor importante, não se chama rádio, mas sim… telefonia: “Isto abre-se, liga-se à parede e é uma torneira a deitar música.” Como o aparelho demora a estabilizar, Simplício apresta-se a esclarecer: “São as bobinas que ainda estão frias.” Mais exactamente: “A onda passa na lâmpada e recua; daí, o som quer sair e não pode… Tem de aquecer o carburador, é o que é!”

domingo, outubro 11, 2020

Futebol & veleidades

PIET MONDRIAN
Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo
1930

1. A sério, a sério: quando é que alguém faz um pequeno gesto de defesa da língua portuguesa e ensina os comentadores de futebol o significado da palavra "veleidade"?

2. Sem qualquer fulanização da questão (não se trata de apontar o dedo seja a quem for, mas de uma questão rigorosamente profissional), seria pertinente perceberem que "veleidade" não quer dizer "hipótese" — considerar que " defesa não dá veleidades aos atacantes" é um perfeito absurdo.

3. Daí que eu tenha a veleidade de dar um pequeno contributo para resolver a questão — eis a minha sugestão.

quinta-feira, setembro 17, 2020

Luís Filipe Vieira, António Costa & etc.

ROY LICHTENSTEIN
Crying Girl
1963


"Vivemos tempos em que a justiça passou a ser feita no Facebook, nas redes sociais e nos media." A frase, concisa e lúcida, impecável na sua identificação do vírus "justiceiro" que circula no tecido social, está num comunicado de Luís Filipe Vieira [DN], dando conta da sua decisão de retirar os nomes de António Costa e Fernando Medina da comissão de honra da sua candidatura às próxima eleições do Benfica — como se prova, nunca devemos menosprezar o poder discursivo de ninguém.