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sábado, dezembro 21, 2024

Que géneros musicais (ainda) existem?
[Rick Beato]

Que aconteceu para que (quase) já não haja géneros musicais?
Será um fenómeno de verdadeira diversificação, ou apenas o resultado de uma nova conjuntura industrial & comercial?
Vale a pena conhecer a luminosa exposição de Rick Beato.
 

sábado, setembro 28, 2024

Rick Beato: "O YouTube
está a esmagar os meios de comunicação tradicionais"

Fascinante video de Rick Beato — em foco está a presença dominante (esmagadora, precisamente) do YouTube na paisagem em que procuramos, escolhemos e consumimos as mais diversas formas de comunicação.
O título desta nota poderá fazer pensar que Beato não passa de um tradicionalista ressabiado, revoltado contra um instrumento de comunicação que não domina... Nada disso. Aliás, através de números eloquentes, ele demonstra que o seu canal no YouTube é um caso significativo de enorme sucesso. Trata-se, afinal, de expor uma verdade rudimentar, fascinante e perturbante — as nossas relações com as imagens e os sons entraram (já há algum tempo, convenhamos) numa idade moderna, pós-moderna ou pós-pós-moderna, envolvendo novos modos de olhar, diferentes regimes de escuta. Enfim, uma desafiante organização/percepção do mundo à nossa volta.
O video é tanto mais sugestivo quanto se apresenta com um título cuja significação não é o que parece: "Porque é que David Gilmour não vai aparecer no meu canal".

sexta-feira, agosto 30, 2024

Roubar música tem um novo nome: "interpolação"

Rick Beato

Eis uma curiosa, e muito pedagógica, descoberta de Rick Beato: o roubo descarado de notas de uma canção para outra canção passou a ser tratado pela designação chique de "interpolação". Ou como ele pergunta: "Isto não é apenas roubo?" — vale a pena ver, ouvir e reflectir sobre o assunto.
 

domingo, junho 16, 2024

Inteligência Artificial: a ressaca

[ Rolling Stone ]

Eis uma eloquente ilustração (assinada por Ruzlat/Adobe Stock) com que a revista Rolling Stone dá conta da ressaca, de uma só vez cultural e industrial, que se segue à esquematização "polémica" das questões colocadas pelos mais recentes desenvolvimentos da Inteligência Arificial — um artigo conciso e didáctico, assinado por Miles Klee, para nos ajudar a reflectir sobre uma conjuntura que não pode ser reduzida a jogos florais mais ou menos moralistas: 'Brands Are Beginning to Turn Against AI'.

terça-feira, janeiro 31, 2023

Nuno Artur Silva
ou a arte de dizer "eu"

Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves
* Foto: Rita Carmo

1. Vivemos tempos de obscena saturação de individualismos. Não poucas vezes, as equívocas facilidades de expressão oferecidas em rede impuseram um novo espaço de (in)comunicação organizado e, sobretudo, desorganizado a partir da destruição de qualquer forma de responsabilidade e responsabilização. Dito de outro modo: proclamar um "eu" sem fronteiras nem respeito pelos outros "eus" passou a ser um desporto pueril, induzido e consagrado por muitas formas e dispositivos da nossa cultura virtual.

2. O espectáculo Onde É Que Eu Ia?..., de Nuno Artur Silva, corre o risco invulgar de começar por se "aproximar" dessa cultura de lamentáveis narcisismos, acabando, inteligentemente, por expô-la nos seus contrastes, contradições e mentiras — e não tenhamos dúvidas que tal cultura se sente sempre ameaçada por qualquer gesto ou discurso que não abdique do gosto da inteligência.

3.
De que se trata, então? De uma performance que começa por ter o seu quê de confessional. Num tempo pré-histórico (entenda-se: anterior às histórias que tem para nos contar), Nuno Artur Silva criou a empresa Produções Fictícias, aí contribuindo para uma espectacular reconversão de alguns padrões da ficção audiovisual, com especial destaque para o registo de comédia no pequeno ecrã televisivo. Depois, foi administrador (RTP) e membro de governo (Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media)...

4. Digamos, para simplificar, que nem tudo foi fácil. Ou ainda: as experiências saldaram-se por uma lição de vida amarga e doce. Para usarmos a linguagem do velho e incontornável Godard, diremos que Nuno Artur Silva foi sujeito — e objecto, hélas! — de uma metódica lição de coisas.

5. O facto de o espectáculo ser pontuado pelos desenhos que António Jorge Gonçalves vai improvisando, ao mesmo tempo que informa o espectador das várias alíneas da performance, conferem a Onde É Que Eu Ia?... a respiração insólita, subtilmente envolvente, de uma memória que apetece dar a ver através de novas imagens, ao mesmo tempo que o distanciamento decorrentes das próprias imagens apela a mais palavras — e à contundência sem equivalente do verbo.

6. O resultado é um belo e sofisticado exercício de contemplação das grandezas e misérias do nosso mundo português, das convulsões próprias da cena política, incluindo os bastidores fornecidos pelas casas de banho (nada de impróprio ou chocante, podem crer), até às vergonhas e desvergonhas da expressão virtual de alguns cidadãos, cada vez mais banal e menos expressiva, tendencialmente (e orgulhosamente) medíocre.

7. A mensagem do espectáculo é... não haver mensagem. Fica, em qualquer caso, um conselho sábio: cada vez que decidirmos retomar a palavra, convém perguntar "onde é que eu ia" — a humildade é, afinal, uma virtude humana que vale a pena reabilitar.

* ONDE É QUE EU IA?...
> até dia 5 de fevereiro

>>> Instagram.

sábado, dezembro 03, 2022

Um pouco mais do que 280 caracteres

A Rede Social (2010) ou as ilusões do paraíso virtual

A saga de Elon Musk no Twitter está para lá do pitoresco: é urgente discutir o próprio conceito de “rede social” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 novembro).

