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terça-feira, fevereiro 18, 2020

Sonic vs. Jim Carrey

Jim Carrey
Na história das adaptações dos videojogos ao cinema, Sonic: o Filme é mais um exemplo rotineiro: nas aventuras do ouriço azul, dotado de velocidade supersónica, apenas se destaca Jim Carrey, afinal um actor de outra tradição — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Fevereiro), com o título 'Muitos efeitos de videojogo, quase nada de cinema'.

Com a estreia de Sonic: o Filme, uma realização de Jeff Fowler a partir do videojogo Sonic the Hedgehog, criado em 1991, assistimos a mais um passo desesperado da indústria do “lazer” para rentabilizar referências (ou como se diz na linguagem dos tecnocratas: “franchises”) vindas de outras áreas do mercado do espectáculo. Porquê desesperado? Porque, na maior parte dos casos, a adaptação dessas referências se faz, não a partir de qualquer conceito cinematográfico, apenas tentando “repetir” num ecrã de cinema os mecanismos específicos do videojogo.
Sonic: o Filme não escapa a esse problema e, em boa verdade, não apresenta qualquer ideia consistente para o resolver. À boa maneira das sagas centradas em heróis solitários, o filme começa com a definição de um trauma identitário: vivendo num cenário ameaçado, o herói, um pequeno ouriço azul dotado de espantosa velocidade de locomoção (supersónica, precisamente), é compelido a viajar através do seus anéis mágicos para as paisagens do planeta Terra; aí irá enfrentar a maldade do Dr. Robotnik, um cientista louco...
Acontece que a narrativa cinematográfica não consegue encontrar qualquer “equivalência” com os sobressaltos do jogo. Em boa verdade, o jogo é mesmo estranho ao espírito fílmico, já que, como é óbvio, acontece através da intervenção mecânica e mecanizada do próprio jogador.
Poderia ser interessante a convivência da figurinha digital de Sonic com os actores, mas aí o problema amplia-se, já que James Mardsen, no papel do humano que acolhe Sonic, é um caso dramático de falta de carisma. Ainda assim, o principal trunfo do filme é a presença de um actor tão talentoso e versátil como Jim Carrey, assumindo a figura de Robotnik. O que, entenda-se, rapidamente instala um efeito de estranheza: as aventuras de Sonic pertencem a um sistema visual (e sonoro) concebido para a agitação “jogável” do ecrã, enquanto Carrey (A Máscara, O Melga, Homem na Lua, etc.) provém da mais nobre tradição burlesca, recriando a herança de Buster Keaton, Charles Chaplin e Irmãos Marx.
No plano histórico, vale a pena recordar que a relação da produção cinematográfica com os videojogos se tem mantido em paralelo com os filmes inspirados na BD de super-heróis: o primeiro título marcante inspirado num videojogo, Super Mário, tem data de 1993. O certo é que a indigência narrativa de Super Mário se mantém em filmes como Sonic: muitos efeitos dependentes da lógica do videojogo, escasso trabalho de argumento, carência de um conceito consistente de espectáculo.

quinta-feira, novembro 14, 2019

"Midway": filme ou jogo de video?

Desde Dia da Independência, já lá vão mais de vinte anos, o alemão Roland Emmerich especializou-se na realização de espectáculos tão grandiosos quanto desprovidos de energia dramática: infelizmente, Midway, sobre a guerra no Pacífico, confirma essa lógica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Novembro).

Perante a estreia de Midway, não podemos deixar de reconhecer um dado inerente à actual dinâmica comercial do cinema mais poderoso. Entenda-se: o cinema que tem poder financeiro para inserir ruidosas publicidades nos ecrãs (televisão & Net) e instalar gigantescos painéis nas nossas ruas. Assim, o “moderno” marketing dos filmes inventou um bizarro género cinematográfico. Se quisermos ser filosóficos, poderemos chamar-lhe “apoteose da redundância”. De forma menos elaborada, porventura mais esclarecedora, diremos que se trata do “filme-que-se-esgota-no-seu-trailer".
Midway é a nova e dispendiosa proeza (100 milhões de dólares!) de Roland Emmerich, o realizador alemão que, a partir de 1996, graças a Dia da Independência, criou fortes laços com o sistema de produção de Hollywood. Era um esforçado épico sobre uma invasão de extraterrestres que, em boa verdade, ainda possuía o mérito de encarar com contagiante sentido de humor a sua grandiosidade algo postiça. Agora, Emmerich propõe-se revisitar um capítulo decisivo dos combates no Pacífico, durante a Segunda Guerra Mundial, alimentando a ilusão de que está a recuperar (?) as premissas do clássico filme de guerra.
Dir-se-ia que para tentar legitimar as ambições “autorais” de Emmerich, Midway contém um episódio tristemente caricatural, evocando a presença de John Ford (1894-1973) no Pacífico, precisamente, como repórter de guerra. Interpretado de forma grosseira pelo actor americano Geoffrey Blake, Ford, um dos mestres absolutos do classicismo de Hollywood (As Vinhas da Ira, O Homem que Matou Liberty Valance, etc., etc.), surge como um “figurante” efémero, completamente descontextualizado... A não ser que Emmerich acredite que os espectadores mais jovens, (des)educados por superproduções atrás de superproduções, descubram Ford graças ao seu filme e vão a correr comprar a respectiva filmografia completa em DVD...
John Ford
Numa cena situada poucos anos antes do começo da guerra, protagonizada por um investigador militar americano (Patrick Wilson) e um oficial da Marinha japonesa (Etsushi Toyokawa), o filme ainda tenta sugerir que na origem das tensões entre EUA e Japão poderá estar uma profunda clivagem de valores civilizacionais. Mas é uma pincelada esquemática, rapidamente esquecida. Emmerich parece satisfazer-se com a repetição de vistosos efeitos especiais (aviões, porta-aviões, explosões, etc.), cada vez mais sólidos no seu requinte técnico, cada vez mais alheios à elaboração dramática de personagens e situações.
Ed Skrein, porventura identificável pelos fãs da série A Guerra dos Tronos, é um dos trunfos do elenco do filme, interpretando a figura lendária do piloto Richard Best. Encontramos também a talentosa Mandy Moore, no papel da mulher de Best, ou veteranos como Woody Harrelson e Dennis Quaid, respectivamente como o almirante Nimitz e o vice-almirante Halsey, mais dois nomes indissociáveis das memórias da guerra no Pacífico. Todos cumprem a mesma árdua tarefa: tentar compensar (sem grande sucesso...) o esquematismo das personagens que lhes estão atribuídas.
No limite, filmes como Midway funcionam como jogos de video, repetitivos e redundantes, confundindo a ostentação técnica com a construção de uma narrativa. A sua retórica visual pode até bastar para pôr a circular um sugestivo trailer de dois minutos, mas com tão escasso trabalho dramatúrgico não parece possível sustentar mais de duas horas de projecção.

