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sexta-feira, junho 06, 2014

Assim nasceu o rock em Portugal (4)

Este texto é a quarta parte de um artigo originalmente publicado na edição de 24 de maio do suplemento Q. do DN com o título 'Enquanto a rapaziada tocava guitarra não tinha tempo para a política'. 

A génese desta Biografia do Ié Ié parte de uma história já com sete anos. Em 2007, Jorge Mourinha (crítico de cinema no Público) e Miguel Francisco Cadete (diretor da revista Blitz) tinham em mãos “um interesse projecto, que infelizmente não chegou ao fim, de recuperação da música portuguesa dos anos 60, não só a ié-ié.” E pediram a Luís Pinheiro de Almeida um texto para a obra completa dos Sheiks. “Enfiei-me na Hemeroteca Municipal de Lisboa para recolher informação, falei com os músicos, fiz o texto, mas como tinha informação excedentária, ainda tentei fazer um livro sobre os Sheiks. Propu-lo à minha editora livreira que, em contraproposta, me aconselhou a fazer antes um livro sobre a música dos anos 60, o que me encantou, não só porque a conhecia bem (é a música do meu tempo), mas também porque sempre considerei que ela é mal conhecida não só musical como biograficamente. E meti mãos à obra, fazendo entretanto vários discos sobre o tema”. A discoteca caseira “ajudou”, bem como a dos seus irmãos e a “desse grande colecionador” que é Heitor de Vasconcelos. Na divisão doméstica das tarefas, “o irmão mais velho ficou com o Elvis e o ié-ié francês”, o autor com a pop music britânica “e o caçulo, ao jeito de menoridade, com o ié-ié português.” A informação adicional “foi sempre procurada junto dos protagonistas, fontes primárias, mas sempre com muito cuidado, porque a memória dos músicos não será provavelmente o seu melhor dote”. Nem sempre foi fácil lidar com as memórias de todos.

Luís deixa bem claro que “este livro nem é uma tese, nem é um livro de cabeceira”. É, antes, “uma espécie de enciclopédia, para consulta, feita por um jornalista profissional, onde mais de 98 por cento dos biografados tiveram oportunidade não só de exercer o contraditório, como também, e principalmente, de cooperar”. Estão ali cerca de 100 conjuntos biografados e, se bem se lembra, só não conseguiu falar com um – o Folk 2 – e “bem” tentou. Socorreu-se aí “dos apontamentos que à época deles tinha tirado num ‘convívio estudantil’ em Direito”, por si organizado. Com uma ou outra exceção, “o grande critério desta Biografia é o de o conjunto citado ter editado pelo menos um disco”. Por outro lado “uma das grandes dificuldades da Biografia é a quantidade de músicos que saem e entram do mesmo conjunto ou até em conjuntos diferentes ou se cruzam entre si”. Luís explica que “nem eles próprios se entendem e há muito ego para gerir com pinças”. Está aberto a correções (a fazer em edições futuras), pelo que se justifica assim “a existência de um ‘livro de reclamações’ em formato email indicado no final” do volume.

Das muitas recolhas de informação que originaram o que agora lemos nas páginas do livro poucas foram as situações que o autor não conhecesse já. Entre as melhores descobertas conta-se o que descreve como a “falcatrua” dos Chinchilas, de Filipe Mendes, que caracteriza como hilariante: “Tinham tanta gana em ganhar o Concurso Ié-Ié do Monumental que se inscreveram duas vezes, uma delas com nome falso, é claro. E a tramóia passou incólume à vigilância do júri, onde pontificava um tal Martins da Cruz, futuro ministro dos Negócios Estrangeiros de Cavaco Silva, ele próprio, também, da mesma Acção Académica, de Pedro Cabrita, organização da direita radical da Faculdade de Direito de Lisboa.”

Entre muitos nomes e factos a Biografia do Ié Ié conta-nos alguns episódios menos conhecidos dessa primeira etapa da aventura pop/rock portuguesa. “Quem diria, por exemplo, que Fausto cantou Beatles num conjunto ié-ié angolano, que Miguel Graça Moura também andou pelos conjuntos, que Júlio Pereira andou na pesada, que Luís Cília também começou pelo rock”, revela o autor. Depois há outras curiosidades, “como o ex-ministro José Lello, Daniel Proença de Carvalho, o comentador desportivo Rui Oliveira Costa, o jornalista e escritor João Alves da Costa, tantos…”

E nada como ler o livro para seguir estas pistas... José Lello, antigo ministro do Desporto e figura destacada do PS, foi saxofonista do Conjunto Sousa Pinto, que entre 1962 e 66 gravou 6 EP entre os quais surgiram temas como Fado Batido em Surf ou uma versão de Here There and Everywhere dos Beatles. Em 1967 Lello mudou-se para os Titãs, ao que se seguiu uma breve carreira a solo, pela qual gravou mais dois discos. Daniel Proença de Carvalho foi contrabaixista do Grupo de Jazz do Orfeon Académico de Coimbra, por onde a dada altura passou José Cid, depois dos Babies e antes de formar o Quarteto 1111. Rui Oliveira Costa foi agente de conjuntos como os Deltons ou os Sheiks. João Alves da Costa integrou os Jets.