As convulsões que Elon Musk trouxe ao Twitter constituem um fenómeno dramático. Como se tornou claro através da multiplicidade de notícias e análises que a situação tem suscitado, esta é uma saga que envolve questões muito complexas, desde a vida de uma companhia realmente global até aos valores éticos inerentes a qualquer forma de comunicação.
Estamos perante atribulações que, directa ou indirectamente, afectam pessoas em todos os recantos da Terra. Segundo dados recentes, o Twitter é usado todos os dias por 237 milhões de pessoas. Isto sem esquecer que a respectiva aquisição por Musk foi consumada através de 44 mil milhões de dólares (cerca de 55 vezes o orçamento da Cultura em Portugal).
Na sua clássica frieza, os números são a ilustração eloquente de uma verdade rudimentar das (chamadas) redes sociais — essa verdade foi exposta há mais de uma década nesse filme genial que é A Rede Social (2010), de David Fincher, com argumento de Aaron Sorkin (a partir do livro The Accidental Billionaires, de Ben Mezrich, publicado em 2009 pela editora Doubleday). A saber: as (ditas) redes sociais transfiguraram toda a cultura económica do planeta, consolidando novas formas de negócio e acumulação de lucros.
Daí a abordar as vidas de Mark Zuckerberg e seus pares como quem inventaria “santos” e “demónios” vai um passo que importa não favorecer. Assim, não me estou a colocar fora de tudo isto, até porque, se não consigo sequer imaginar-me a participar na agitação diária do Facebook, tenho duas contas no Instagram (plataforma que pertence ao Facebook, aliás à companhia Meta, aliás a Zuckerberg).
O que está em jogo começa por ser a própria percepção das “redes” que somos compelidos a chamar “sociais”. Deixámos até de reconhecer que tal classificação funciona como um recalcamento das singularidades (sociais, justamente) de milhares de anos da história da humanidade. Esquecendo que sempre vivemos através de muitas redes — familiares, profissionais, religiosas, etc. —, aceitámos consagrar as comunicações via Internet como as únicas “redes” a que damos o nome de “sociais”.
Um dos fenómenos mais perturbantes desta conjuntura é o facto de algumas formas de jornalismo terem adoptado a referência às (tais) redes sociais como uma espécie de oráculo que existe num limbo sem dramas nem contradições, porventura sem pessoas. Cada vez que uma notícia nasce daquilo que “dizem as redes sociais”, desaparecemos numa comunidade pobremente virtual, consumindo uma generalização vertiginosa feita de desreponsabilização individual e colectiva.
O que está em jogo não é a proverbial questão da comunicação. Porquê proverbial? Porque, de facto, comunicamos através de infinitos canais, incluindo Fabebook, Instagram, Twitter, etc. Porque não? O que está em jogo é o modo como fomos permitindo que o novo conceito de “social” ocupasse todas as nossas formas de vida, a ponto de minimizarmos a riqueza e a complexidade dos laços humanos. Julgar que somos “amigos” de um respeitável cidadão que vive no outro hemisfério apenas porque com ele trocámos alguns polegares ao alto corresponde a uma automática desvalorização, e consequente esvaziamento, de qualquer relação (humana, justamente).
Daí a escassez de pensamento com que estamos a lidar com o “apocalipse now” da plataforma Twitter. Por um lado, a confusão gerada por Elon Musk — envolvendo um trágico vazio de ideias e o afastamento, ora compulsivo, ora voluntário, de muitos trabalhadores do Twitter — configura uma incrível derrocada empresarial; no dia 18 de novembro, na CNN, numa intervenção de rara concisão analítica (disponível no YouTube), Oliver Darcy utilizava mesmo a expressão “caos total”. Por outro lado, torna-se difícil compreender que tal cenário não conduza, pelo menos, a alguma reflexão sobre outra derrocada. A saber: a do próprio conceito original de “rede social”.
Ainda que a acção de Elon Musk pareça enraizar-se num liberalismo, no mínimo, demagógico, a redução de tudo isto às suas “excentricidades” apenas reforça uma visão pitoresca da comunicação, infelizmente frequente no espaço (dito) mediático. Acontece que, como se prova, o comportamento de um homem pode perverter, de um instante para o outro, o mito fundador da própria “rede social” que passou a simbolizar.
Que mito é esse? A noção, algo cândida, por vezes apenas ridícula, segundo a qual o “social” da Internet existiria à margem das convulsões do mundo, casto, inerte, numa virgindade ontológica sem equivalente: vogávamos num infinito paraíso de comunicação, aberto, transparente e redentor, numa harmonia global alheia a todas os sobressaltos existenciais com que, ao longo dos séculos, fomos enganados por narradores medíocres como William Shakespeare, Marcel Proust ou Ingmar Bergman.
Subitamente, no outono triste de 2022, a nossa muito humana fragilidade leva-nos a pressentir que a criação de genuínos laços sociais talvez exija um pouco mais do que mensagens com um máximo de 280 caracteres. E vemo-nos confrontados com aquilo que quisemos recalcar: qualquer forma de comunicação começa, afinal, no reconhecimento da solidão de cada um de nós.

terça-feira, novembro 01, 2022

O saber não ocupa lugar

2001: Odisseia no Espaço (1968): nas entranhas do computador

A informação disponível na “cloud” transformou-nos em habitantes de um mundo realmente virtual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 outubro).

