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domingo, janeiro 24, 2021

10 filmes de 2020 [10]

Waad Al-Kateab e Edward Watts

Há uma dimensão pessoal, de supremo intimismo, na saga de sobrevivência de Waad Al-Kateab: o seu registo do cerco de Aleppo, na Síria, é tanto mais tocante quanto envolve o nascimento da sua filha, Sama. Ao mesmo tempo, este é um exemplo precioso de um cinema que existe como genuíno gesto de acção & pensamento. Nem que seja através da ligeireza atribulada de um telemóvel, trata-se de registar situações que, pela sua especificidade e duração, escapam à (falta de) lógica de qualquer fragmento "viral", televisivo ou online — raras vezes o documentário foi tão visceral e, até às mais drásticas consequências, realista.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ] [ 5. American Utopia ]

terça-feira, janeiro 19, 2021

10 álbuns de 2020 [10]

Alisa Weilerstein

Há muito liberta dos efeitos da imagem de "menina-prodígio" (começou aos 4 anos), a violoncelista americana Alisa Weilerstein (n. 1982) protagoniza um processo de depuração que, agora, a conduziu, dir-se-ia que com desarmante naturalidade, às Seis Suites de Bach. De acordo com as suas próprias palavras, tratava-se de explorar as "infinitas possibilidades" das partituras de Bach, de alguma maneira preservando a singularidade de cada performance, porventura diferente da do dia anterior e da que possa acontecer num dos dias seguintes. Resultado: uma sensação de verdade primordial em que a racionalização da música e a contida sensualidade do toque se cruzam, contaminam e, por fim, festivamente se transfiguram uma na outra [video: Sarabande da Suite nº4 — concerto na Ópera de Frankfurt, 17 janeiro 2020]. Se quisermos escolher o disco "mais perfeito" de 2020 (e porque não?...), poderá ser este.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

segunda-feira, janeiro 11, 2021

10 álbuns de 2020 [9]

The Rolling Stones

Pois... Não é um álbum de 2020. Surgiu em 1973, um ano depois do monumental Exile on Main St., sendo "musicalmente correcto" lembrar que com ele começou a "decadência" dos Rolling Stones. Pois... Digamos que podemos tentar ver, aliás, escutar para lá do espartilho da(s) história(s) e desfrutar esta edição DeLuxe, remisturada por Giles Martin. Como se a energia do rock'n'roll fosse uma causa sem tempo, nem templo, apenas fiel à electricidade de palavras, guitarras e corpos. Com preciosidades como Coming Down Again, Angie e Winter [video], sem esquecer o bónus de um concerto de 1973, em Bruxelas.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

quinta-feira, janeiro 07, 2021

10 filmes de 2020 [8]

Antonio Campos

Digamos, para simplificar, que esta não foi uma das prioridades promocionais da Netflix — nem mesmo para tirar partido de um elenco que inclui Tom Holland, Robert Pattison, Riley Keough, Bill Skarsgard e Mia Wasikowska... É pena, já que não é todos dias que um cineasta, neste caso o americano de ascendência brasileira Antonio Campos (autor do prodigioso Depois das Aulas, 2008), arrisca retomar matrizes dramáticas que provêm de clássicos como Vincente Minnelli para elaborar uma saga familiar que liga a Segunda Guerra Mundial ao tempo da presença militar americana no Vietname, gerando perturbantes ecos simbólicos no presente. Quando se organizar a memória cinematográfica da "época Trump", este The Devil All the Time será, por certo, uma referência incontornável.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ] [ 5. American Utopia ]

segunda-feira, janeiro 04, 2021

10 álbuns de 2020 [8]

Ambrose Akinmusire

Que significa ter a pele negra, viver, pensar e fazer música nos EUA deste nosso século XXI? O jazz do trompetista Ambrose Akinmusire nasce de uma interrogação política capaz de integrar os mais genuínos riscos vanguardistas, preservando sempre o fulgor de uma herança a que, como é óbvio, o património do blues nunca é estranho. O seu quinto álbum de estúdio tem qualquer coisa de cerimónia filosófica, escuta-se como um capítulo essencial de uma aventura em movimento — exemplo: An That Get’ More Intense (Interlude).