domingo, abril 29, 2018

"Lara Croft" ou os jogos contra o cinema

A. Vale a pena reflectir um pouco sobre a conjuntura audiovisual que os jogos de video geraram, tomando como pretexto o trailer de Shadow of the Tomb Raider, produto da Square Enix com lançamento agendado para Setembro. Trailer, exactamente, já que este tipo de consumo se foi colando, estrategicamente, à indústria e ao comércio dos filmes, parasitando todas as suas componentes, da pré-produção ao marketing — na prática, não há diferença conceptual entre um trailer como este ou o de um qualquer título com chancela dos estúdios Marvel (ou da DC Comics).

B. Três vectores narrativos triunfam:
1 — o esvaziamento da noção de plano: a composição do espaço, logo, a gestão do tempo deram lugar a um fluxo visual em que a aceleração já não é um dispositivo dramático, mas uma lei obrigatória;
2 — a arbitrariedade da narrativa: não por acaso, deparamos aqui com uma típica voz off cuja função se reduz à criação de uma ilusão de continuidade — trata-se apenas de gerar alguma expectativa pelo quadro seguinte do jogo;
3 — a formatação do corpo: a figuração humana passou a confundir-se com a criação de um outro tipo de ilusão (corporal, precisamente) que menospreza qualquer singularidade material — Lara Croft, Homem de Ferro, Batman ou qualquer outra personagem, todos foram desumanizados, existindo apenas como paleta digital.

C. Porque é que muitos jovens apenas consomem os filmes que, de uma maneira ou de outra, repetem estes vectores? Eis uma boa pergunta, inevitavelmente ligada a uma dúvida pedagógica: como é que um espectador apenas educado através deste modelo de imagens/sons pode ter agilidade mental e disponibilidade emocional para lidar com a riqueza de composição e narrativa de um filme de Jean Renoir, Ingmar Bergman ou John Cassavetes? Vale a pena formular tais questões a partir de exemplos como esta Lara Croft, exemplos que, metodicamente, se vão definindo e consolidando contra qualquer ideia de cinema.


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* PERSONA (1966), de Ingmar Bergman

domingo, julho 25, 2010

Videojogos: consumo ou vício?

Ilustração DN / André Carrilho

Vale a pena ler o artigo de Catarina Cristão, publicado no Diário de Notícias (25 Julho) com o título 'Videojogos levam à alienação de adolescentes na escola'. E tanto mais quanto a discussão dos problemas em causa quase sempre descamba nas dicotomias mais estúpidas, como se se tratasse de lançar a inteligência dos "adultos" contra a alienação dos "jovens"...
No fundo, o que aqui se aborda é um princípio muito básico: o de não simplificar, nem banalizar, o facto de a proliferação dos videojogos estar a configurar um novo paradigma de atenção — e também de distração — que não pode deixar de ser pensado em termos de consumo e relações humanas, quer dizer, como factor cultural. Em boa verdade, são questões há muito referidas por muitas pessoas que trabalham com as imagens (e os sons), considerando que a imposição unilateral de um qualquer padrão de visão/percepção traduz uma trágica perda civilizacional.
Infelizmente (ou felizmente...), terá sido necessário algum tipo de caução científica para que o assunto seja enquadrado com a seriedade que implica. Dito de outro modo: a abordagem dos videojogos como hipotéticos geradores de vício e dependência tem, agora, um trabalho de investigação que, por certo, vai ficar como referência essencial de conhecimento e pensamento. Assim, para além de dar conta de um caso verificado com uma turma do Liceu Francês, em Lisboa, o artigo do DN refere o artigo 'Television and Video Game Exposure and the Development of Attention' — trata-se de um estudo publicado pela Pediatrics (revista da Academia Americana de Pediatria) e encontra-se disponível online, em formato PDF.