Num recente artigo da revista The Economist (“The hard edge of the cloud”, 8 outubro), encontramos uma curiosa série de dados sobre a evolução dos sistemas de conservação da informação computorizada. A célebre “cloud” onde, mediante um preço, qualquer um de nós pode guardar os seus ficheiros — das listas do Spotify aos “milhões de selfies perversas” — tem crescido de modo exponencial, a ponto de ter gerado um mercado global de servidores & chips de computador avaliado em 600 mil milhões de dólares.
Para lá da consolidação da nossa biblioteca virtual, com grande impacto no comportamento de cada um de nós face à informação disponível, procurada ou coligida, a “nuvem” de informação gerou uma gigantesca, verdadeiramente global, rede de negócios. Exemplo revelador: grandes empresas envolvidas na “cloud” (a revista cita os exemplos de Amazon e Google) recorrem a design de origem japonesa, depois tratado por uma firma especializada sediada em Taiwan…
Há uma maneira mais básica de dizer isto: a nossa relação com a informação computorizada foi deslizando para um espaço realmente virtual — e dizer “realmente” a propósito de algo a que damos o nome de “virtual” é uma contradição reveladora do misto de estranheza e transparência da nossa actual relação com o império da tecnologia.
O cinema pode ajudar-nos a lidar com o labirinto de questões e perplexidades que tudo isso arrasta. É verdade que, nos dias que correm, há toda uma ideologia de marketing, fortemente dependente de líderes de mercado como a Marvel ou a DC Comics, que promove uma visão dos filmes enredada em escapismo sem inteligência. Mas não é menos verdade que a história do grande cinema popular (repito: popular) está disponível para compreendermos que, no mínimo, não necessitamos de ficar sujeitos a tal futilidade de pensamento.
Penso na referência emblemática de 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, um dos muitos clássicos que, havendo um diferente sentido de risco e alguma imaginação comercial, o mercado poderia relançar e rentabilizar regularmente nos grandes ecrãs das salas IMAX. A relação dos astronautas da nave Discovery One, a caminho de Júpiter, com o seu computador, o célebre HAL 9000, condensa aquilo que, com alguma ironia, podemos chamar a tradição fundadora da informática. Dito de outro modo: a informação que HAL fornece é algo que ainda está ali, disponível, por assim dizer no corpo do computador — o conflito com a máquina nasce do facto de o próprio HAL se recusar a partilhar alguma dessa informação com os humanos que com ele viajam.
Aplicada ao computador, a palavra “corpo” poderá parecer estranha neste contexto, mas na dramaturgia concebida por Kubrick adquire toda a lógica e motivação. Assim, numa das sequências mais lendárias de 2001, David (o astronauta interpretado por Keir Dullea) entra, literalmente, no sistema de ficheiros de HAL para, um a um, os desligar. Nos incríveis grandes planos do rosto de David vemos, no seu capacete, o reflexo desses ficheiros: são mensageiros de um poder que já não se enraiza no humanismo clássico.
Aquilo que, em 2001, tende para a tragédia surgirá, uns anos mais tarde, em Jogos de Guerra (1983), uma realização de John Badham em forma de “thriller” politico-militar, não deixando de ser uma vibrante aventura à moda antiga. Aí encontramos outro David (Matthew Broderick no papel que o transformou numa estrela juvenil), estudante de liceu que, através de peripécias mais ou menos rocambolescas, acaba por aceder ao sistema de defesa dos EUA (NORAD): julgando que está a divertir-se com um “jogo de guerra”, a sua acção ameaça desencadear o apocalipse ou, como se diz no filme, a “guerra termonuclear global”…
Que aconteceu, então? Passámos da crueza física das máquinas para a sua dispersão num universo impessoal, sem centro, em que o consumidor individual já não tem nenhuma relação táctil com essa “nuvem” a que, afinal, pertence. No caso do primeiro David, o confronto dá-se nas entranhas do próprio computador. O segundo David vive a transfiguração do adágio popular segundo o qual o saber não ocupa lugar: no seu sentido original, o provérbio celebra a infinita acumulação de saber; agora, esse saber passou a “residir” numa paisagem etérea que, de facto, já não pertence a nenhum lugar palpável — literalmente, não ocupa lugar.
Pormenor simbolicamente interessante: ambas as personagens surgem com o mesmo nome próprio: David. Um e outro estão, de facto, em luta com um “Golias” que os transcende. Os respectivos apelidos são ainda mais reveladores. O astronauta de Kubrick chama-se David Bowman, à letra, “homem do arco”: é um arqueiro, alguém que ainda transporta a memória medieval de combates ancestrais. O estudante filmado por Badham é David Lightman, “homem da luz”, como se a intensidade do saber que lhe é dado contemplar o pudesse cegar.

sexta-feira, julho 08, 2022

Cinema, confinamento & etc.

O Leopardo (1963)
— Alain Delon e Claudia Cardinale filmados por Visconti

Repensar o cinema, aqui e agora, é uma tarefa que não pode ignorar as regras dominantes do consumo dos filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 junho), com o título 'Da diferença à indiferença'.

Investigador e professor de cinema, José Bogalheiro acaba de publicar um livro, tão breve quanto motivador, a que chamou Se Confinado um Espectador (ed. Documenta). Trata-se de uma colectânea de textos escritos entre novembro de 2020 e julho de 2021 (para o site “À Pala de Walsh”), nascidos, tal como o título sugere, em contexto de pandemia, assombrados pelos sinais de progressiva decomposição dos circuitos clássicos do cinema.
No primeiro texto, motivado pelo filme A Voz Humana (2020), de Pedro Almodóvar, o autor recorda mesmo que “de semana para semana, multiplicam-se as notícias cada vez mais inquietantes sobre o encerramento de salas de cinema.” Não sem concluir que importa não desistir do voto formulado pelo próprio Almodóvar no sentido de não esquecermos as emoções do fenómeno cinematográfico, recomendando aos espectadores que “vão ao cinema, pois todas essas emoções se descobrem apenas num grande ecrã, entre desconhecidos, e às escuras.” O subtítulo do livro, convém sublinhar, é esclarecedor: O cinema como metamorfose da experiência interior.
Directa ou indirectamente, o livro de José Bogalheiro impele-nos a regressar a algum tipo de reflexão sobre os poderes e perversões da conjuntura virtual — entenda-se: o poder imenso das plataformas de streaming — em que os filmes passaram a viver no imaginário dos espectadores (ou a morrer na memória colectiva).
E não apenas por causa do contraste que pode existir entre a grandeza física de um ecrã de uma sala de cinema e a insuperável “pequenez” das nossas experiências caseiras, mesmo quando marcadas por suplementos técnicos que o marketing não desiste de valorizar. O que está em jogo é a diferença radical entre os valores de uma cinefilia indissociável de uma história frondosa do cinema com mais de um século — sempre envolvida por um código tácito de comportamentos sociais — e a ligeireza, tão festiva quanto irresponsável, do consumo indiferenciado de filmes.
Nesse contexto de indiferenciação, os filmes já não são filmes; como gostam de dizer alguns executivos de empresas de cinema, são “produtos”. Não é uma banal troca de palavras: para tal discurso, o cinema como entidade específica da história da humanidade não existe. No limite, podemos encontrar na Netflix um filme como Austerlitz (1960), de Abel Gance, sem que haja uma única informação, ainda que esquemática ou banalmente enciclopédica, sobre o papel criativo e o lugar mítico do seu realizador na dinâmica histórica e artística do grande cinema popular (nota pedagógica: muitos exemplos deste tipo, primários e chocantes, podem encontrar-se em quase todas as plataformas).
Num dos seus textos, José Bogalheiro recorda outro tipo de “objectificação” dos filmes. Assim, há quase 60 anos, a difusão de O Leopardo (1963), de Luchino Visconti, adaptando o romance homónimo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, foi objecto das mais variadas peripécias. Recordemos, simplificando: na estreia, numa sala de Roma, o filme tinha uma duração de 197 minutos, tendo mais tarde ganho a Palma de Ouro de Cannes com 185 minutos — esta versão, que serviu de base ao restauro de 1991, acabou por ser considerada a “definitiva”; pelo meio, a versão “anglo-americana” fez com que, em vários mercados, o filme fosse distribuído em cópias de fraca qualidade, resultantes dos chamados contratipos (cópias de cópias) com crescente degradação da qualidade das imagens.
As atribulações da obra-prima de Visconti podem ser revisitadas como um pequeno conto moral para os nossos tempos de acumulação caótica de imagens e estímulos visuais (e sonoros). Assim, a fixação de O Leopardo na sua cópia “definitiva” está, por certo, contaminada por diversas formas de mercantilismo; ainda assim, foi vivida como uma saga interior ao próprio cinema e às suas componentes específicas.
Nos dias que correm, a exaltação comercial da “diferença” — por exemplo: ter acesso caseiro a um filme “qualquer” — transforma-se, por vezes, num triunfo obsceno da indiferenciação. Seja um filme de Abel Gance, seja a mais vulgar barulheira protagonizada por um super-herói mil vezes reciclado, tudo se acumula na gratificação pueril do consumo. Como José Bogalheiro refere, lembrando George Steiner, “não estamos livres da barbárie” que começa na iliteracia face às imagens. A tragédia política que isso envolve obriga os políticos a pensar as imagens que usam — ou em que são usados.