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]
[ 6. Bernard Herrmann ] [ 7. Haim ]

domingo, janeiro 03, 2021

10 álbuns de 2020 [7]

Haim

Ao terceiro álbum, as irmãs Haim — Este, Danielle e Alana (da esquerda para a direita) —, de Los Angeles, continuam a habitar um território tradicional, de assumida solidão criativa, sem ostentação. As suas genuínas raízes pop integram as marcas de um romantismo paradoxal, amargo nas memórias, festivo nas melodias, sofisticado nos ritmos. Ponto a não menosprezar: uma parte importante da sua identidade iconográfica foi-se consolidando através dos telediscos em que foram encenadas por Paul Thomas Anderson — este é o tema The Steps, numa passagem pelo programa CBS This Morning.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

sexta-feira, janeiro 01, 2021

10 filmes de 2020 [6]

Roman Polanski

Em tempos de "purificação" compulsiva, insidiosa e quotidiana, como evocar o "affaire Dreyfus", o anti-semitismo na França de finais do século XIX e o valor ancestral de defesa da verdade? Polanski recusa todas as facilidades mais ou menos espectaculares e deterministas, para construir uma narrativa centrada no poder das palavras face à ignomínia das instituições. Daí que a personagem central seja, não a vítima (Louis Garrel, excelente), mas o coronel Georges Picquart, militante dos factos e da sua crueza, interpretado pelo magnífico Jean Dujardin — já lhe deram um Oscar por muito menos.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ] [ 5. American Utopia ]

quarta-feira, dezembro 30, 2020

O ano em que Godard
fez 90 anos [4/4]

Bérangère Allaux, Para Sempre Mozart (1996)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.

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No constante processo de inventariação e discussão de novas linguagens, Godard tem sido também um criador atento às transformações das bases técnicas do cinema. Ou melhor, do audiovisual. A par de cineastas como o sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e o italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), foi mesmo pioneiro na utilização das novas câmaras de video. Exemplo fulcral é, em 1975, o filme Número Dois, retrato de uma família contemporânea, entre realismo e fábula, dando conta, em particular, de uma realidade cujo peso social e político, 45 anos depois, conhecemos bem: a crescente exposição do cidadão comum às mensagens televisivas. 
O cruzamento da memória do cinema com os novos recursos videográficos de tratamento e manipulação das imagens (e sons) teria a sua concretização nas História(s) do Cinema (1989-1999), objecto monumental de quatro horas e meia de duração (apresentado nas televisões, regra geral, em quatro episódios). O plural entre parêntesis sublinha o poder do cinema face ao tempo da sua gestação: fazer a história do cinema é também coleccionar as histórias que nele desembocam, ou dele emanam, a começar pelas memórias do Holocausto e de todos os traumas colectivos que pontuam o século XX (o “século do cinema”, precisamente). 
Dizer que Godard se coloca numa posição de vanguarda será, talvez, demasiado fácil. Vejam-se as suas experiências com o 3D, primeiro no filme colectivo 3x3D (2012) [trailer], depois na longa-metragem Adeus à Linguagem (2014). O que mais conta não é, de modo algum, a ostentação tecnológica, mas sim a demanda existencial, essa loucura branda que assombra Pierrot/Belmondo. Veja-se também esse filme mágico, rodado em 1996, em que algumas personagens, num cenário de muitas memórias trágicas (Sarajevo), procuram linguagens e modos de encenação para dar conta dos impasses do destino individual e colectivo. O título possui qualquer coisa de libertador: Para Sempre Mozart

10 álbuns de 2020 [6]

