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quinta-feira, junho 05, 2025

Um fotograma de Cannes

À luz das velas, ou o perfeccionismo de Kubrick

Uma memória de Cannes: rever Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, é reencontrar a vibração sensual das imagens pré-digitais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 maio).

Ao longo deste século, os festivais de cinema têm aberto as suas programações aos filmes clássicos, mais ou menos “antigos”. Não se trata de um banal gesto de nostalgia. Estamos perante um sinal da consciência da memória ou, mais exactamente, da possibilidade de perda da memória. Isto porque, muito para lá do cinema, a definição do presente torna-se tanto mais volátil, eventualmente manipulável, quanto o esquecimento for uma regra dominante na sociedade.
Também neste domínio, o Festival de Cannes continua a ser uma referência modelar. Em boa verdade, podemos mesmo dizer que, em termos proporcionais, a secção Cannes Classics é a que mais cresceu ao longo dos últimos 20 anos. Primeiro, o incremento das cópias restauradas correspondia, sobretudo, à crescente importância do formato Blu-ray, ideal, justamente, para difundir os clássicos que tinham sido tratados para recuperar as qualidades das suas imagens originais; depois, com a consolidação das plataformas digitais, surgiu uma importante via de difusão de novas cópias de títulos marcantes na história do cinema. Os filmes restaurados (de autores tão emblemáticos como Alfred Hitchcock ou Ingmar Bergman) recuperaram mesmo o seu lugar nas rotinas das salas escuras — Portugal é um bom exemplo disso mesmo, sobretudo graças à acção de alguns distribuidores e exibidores do chamado circuito independente.
Em Cannes, este ano, dois filmes ilustraram de forma sugestiva a sedução dos clássicos. Estando ambos a comemorar meio século de existência, nunca deixaram de ocupar um lugar de evidência no imaginário popular da cinefilia. São eles Voando sobre um Ninho de Cucos, parábola política sobre as diferenças individuais realizada por Milos Forman, e Barry Lyndon, epopeia social e política alheia às convenções da “reconstituição histórica” com que Stanley Kubrick, inspirando-se no romance de William Makepeace Thackeray (1811-1863), nos “obrigou” a rever a visão meramente decorativa, porventura pitoresca, do século XVIII britânico.
Se evocarmos um fotograma, apenas um, das cenas de Barry Lyndon iluminadas a velas podemos redescobrir, compreender e reavaliar um desafio que, literalmente, ficou para a história. Assim, o lendário perfeccionismo de Kubrick levou-o a colocar uma exigência radical ao seu director de fotografia, John Alcott (que, em 1972, já assinara as imagens de Laranja Mecânica): as cenas de interiores, nomeadamente nos salões da aristocracia, deveriam ser iluminadas apenas pelas velas que, obviamente, na época, eram a única fonte de luz...
O cumprimento do desafio foi quase total (por vezes, Alcott recorreu a discretas iluminações gerais e alguns reflectores). De tal modo que, para ser possível gerar uma imagem que desse a ver o efeito da luz das velas, em particular nos rostos dos actores, Kubrick conseguiu convencer a NASA a emprestar-lhe as lentes que a Zeiss desenvolvera para uso dos astronautas americanos na superfície lunar. Daí que faça sentido, por razões de uma só vez técnicas e românticas, celebrar a singularidade de tal proeza num filme de 1975. Dito de outro modo: estamos ainda longe das imagens digitais, já que Barry Lyndon é um produto clássico de registo em película (que, convém não esquecer, o cinema está longe de ter abandonado).
Neste como noutros domínios da expressão artística, não creio que faça sentido demonizar o digital — é, ou pode ser, um instrumento de trabalho tão útil como qualquer outro. Além de que, não simplifiquemos, podemos citar múltiplos exemplos das suas potencialidades, a começar por A Arca Russa (2002), de Alexander Sokurov. Lembremos apenas que o grão das imagens de Barry Lyndon envolve uma vibração que começa na sensualidade dos detalhes, como se a imagem projectada no ecrã fosse uma “coisa” que pudéssemos tactear. Os mais cínicos dirão que o espectador comum ignora e é indiferente a tudo isso. Talvez sim, mas não consta que esse espectador (que quer dizer “comum”?) seja detentor de uma razão universal. Até porque, se for essa a sua perspectiva, não sabe o que está a perder.

terça-feira, julho 19, 2016

Sokurov filma o Louvre

Nem documentário, nem ficção: Francofonia é mais uma proposta admirável de Aleksandr Sokurov — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Julho), com o título 'O museu do mundo todo'.