sábado, julho 02, 2022

A civilização dos GIF

Annie Ernaux e os filhos: memórias em película Super 8

Agora através do cinema, a escritora francesa Annie Ernaux não desiste de cultivar e partilhar o tempo das memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 junho), com o título 'A civilização das imagens repetidas'.

O que é um GIF? Mesmo que qualquer um de nós nunca tenha dado atenção a tal sigla, já todos fomos expostos à infinita variedade dos GIF que proliferam na Net. São ficheiros (Graphics Interchange Format) que permitem autonomizar um determinado movimento, de imagens de qualquer origem, repetindo-o continuamente — uma espécie de desenho animado de breves segundos que permanece, repetindo-se. Usando os termos da própria net, dir-se-ia uma mensagem instantânea da família de um “emoji” ou “smiley”, com a diferença de, no caso do GIF, haver movimento.
E se a civilização que construímos (e todos os dias reproduzimos) fosse uma espécie de espectáculo global de incontáveis GIF? Vivemos, de facto, um tempo em que a infinita repetição de algumas imagens seleccionadas passou a ser o regime dominante de quase todas as linguagens audiovisuais, do jornalismo à publicidade, passando pela política.
Descobrimos aquele anúncio do automóvel eléctrico que promete libertar-nos das agruras dos combustíveis fósseis e, ao longo do dia, podemos revê-lo em todos os nossos ecrãs, até mesmo a abrir um qualquer video do YouTube… Vemos novas imagens de devastação na Ucrânia e essas mesmas imagens vão-nos acompanhando, também ao longo do dia, como fantasmas de algo que, em boa verdade, já não estamos a olhar… Por vezes, entre perplexidade e sonambulismo, as incessantes repetições levam-nos até a reconhecer que determinada notícia “de última hora” surge “ilustrada” com imagens que já tínhamos visto há dois ou três dias.
Que acontece, então? Abdicamos de conhecer e querer conhecer. Trocamos o gosto primordial da curiosidade pelo efeito hipnótico da repetição. Como se já não fôssemos capazes de sentir, ainda menos desejar, a dimensão radical que o olhar e a escuta podem envolver: encaramos o mundo como uma colagem interminável de GIF, desfrutando a felicidade mórbida de não pensar, instalados que estamos na espera inconsciente das mesmas imagens.
Como sair deste torpor? Talvez que as imagens se possam revoltar e contribuir para o nosso despertar. Creio que é algo dessa esperança que está num dos filmes que, fora da competição para a Palma de Ouro, mais me impressionou no recente Festival de Cannes (17-28 maio) — refiro-me a Les Années Super 8, de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, apresentado na Quinzena dos Realizadores.


Annie Ernaux é a escritora de romances admiráveis como Uma Paixão Simples e O Acontecimento (o primeiro está editado pelos Livros do Brasil, tradução de Tereza Coelho), ambos adaptados ao cinema com resultados excepcionais, respectivamente em 2020 e 2021, com realização de Danielle Arbid e Audrey Diwan. Com a ajuda de um dos filhos, David Ernaux-Briot, decidiu revisitar as imagens — em formato amador Super 8, como o título refere — que pertencem ao património da sua família: “Ao rever os nossos filmes Super 8 rodados entre 1972 e 1981, compreendi que constituíam um arquivo familiar, mas também um testemunho sobre as formas de lazer, o estilo de vida e as aspirações de uma classe social ao longo da década que se seguiu a 1968.” Daí o método de revisitação: “Face àquelas imagens mudas, senti o desejo de as integrar numa narrativa cruzando o íntimo, o social e a história, expondo o gosto e a cor daqueles anos” (o comentário do filme é escrito e lido pela própria Annie Ernaux).
Que está em jogo? Pois bem, precisamente o contrário da ideologia dos GIF: não a redução do tempo a uma rotina de preguiçosos “mini-espectáculos”, prisioneiros de uma significação determinista, antes o empenho em não abdicar da riqueza histórica e do valor simbólico da memória.
De tal modo que no grão daquelas imagens, sinal de um tempo de outras tecnologias (observe-se o fotograma aqui reproduzido), podemos sentir a vibração insubstituível do tempo que passa, do amor que por ele passou. No limite, tal vibração faz-nos pressentir a fronteira compulsiva da morte. E o seu contrário: a energia vital de existir — em regime solitário, procurando alguma relação com outros.
Nesta perspectiva, a narrativa de Les Années Super 8 não é estranha ao romance autobiográfico Os Anos, distinguido com o Prémio Marguerite Duras de 2008 (Livros do Brasil, tradução de Maria Etelvina Santos). Annie Ernaux inicia-o, aliás, com uma frase que poderia servir de epígrafe ao seu filme: “Todas as imagens irão desaparecer”. Porquê? Porque através delas aprendemos o misto de urgência e vulnerabilidade de que se faz qualquer memória. Agora, na era dos GIF, ignoramos a singularidade de cada imagem, menosprezando o tempo de contemplação que ela pode exigir — queremos apenas passar à imagem seguinte.

quinta-feira, maio 26, 2022

CANNES
— os novos corpos de Cronenberg

Viggo Mortensen e Léa Seydoux sob o olhar de David Cronenberg:
um futuro na fronteira do humano

O novo filme de David Cronenberg, Crimes of the Future, ficará como um dos títulos fundamentais de Cannes/2022: alheio às convenções do “cinema de terror”, o cineasta canadiano encena um tempo futuro em que os corpos humanos se estão a transformar a partir do seu interior — estes parágrafos pertencem a um texto publicado no Diário de Notícias (26 maio).