Bernard Herrmann

Mago musical de nove filmes de Alfred Hitchcock, Herrmann, falecido em 1975 (contava 64 anos), teve em 2020 uma estreia discográfica: esta é, de facto, a primeira gravação editada de "Whitman", um drama radiofónico com texto organizado por Norman Corwin a partir de poemas da obra-mestra de Walt Whitman, Leaves of Grass. Uma verdadeira pérola, realmente "melo-dramática", interpretada pelo PostClassical Ensemble, sob a direção Angel Gil-Ordóñez — para que não haja confusões, o álbum fecha com esta prodigiosa recriação da música de Psycho (1960), num arranjo de John Mauceri.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ] [ 5. Keith Jarrett ]

segunda-feira, dezembro 28, 2020

10 filmes de 2020 [5]

Spike Lee

Eis uma conjugação criativa nascida de uma cumplicidade perfeita: de um lado, a lógica teatral da performance de David Byrne; do outro, a subtileza de Spike Lee face ao espectáculo e às suas nuances metafóricas. O resultado parece abrir uma nova gramática para o próprio conceito de "filme-concerto", ainda que não possamos deixar de evocar um modelo inspirador: Stop Making Sense (1984), de Jonathan Demme, com os Talking Heads — entenda-se: David Byrne.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ] [ 4. Da 5 Bloods ]

10 álbuns de 2020 [5]

Keith Jarrett

Impossível escutar este registo de uma digressão europeia de 2016 sem sentir a sua cruel simbologia: Keith Jarrett sofreu dois AVC em 2018 (ele próprio o revelou em outubro deste ano, em entrevista a The New York Times); com o lado esquerdo parcialmente paralisado, o seu regresso aos palcos afigura-se altamente improvável. Entre os geniais improvisos e a recriação de standards, o concerto de Budapeste, realizado na Sala Béla Bartók, possui qualquer coisa de cerimónia religiosa tecida de trágica alegria — eis a "Parte VII".



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ] [ 4. Lianne La Havas ]

domingo, dezembro 27, 2020

A omnipresença da pandemia
ou o império da emoção

GEORGE GROSZ
Pessoas
1919

A. Hiper-saturação do social pelas emoções: não é um efeito directo da pandemia, antes uma componente cultural — nada mais cultural que o mediático, sobretudo o televisivo — que a omnipresença do vírus veio empolar até ao mais irracional delírio.

B. A saber: tudo se pode converter em manifestação discursiva de alguma emoção, emoção essa que é apresentada, tratada e incensada como uma verdade sem contradições, mecânica no funcionamento, compulsiva na aceitação.

C. Em nome da emoção quase tudo se transfigura em arma ideológica, tudo pode adquirir o valor de uma normalização inquestionável. Ninguém arrisca, politicamente, problematizando a vivência unilateral da democracia através da emoção e do seu imperialismo cognitivo.

sábado, dezembro 26, 2020

10 filmes de 2020 [4]

Spike Lee

Das muitas facetas da identidade afro-americana às convulsões da América de Trump, na senda do anterior BlacKkKlansman (2018), Spike Lee desenha o mapa de um tempo interior, made in USA, de que a guerra do Vietname é, de uma só vez, a origem e o fantasma. Tudo isso envolvido numa tessitura musical — da música original do fiel aliado Terence Blanchard às memórias lendárias de Marvin Gaye — que confirmam o seu cinema como uma admirável aventura sinfónica. Monumental, eis a palavra.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ] [ 3. Malmkrog ]

sexta-feira, dezembro 25, 2020

10 álbuns de 2020 [4]

Lianne La Havas

Inglesa de ascendência grega e jamaicana, Lianne La Havas identificou o seu terceiro álbum pelo próprio nome. A pouco habitual "redundância" faz todo o sentido: no domínio de uma pop dita alternativa, contaminada pelos muitos sabores da herança R&B, ela impôs-se como uma voz de depurada sofisticação, tradicional na postura, heterodoxa nas deambulações. Tudo apresentado em nome de uma intimidade magoada que encontra na música a simbologia perfeita do seu resgate — Bittersweet, precisamente.