Decididamente, para Aleksandr Sokurov, um museu não é um armazém. Nem uma colecção de cromos. Em A Arca Russa (2002), a sua câmara percorria o Hermitage, em São Petersburgo, numa vertigem de continuidade (era um filme feito num único plano, convém recordar) que se ia tornando paradoxalmente descontínua, expondo as memórias, deslumbradas e magoadas, de uma Rússia ainda desconhecedora das convulsões do comunismo. Agora, em Francofonia, Sokurov vem-nos dizer o que já sabíamos — o Louvre como imensa galáxia de história e histórias —, embora levando-nos a discutir muitas certezas correntes sobre a conservação do património artístico.
Aleksandr Sokurov
Será, por isso, irrelevante encaixar Francofonia em qualquer modelo de “documentário” ou “ficção”. Este é o filme em que o próprio Sokurov se coloca em cena, perante o ecrã do seu computador, inquirindo sobre as inusitadas atribulações a que os humanos sujeitam os objectos artísticos. Mais do que isso: a frieza jornalística dos factos evocados não impede que Napoleão “saia” das telas, vagueando pelas salas do Louvre, apontando os quadros e proclamando, com compreensível orgulho, “sou eu”.
Em qualquer caso, o cerne da questão está na relação que, durante a ocupação alemã, se estabeleceu entre o director do museu e o oficial nazi encarregado de administrar a “cultura” (interpretados, respectivamente, por Louis-Do de Lencquesaing e Benjamin Utzerath). Nessa relação, Sokurov descortina uma cumplicidade tão discreta quanto tácita que, por abençoada perversidade, conseguiu conter o desejo de “exportação” de muitas obras-primas do Louvre, alimentado, em Berlim, por Hitler e Goebbels. São memórias multifacetadas da Segunda Guerra Mundial que, além do mais, conduzem o cineasta a evocar as feridas da sua pátria e, em particular, a resistência trágica de Leninegrado (aliás, São Petersburgo).
Daí a luminosa moral de Francofonia: um museu não é exactamente um lugar para contemplar a arte do mundo, mas mais uma paisagem viva que, no limite, nos permite ver o mundo todo.

quinta-feira, outubro 03, 2013

No centro de Cracóvia

A praça central de Cracóvia é um dos espaços mais impressionantes da cidade. Remonta ao século XIII, ocupando já então um espaço central na cidade muralhada. Tem perto de 40 mil metros quadrados de área e é a praça medieval maior que se conhece hoje numa cidade europeia. Há várias igrejas ao seu redor, inúmeros restaurantes e bares na sua base. O centro do espaço é dominado pelo Sukiennice, um mercado que data do século XV.

quinta-feira, maio 02, 2013

Sokurov: três fotogramas de "Fausto" (3)

Isolda Dychauk, "Gretchen"

[ 1 ]  [ 2 ]

Na iconografia humana e desumana do Fausto, de Aleksandr Sokurov, assiste-se ao bizarro triunfo de uma masculinidade fechada no seu próprio vazio. Talvez possamos dizer isto de outro modo: Sokurov tende a encenar a tragédia íntima do factor humano como algo que começa no esvaziamento simbólico do género masculino — os homens são títeres da sua própria ansiedade (Fausto) ou são apenas o... Diabo (et por cause). Daí que, em alguns momentos, possa haver uma ou outra personagem feminina que, muito literalmente, ilumine o corpo do filme com a sua luz. Gretchen, por exemplo, aliás Isolda Dychauk: o quadro do filme deixa de ser um espaço de amostragem para passar a existir como um painel imaterial que tende para uma utopia sem nome. No limite, o grande plano reinventa-se como plano geral de um espaço cósmico. Deus existe.

domingo, abril 21, 2013

Sokurov: três fotogramas de "Fausto" (2)

Anton Adasinsky, "Mefistófeles"

[ 1 ]

No labirinto de Fausto, de Aleksandr Sokurov, há uma vertigem nunca aquietada. Por um lado, todos se olham de forma intensa, intensamente desconfiada — afinal, quem está a tramar quem? Por outro lado, a velocidade dessas trocas (de olhares) é tão desconcertante que nunca temos a certeza daquilo que cada um vê — ou como é que cada um é visto pelo outro. Podemos dizê-lo através de uma componente da própria linguagem cinematográfica: não há planos subjectivos. Ou, se os há, dir-se-ia que o dispositivo vertiginoso em que estão integrados nos impede de ter a certeza sobre a sua inserção. Daí o valor sintomático deste fotograma que, por assim dizer, nos faz ansiar pela explicitação daquilo que o Diabo vê. Em boa verdade, queremos saber qual o ponto de vista do Mal. Não poderia haver mais contundente caracterização de qualquer genealogia da moral (que Nietzsche nos acuda...).

quinta-feira, abril 18, 2013

Sokurov: três fotogramas de "Fausto" (1)

Johannes Zeiler, "Fausto"
Desconcertante evidência: face ao admirável Fausto, de Aleksandr Sokurov, sabemos inventariar inspirações (a lenda de Fausto) e referências (a obra de Goethe); ainda assim, o filme parece escapar-se para além de qualquer enquadramento meramente "cultural". Dir-se-ia que Sokurov não filmou uma "adaptação" do tema, mas a sua angustiada fuga para a frente — aliás, há qualquer coisa de arfante no filme, como se caminhássemos lado a lado com Fausto (Johannes Zeiler) e o seu empenhado Mefistófeles (Anton Adansinsky), numa deambulação cujo motor é o próprio vazio fúnebre que a sedução do dinheiro nela instala. Por isso, o rosto deformado de Zeiler não é uma mera citação das experiências do próprio Sokurov em Mãe e Filho (1997) ou Pai e Filho (2003). Tudo se passa como se o ecrã fosse, agora, não uma janela para o mundo, mas uma membrana, orgânica e carnal, que cede às intensidades de tudo aquilo que nela se projecta — não há, por isso, a bem dizer, deformação; apenas a consciência de que a imagem é um artefacto em que, por medo, decidimos acreditar. Esse medo tem qualquer coisa de libertador.