O canadiano David Cronenberg está de volta à competição do Festival de Cannes com um filme tão inclassificável quanto fascinante: seja qual for o palmarés, 2022 ficará como o ano de Crimes of the Future, um daqueles objectos que nos faz sentir que o gosto e a imaginação do cinema ainda não foram devorados pelos valores mercantis que contaminam muitas formas de produção e consumo.
Tudo se passa num futuro mais ou menos próximo, encenado em cenários de gigantescas construções degradadas (a rodagem decorreu na Grécia, na zona de Atenas). Dir-se-ia um futuro resultante de ruínas de meados do século XX, o que não deixa de envolver uma desconcertante “coincidência”: a solidão granítica dos ambientes faz lembrar a segunda longa-metragem de Cronenberg, lançada em 1970 e também intitulada Crimes of the Future; nela se narra uma “peste” que atinge as mulheres que usaram determinados produtos de cosmética… A acção situa-se em 1997.
Seja como for, não estamos perante um “remake”. As personagens do novo Crimes of the Future vivem assombradas por um inusitado fenómeno, aparentemente gerado pelas componentes sintéticas das novas formas de vida. Assim, sem qualquer interferência humana, alguns corpos passaram a comportar-se como máquinas geradoras de… novos órgãos — no seu interior, entenda-se.
Por um lado, isso leva um artista como Saul Tenser (Viggo Mortensen) a montar espectáculos marginais com a sua companheira Caprice (Léa Seydoux), performances que são verdadeiras cirurgias de amostragem daquilo que está a acontecer dentro do seu corpo; por outro lado, as autoridades tentam registar e controlar o fenómeno através de burocratas como Timlin (Kristen Stewart), figura emblemática de um novo departamento oficial: o Registo Nacional de Órgãos.
Dito isto, talvez seja oportuno acrescentar que, uma vez mais, a inscrição do trabalho de Cronenberg nas rotinas do “cinema de terror” não faz qualquer sentido. Para o autor de filmes como A Mosca (1986), Irmãos Inseparáveis (1988) ou eXistenZ (1999), o que mais conta é essa noção, de uma só vez filosófica e poética, de que o corpo, sendo o instrumento visível da nossa humanidade, existe também como motor (orgânico, é caso para dizer) daquilo que abala as certezas do factor humano. Em Irmãos Inseparáveis, sobre dois gémeos ginecologistas, há uma cena em que Jeremy Irons diz que devia haver também concursos dedicados ao interior dos corpos e à beleza dos seus órgãos — pois bem, está feito!

sábado, abril 23, 2022

Informação / desinformação [citação]

[New York Times]

>>> Estou convencido de que, neste momento, uma das maiores razões para os crescentes ataques contra a democracia, nos EUA e globalmente, é a mudança que está a acontecer no modo como comunicamos e consumimos informação. As mesmas tecnologias que tornam possível ligarmo-nos, em tempo real, com praticamente qualquer pessoa do mundo, estão a ser cada vez mais usadas para criar realidades alternativas que espalham o fogo da violência étnica, promovem o autoritarismo e espalham teorias da conspiração. O resultado tem sido uma gradual erosão da confiança nos representantes públicos, nas organizações mediáticas e nas instituições políticas que são necessárias para que a democracia funcione.

BARACK OBAMA
21 abril 2022

terça-feira, março 22, 2022

O conceito “social” do Facebook

O que é e, sobretudo, o que significa formatar a circulação de informação consumida por 2,8 mil milhões de pessoas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 março).