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ] [ 3. Bob Dylan ]

quinta-feira, dezembro 24, 2020

10 filmes de 2020 [3]

Cristi Puiu

Subitamente, um filme devolve-nos a matéria mais sensual que o cinema pode conter: a palavra. A bavardage dos senhores que se encontram numa mansão romena, em finais do século XIX, envolve mecanismos de poder que são, necessariamente, formas de entendimento do mundo, suas hierarquias, valores e fantasmas. O espaço e o tempo ressurgem, assim, não apenas como medidas narrativas, mas também matérias políticas da vida social — cristalino.



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[ 1. Uma Vida Alemã ] [ 2. Mank ]

quarta-feira, dezembro 23, 2020

10 álbuns de 2020 [3]

Bob Dylan

O lançamento do single Murder Most Foul, em Março, deu o mote: Dylan reassumia-se como trovador do seu país, história e imaginário confundidos numa mesma mágoa utópica, tendo como ponto de fuga a figura emblemática de John Kennedy. O criador e intérprete de trovas faz questão em explorar a ambivalência de qualquer rótulo — há mesmo uma canção que se intitula False Prophet, mas o que nela se diz é que "Não sou um falso profeta / Apenas sei o que sei / Vou onde só os solitários conseguem ir."



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[ 1. Fiona Apple ] [ 2. Víkingur Ólafsson ]

segunda-feira, dezembro 21, 2020

10 filmes de 2020 [2]

David Fincher

Paradoxos, mágoas e euforias deste tempo: um dos mais admiráveis filmes que se fizeram sobre a história mitológica de Hollywood — é da escrita de Citizen Kane que se trata... — tem chancela de uma plataforma de streaming (Netflix). Ou como o retrato do argumentista Herman J. Mankiewicz (1897-1953) nos devolve ao coração vivo da cinefilia: a sublime arte das imagens em movimento começa na energia da palavra e na sigularidade da escrita.



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[ 1. Uma Vida Alemã ]

domingo, dezembro 20, 2020

10 álbuns de 2020 [2]

Víkingur Ólafsson

Um sereno desafio, monumental na sua serenidade: o pianista islandês Víkingur Ólafsson faz um álbum com peças de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Claude Debussy (1862 - 1918), não tanto para propor uma "antologia" francesa, antes para experimentar e, de algum modo, fixar aquilo que os torna cúmplices de uma mesma arte de questionamento dos poderes e limites da própria melodia. O resultado é uma prodigiosa aventura técnica e criativa — de Debussy, eis La fille aux cheveux de lin, Preludes Op.1, Nº.8.



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[ 1. Fiona Apple ]

10 filmes de 2020 [1]

Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer

Brunhilde Pomsel recorda uma singular e perturbante experiência de vida: entre 1942 e 1945 trabalhou como secretária de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda Nazi. A partir daquilo que, para todos os efeitos, é "apenas" uma entrevista, deparamos com um verdadeiro monumento histórico, exemplar dessa vocação cinematográfica que nenhum super-herói digital consegue destruir. Ou como diria Godard: "A televisão fabrica esquecimento, o cinema fabrica memórias."

sábado, dezembro 19, 2020

10 álbuns de 2020 [1]

Fiona Apple 

Tão só a certeza de que não se trata de colocar palavras na música ou inventar música para as palavras: tudo nasce num mesmo tempo, tudo pertence a uma unidade orgânica com vocação utópica. Dito de forma pedagógica: Fiona Apple volta a mostrar e demonstrar que deambulação experimental e intimidade poética são uma e a mesma coisa. Em 2020, nessa imaculada liberdade criativa, ninguém a igualou — exemplo: Under the Table