Praticamente desde a sua invenção, o Facebook tem lidado com problemas suscitados pela gestão dos respectivos “conteúdos”, em especial os que possam ser interpretados como incitamentos a formas de violência. E há que reconhecer que Mark Zuckerberg e os seus advogados conseguiram montar um dispositivo “social” que tende a paralisar o nosso pensamento de consumidores: a hiperbolização dos problemas legais enfrentados pelo Facebook vai mascarando as tragédias morais que lhe possam estar associadas.
Por estes dias, surgiu uma nova questão indissociável dessa conjuntura de pensamento que, escusado será sublinhá-lo, é também um sistema mediático de representação do mundo. Segundo as notícias (tomo como referência um artigo da BBC publicado no respectivo site, no dia 11 de março), a empresa Meta, proprietária do Facebook, fez saber que “Facebook e Instagram permitirão em alguns países que os utilizadores apelem à violência contra Vladimir Putin e os soldados russos.”
A tomada de posição da Meta é particularmente explícita: “Tendo em conta a actual invasão da Ucrânia, estabelecemos uma excepção temporária para que os que estão a ser afectados pela guerra possam expressar sentimentos violentos contra as forças armadas invasoras”. A BBC acrescenta que tal determinação permitirá que “os utilizadores de países como a Rússia, a Ucrânia e Polónia possam apelar à morte de Putin, Presidente da Rússa, e Lukashenko, Presidente da Bielorrússia”.
Semelhantes directrizes estão a gerar uma enorme agitação “social” (como, aliás, o Facebook tanto preza). E até mesmo o actual poder político russo, responsável pela terrível orgia de violência a que vamos assistindo dia após dia, achou por bem vir a público comentar o assunto. Num tweet da Embaixada da Rússia nos EUA, surgiu esta “reivindicação”: “Pedimos às autoridades dos EUA que ponham fim às actividades extremistas da Meta e tomem medidas para levar os perpetradores à justiça”. Mais ainda: “Os utilizadores do Facebook e Instagram não deram aos donos dessas plataformas o direito de determinar o critério de verdade, colocando as nações umas contra as outras.”
Seria saudável, creio, que o cinismo diplomático das autoridades russas não nos bloqueasse ainda mais, impedindo-nos de pensar e discutir a ideologia do Facebook. Uma coisa é a profunda revolta que sentimos face à agressão militar do governo russo contra a Ucrânia. Outra coisa, apesar de tudo bem diferente (até porque muito anterior à tragédia que o povo ucraniano está a viver), é o sistema de “vigilância” de que o Facebook se arroga detentor, a ponto de se apresentar como entidade legisladora da circulação de informação no planeta Terra — afinal de contas, estamos a falar de uma plataforma que, em 2020, anunciava possuir 2,8 mil milhões de utilizadores.
Desde o início de tudo isto, há qualquer coisa de obsceno na palavra “social” associada ao Facebook — é mesmo uma palavra reivindicada, formatada e normalizada pelo Facebook. A tal ponto que deixámos de identificar todas as nossas redes (familiares, profissionais, afectivas, etc.) como sociais, aceitando que uma entidade comercial assumisse a exclusividade do seu uso.
Na raiz da concepção do Facebook está a instalação de uma lógica multiplicadora potencialmente infinita. Em 2010, fomos alertados para isso por esse filme prodigioso que é A Rede Social (2010), escrito por Aaron Sorkin e realizado por David Fincher. A avalanche “social” do Facebook, na altura com cerca de 500 milhões de assinantes, era mesmo sustentada por diversos discursos “libertários” (alguns de natureza jornalística) que proclamavam um novo ecumenismo: estamos todos “ligados”, logo isso só pode favorecer a comunhão, a transparência e a paz…
A certa altura, em A Rede Social, numa cena dos tempos da universidade, a personagem de Zuckerberg (Jesse Eisenberg) diz mesmo a Eduardo Saverin, co-fundador do Facebook: “As pessoas querem estar online e saber dos amigos, porque não construir um site que ofereça isso? Amigos, imagens, perfis, tudo o que se possa visitar, navegar, talvez alguém que acabámos de conhecer numa festa… Eduardo, não estou a falar de um site de encontros, estou a falar de recolher toda a experiência social da universidade e colocá-la online.”
Compreendemos agora: “toda a experiência social” significava, afinal, assumir as funções de tribunal da verdade e da mentira, da paz e da violência, no limite em nome da satisfação de 2,8 mil milhões de pessoas. Numa sessão pública realizada a 7 de novembro de 2014 nas instalações do Facebook, Zuckerberg, em pose de bom moralista, não deixou de classificar A Rede Social como um filme “algo ofensivo”. Ainda assim, nessa mesma sessão ficámos a saber que Fincher foi especialmente rigoroso na representação do guarda-roupa de Zuckerberg — a sua “t-shirt” cinzenta era mesmo a indumentária preferida para o dia a dia de trabalho.

terça-feira, dezembro 28, 2021

To Google or not to Google

Uma humanidade global... Mas, afinal, quais são os factores ou valores que nos definem enquanto indivíduos pertencentes a uma globalização?
A pergunta deixou de ser uma curiosidade sociológica. Em boa verdade, transformou-se num teste de identidade — permamente, premente, apresentado e vivido como revelador dessa globalização sem alternativa.
É essa a "mensagem" do sofisticadíssimo video (aqui em baixo) que este ano, mais uma vez, a Google produziu para resumir o ano enquanto procura de palavras — Year in search 2021. Mais do que isso: no respectivo site podemos consultar todas as variações mês a mês, dos temas que procurámos na Net. Descobrimo-nos, assim, não exactamente como utilizadores de um motor de busca, antes intérpretes da sua redentora inventariação do mundo.
A globalização talvez seja apenas um sistema de circuitos que trabalha, não tanto para conhecer o mundo, antes para o definir como uma paisagem virtual de trocas infinitas — e da felicidade prometida no facto de as poder fazer. 
 

segunda-feira, outubro 25, 2021

"A escolha do Facebook" [citação]

>>> Isto não é um assunto que se esgote no facto de alguns utilizadores das redes sociais se mostrarem agressivos ou instáveis, ou que um lado se radicalize face ao outro; isto é sobre a escolha do Facebook no sentido de crescer por qualquer preço, tornando-se uma companhia de quase um trilião de dólares, optando pelos seus lucros contra a nossa segurança. 

— citada na revista Time,
25 out./1 nov. 2021

domingo, outubro 03, 2021

Facebook
— os algoritmos não explicam tudo

Como funciona o Facebook? Escrito por duas jornalistas do New York Times, An Ugly Truth é um livro precioso para desmontar um sistema de (des)informação capaz de perverter os valores democráticos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 setembro).

Aaron Sorkin
Há alguns anos, comentando o argumento que escreveu para A Rede Social (2010), o filme de David Fincher sobre a criação do Facebook, Aaron Sorkin fez uma curiosa observação: “O que me atraiu foi, com um pano de fundo muito moderno, encontrar uma história tão antiga como a própria arte de contar histórias — sobre amizade, lealdade, poder, traição, classe, ciúme, todas essas coisas sobre as quais escreveram Ésquilo ou Shakespeare…”
Dir-se-ia que, agora em livro, encontramos um prolongamento do prodigioso trabalho de Sorkin (Oscar de argumento adaptado). Em An Ugly Truth (The Bridge Street Press, Londres, 2021), Sheera Frenkel e Cecilia Kang oferecem-nos 300 páginas vertiginosas sobre o Facebook, mais exactamente sobre a dramática evolução da plataforma digital de Mark Zuckerberg — de uma “brincadeira” de estudantes universitários até à condição de entidade susceptível de viciar os mecanismos da democracia política.
No começo, havia essa utopia informática de “colocar todos os seres humanos online” (segundo uma expressão da revista Time, em 2014, titulando um dossier sobre Zuckerberg). A pouco e pouco, a dinâmica dos algoritmos da “rede social” foi-se revelando cada vez mais enredada e menos social, a ponto de se tornar um elemento politicamente perverso das convulsões que pontuaram o “reinado” de Donald Trump. Daí a escolha das autoras: “Optámos por focar um período de cinco anos, entre duas eleições nos EUA, durante o qual foi exposto o falhanço da companhia em proteger os seus utilizadores e também as suas vulnerabilidades enquanto poderosa plataforma global. (…) Seria fácil reduzir a história do Facebook a um algoritmo que correu mal. A verdade é muito mais complexa.”

Uma companhia publicitária

Frenkel e Kang são jornalistas do New York Times, a primeira especializada em informática e segurança cibernética, a segunda analisando tecnologia e respectiva regulamentação legal. An Ugly Truth (à letra: “uma verdade feia” ou “terrível”) começa por ser, justamente, um invulgar objecto de investigação jornalística, integrando e contextualizando uma avalancha de factos, documentos e depoimentos. O objectivo é identificar e compreender o sistema ideológico que define a acção de Zuckerberg desde os tempos do nascimento do Facebook na Universidade de Harvard (precisamente o período tratado no filme de Fincher): “Essa ideologia estava enraizada numa versão de princípios libertários favorecendo a inovação e mercados livres, ao mesmo tempo desdenhando os limites impostos pelos governos e regulamentações.”
O livro é rigorosamente didáctico no modo como explica a proliferação de notícias falsas postas a circular pela Rússia ou mensagens racistas de grupos apoiantes de Trump, evitando sempre ceder ao cliché bombástico segundo o qual o Facebook estaria “ao serviço do presidente”. O que está em jogo não decorre de um laço tradicional de subserviência política, mas sim de uma lógica visceralmente comercial: o Facebook funciona como “companhia publicitária” em que a multiplicação de links (geradora de rendimento) é o elemento dominante. De forma simples: o Facebook não é uma religião da transparência global, mas um negócio.
Como? Gerando fluxos de exposição aos anúncios que publica, quase sempre secundarizando as questões de segurança e, em particular, instrumentalizando os dados pessoais dos utilizadores — em 2018, o escândalo da Cambridge Analytica, empresa britânica de consultadoria política, revelou a manipulação indevida de dados pessoais de 87 milhões desses utilizadores. Ou como se escreve em An Ugly Truth: “Zuckerberg mantinha um discurso positivo sobre o empenho da plataforma na segurança dos dados privados, mas o consenso generalizado no interior da própria companhia era que o crescimento vinha primeiro, sendo a segurança e a protecção questões secundárias.”

Amigos e inimigos

O livro de Frenkel e Kang mostra que não basta classificar os desastres (des)informativos do Facebook como “desvios” da sua filosofia fundadora: é essa filosofia que produz tais desastres, a começar pelo conceito de “News Feed”. Nele se reflecte um individualismo pueril: o utilizador da plataforma é induzido, não a conhecer a pluralidade do mundo, antes a aceder (apenas) às notícias que “definem” o seu mundo: “Enquanto os editores de um jornal determinam a hierarquia de artigos que surgem na primeira página ou na entrada de um site, Zuckerberg imaginou uma hierarquia personalizada de ‘graus de interesse’ capaz de definir aquilo que cada utilizador vê na sua versão individual do feed.”
Consequência prática? Através dos mecanismos técnicos postos em prática pelo Facebook, uma qualquer “notícia” que, pela sua temática ou natureza “polémica”, surja em muitos feeds, irá repetir-se ainda mais. A sua omnipresença tende a gerar um efeito automático e acrítico de “verdade”. Exemplo? A impostura do chamado “Pizzagate”, sobre uma rede de pedofilia, a funcionar a partir de um restaurante de Washington, organizada por elementos próximos de Hillary Clinton…
Por alguma razão, ao longo destes cinco anos muitos órgãos de informação de todo o mundo (BBC, CNN, The Washington Post, etc.) montaram gabinetes de análise da veracidade das informações que circulam “automaticamente” na Net, sobretudo no Facebook. An Ugly Truth é um livro precioso para conhecermos tal conjuntura e o desafio que, não poucas vezes, o seu funcionamento representa para os valores democráticos. Ou como se dizia, em 2010, no cartaz do filme A Rede Social: “Não é possível obter 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos.”

terça-feira, agosto 31, 2021

Stanley Kubrick, Spike Jonze
e os nossos assistentes virtuais

Ele e ela

Falar com as máquinas deixou de ser futurismo: há mesmo quem diga que se trata de uma experiência “natural e enriquecedora” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 agosto), com o título 'Na companhia do nosso assistente virtual'.

Eis um discurso optimista, produto de algumas das mais discretas, e também mais poderosas, convulsões culturais que vão transfigurando o mundo em que vivemos: “O desenvolvimento de sistemas de voz em aplicações móveis, sites da internet, telemóveis e smartphones decorre do crescente interesse dos consumidores em estabelecer diálogo com os seus dispositivos técnicos.” Quem o diz é Donald Buckley, em artigo de opinião no Variety (5 agosto), ele que desempenha funções de consultor da Open Voice Network, associação que se define como “neutra, sem fins lucrativos”, tendo como objectivo fundamental o “desenvolvimento de directrizes para os padrões e a ética que tornarão a voz um elemento de confiança para os consumidores.”
Não tenho nenhuma razão para duvidar da seriedade da Open Voice Network, muito menos das competências do articulista e do rol de colaboradores que a instituição apresenta no seu site. Aliás, na melhor tradição anglo-saxónica da informação jornalística, Buckley está longe de reduzir a sua exposição a um banal panfleto “moral”, dando também a conhecer a tecnologia da voz (“voice technology”) na sua dimensão de gigantesca economia global.
As estatísticas americanas são elucidativas. Assim, entre 2018 e 2020, o número de pessoas com “assistentes de voz” nos smartphones cresceu 23%. Por sua vez, em janeiro de 2021, os dispositivos caseiros accionados pela voz ultrapassaram os 90 milhões de unidades, envolvendo um terço da população adulta dos EUA. Com uma crescente aplicação no consumo dos chamados conteúdos audiovisuais (notícias, filmes, séries, etc.), os negócios da tecnologia de voz deverão valer, em 2023, qualquer coisa como 80 mil milhões de dólares (contas redondas, ao câmbio actual: 68 mil milhões de euros).
Para já, a Amazon Alexa será o mais conhecido “assistente de voz” ou, de acordo com a gíria comercial, “assistente virtual”. A sua promoção sugere mesmo a possibilidade de integração nas mais variadas tarefas quotidianas, a ponto de o respectivo site oficial proporcionar um “curso de design de voz” com qualquer coisa que, à falta de melhor, poderemos classificar como nova iniciação ao canto coral: “(…) você aprenderá a criar experiências de voz naturais e enriquecedoras”.
Naturais? Enfim, não será difícil imaginar as possíveis vantagens práticas de um “assistente de voz” em situações muito variadas, da manipulação dos mais complexos artefactos da investigação científica até às situações de pura intimidade (por exemplo, nas lides com as máquinas caseiras por alguém que possua determinadas limitações físicas). Acontece que, mais do que nunca, importa lembrar que a natureza nunca é… natural. Ou melhor: aquilo que designamos como naturalidade dos comportamentos é sempre social e conjuntural, numa palavra, cultural.
O cinema, quase sempre secundarizado nas reflexões sociais e políticas sobre os nossos modos de viver (e morrer), possui uma nobre antologia de títulos que lidam com a “naturalização” da tecnologia e os seus efeitos dramáticos nas nossas vidas. Será preciso recordar as atribulações físicas e metafísicas provocadas pelo computador HAL 9000 em 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick? Penso, em particular, num filme mais recente, Her - Uma História de Amor (2013), de Spike Jonze, em que, numa paisagem futurista, mas contemporânea (Xangai dos nossos dias), Joaquin Phoenix se transfigura através da relação — entenda-se: relação falada — com o seu computador (aliás, “sistema operativo”) que se exprime com a voz de Scarlett Johansson [video].
A indiferença quotidiana aos poderes da tecnologia e a estreiteza do pensamento social sobre tais perplexidades são tanto maiores quanto há um vício (des)informativo que tende a condensar tudo numa dicotomia pueril: “pró” ou “contra” as máquinas… Como se se tratasse de reencontrar um ilusório paraíso perdido, pré-Revolução Industrial.
Estamos, afinal, a ser mobilizados para um novo sistema cognitivo que elege o “diálogo” com entidades virtuais como uma experiência “enriquecedora”. No limite, comprometemos a qualidade humana da nossa literacia, participando na decomposição de um sistema de percepção do mundo enraizado na escrita e na leitura.

quarta-feira, maio 19, 2021

Há um artista a viver
dentro do seu “smartphone”

PIERRE BONNARD
A Sobremesa (1921)

Nos telemóveis, as fotografias deixaram de ter valor: é preciso usar uma aplicação e “transformá-las em arte” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 abril).

No menu dos “smartphones” proliferam aplicações que nos convidam a fazer fotografias com os mais variados recursos técnicos. Incluindo as que evocam certas memórias mais ou menos distantes, algumas permitindo até a recuperação nostálgica de películas que, como dizem os tecnocratas, foram “descontinuadas”. Exemplo insólito: uma aplicação que oferece a possibilidade de refazer o “look” de uma determinada película da Fuji que, pela densidade dos seus verdes e castanhos, ficou associada ao visual da década de 1990 — a “actualização” vai ao ponto de inscrever nas imagens agora obtidas uma data de um ano daquela década.
apppage
Existem também aplicações para a manipulação técnica das fotografias. Em boa verdade, muitas delas estão concebidas para um bizarro tratamento laboratorial das imagens. Tais recursos digitais não são novidade, mas confesso que só recentemente me apercebi da sua frondosa multiplicação e, em particular, do princípio “criativo” que proclamam. A saber: trata-se de “transformar as suas fotografias em arte”.
Que arte é esta? Pois bem, são hipóteses de intervenção que podem fazer lembrar ancestrais tratamentos da fotografia em papel (algum tipo de alto contraste ou o efeito de um filtro difusor atenuando os contornos de corpos e objectos) ou processos de “morphing” cujo delírio chega ao ponto de existir uma aplicação que sugere a conversão de um rosto por nós fotografado “à maneira de” Edvard Munch e do seu célebre quadro O Grito
Que aconteceu no nosso imaginário tecnológico (ou na tecnologia que determina o funcionamento do nosso universo figurativo) para que a intervenção artística seja definida — e oferecida — como esta possibilidade pueril? Porquê e para quê manipulações técnicas que têm tanto de automatizado como de impessoal?
Dois princípios ideológicos parecem confluir aqui — e são tanto mais poderosos quanto se confundem com uma espécie de “estado natural” da produção e difusão de imagens. O primeiro procura gratificar o nosso individualismo digital: somos proprietários e, mais do que isso, criadores de imagens que mais ninguém tem. O segundo, mais insidioso e profundamente reaccionário, sugere que as imagens (sobretudo as fotografias) são acidentes sem importância que só se “transformam em arte” quando nelas aplicamos algum “efeito especial”, promovendo a figuração do mundo a um jogo infinito de manipulações mais ou menos arbitrárias.
Les Demoiselles d'Avignon
Na tristeza congénita deste paraíso digital, a diferença artística é moeda de fraco valor, só se afirmando a partir do momento em que aplicamos os recursos… de alguma aplicação. A redundância envolve um desagradável menosprezo: os fabricantes das aplicações não acreditam que qualquer um de nós, usando o seu “smartphone”, possa fazer uma fotografia que, modéstia à parte, se distinga por alguma singularidade artística.
As aplicações que querem transformar as nossas imperfeições quotidianas “em arte” conseguem, assim, reavivar o velho preconceito que acompanhou (e, pelos vistos, continua a acompanhar) a nossa relação com a pintura que foi dispensando as matrizes figurativas dos séculos XVIII e XIX. Como se, em 1907, os corpos distorcidos de Les Demoiselles d’Avignon fossem um “engano” de Pablo Picasso e não o risco calculado de quem procurava a alegria de novas linguagens.
Seguindo tal perspectiva meramente tecnológica, o quadro A Sobremesa, pintado por Pierre Bonnard há um século (1921), poderia até ser apresentado como uma pré-história das aplicações dos “smartphones”. Em vez de se limitar à reprodução fotográfica, Bonnard teria partido da sua evidência para depois “retocar” tudo com manchas de cor mais ou menos festivas, susceptíveis de definir um belo padrão de cores, eventualmente adaptável a alguma linha de pronto a vestir…
Que Bonnard seja, por exemplo, um dos mais complexos retratistas da intimidade humana ou um metódico reconstrutor das regras clássicas da profundidade de campo, eis o que não passa, por certo, de divagação “intelectual”. Em nome da tecnologia, demitimo-nos do prazer de ver.