Já agora podemos acrescentar que a Biografia do Ié Ié recorda que Fausto Bordalo Dias, referência maior da música popular portuguesa, teve o seu percurso ié-ié nos dias de juventude quando, ainda em Angola, integrou os Rebeldes (que tocavam sobretudo temas dos Beatles, mas também música africana e temas de Roberto Carlos), numa altura em que, lembra o livro, era conhecido como Carlito Dias.

terça-feira, junho 03, 2014

Assim nasceu o rock em Portugal (parte 2)

Este texto é a primeira parte de um artigo originalmente publicado na edição de 24 de maio do suplemento Q. do DN com o título 'Enquanto a rapaziada tocava guitarra não tinha tempo para a política'. 

Analisando, ordenando e catalogando o ié-ié made in Portugal (e afinal é isso que o livro nos oferece), Luís Pinheiro de Almeida identifica duas fases completamente distintas: antes e depois dos Beatles. Antes, “os reis eram os Shadows e até houve um concurso no antigo cinema Roma em Lisboa, em 1963, precisamente chamado ‘do Tipo Shadows’. A onda chamava-se ‘ritmos modernos’. Eram praticamente só conjuntos instrumentais, mas como os Shadows também tinham vozes, lá aparecia também uma ou outra voz de vez em quando. Foi assim que ganhou o Conjunto Mistério (instrumental) com a voz emprestada de Fernando Gaspar, dos Conchas”.

Os “conjuntos”, como então se lhes chamava, “nasciam sobretudo nos liceus (e há muitos exemplos disso, como os Fanatic’s) ou vizinhos de bairro (como os Sheiks), mas sempre no seio da classe remediada ou alta, com capacidade financeira para a aquisição do equipamento oneroso”. A grande “montra” dos conjuntos “eram as festas escolares, como os bailes de finalistas, as queimas das fitas, as festas populares, os carnavais, digressões ao então Ultramar, festas de Verão, nas boîtes, como o Caruncho, no Algarve”… E como a maior parte “dos membros dos grupos eram estudantes, os conjuntos, normalmente, chamavam-se ‘conjunto universitário’ (como os Hi-Fi) e/ou ‘conjunto académico’ (como os Espaciais)”.

Apesar da quantidade impressionante de grupos que surgiam (e muitos deles gravaram discos, sobretudo no formato de EP), este era um espaço de nicho no panorama discográfico de então. “A força dominante no meio musical era o chamado nacional-cançonetismo, com Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, António Calvário, Artur Garcia, o fado também”, explica Luís, que acrescenta que era “extremamente difícil ao ié-ié furar o sistema”. Havia contudo “programas como Enquanto For Bom Dia, Página Um e 23ª Hora, na Rádio Renascença, que passavam e até encorajavam o movimento”. Luís Pinheiro de Almeida lembra que “nem todo o movimento ié-ié era uniforme: havia conjuntos que tinham passagem garantida como os Sheiks, Conjunto Académico João Paulo, Quinteto Académico, Rock’s e outros que raramente chegavam ao éter como os Blusões Negros, os Galãs, os Demónios Negros ou os Vodkas”. Na televisão, e na altura só havia a RTP, “ainda mais difícil era”. Havia “um ou outro programa, como os Reis do Ritmo ou alguns especiais que lá davam atenção, de quando em quando, a um ié-ie”. Mas “a partir de determinada altura, o próprio Festival RTP da Canção começou também a ser veículo de divulgação com o Quarteto 1111, Carlos Mendes ou Eduardo Nascimento (que se revela como vocalista nos Rock’s)”. O Verão (1968) e O Vento Mudou (1967) destes dois últimos chegaram mesmo a ter passaporte para o Festival da Eurovisão, naqueles que foram dois raros episódios de visibilidade internacional do ié-ié nacional.

Apesar da expressão discreta de muitos destes nomes, alguns conjuntos chegaram a gerar fenómenos de vendas de discos. “Os Sheiks vendiam… a editora gostava deles, o Conjunto João Paulo vendia, a editora mimava-o, os Conchas vendiam, a editora adorava-os”, recorda o autor. Pelo contrário, “o Folk 2 não vendia, a editora não lhes ligava, os Tubarões não vendiam, a editora esquecia-se deles, os Vodkas não vendiam, a editora não lhes passava cartão”. Nota então que “o revés”, em termos de colecionismo, ganha expressão no presente: “há por aí muitos discos dos Sheiks, do Conjunto João Paulo, dos Conchas, logo o seu valor é baixo. Raros, raros, são os do Folk 2, Tubarões, Vodkas, Jets, Diamantes Negros, etc.” Luís diz que ainda hoje se “arrepia” com o comportamento das editoras discográficas: “por exemplo, é quase impossível fazer uma antologia dos Ekos ou do Conjunto Mistério, duas das melhores bandas que alguma vez este país conheceu.” Ou até mesmo “uma colectânea significativa”.

(continua)

segunda-feira, junho 02, 2014

Assim nasceu o rock em Portugal (parte 1)

Este texto é a primeira parte de um artigo originalmente publicado na edição de 24 de maio do suplemento Q. do DN com o título 'Enquanto a rapaziada tocava guitarra não tinha tempo para a política'. 

Em agosto de 1963 o mundo descobria uma canção que rapidamente se transformou num ícone do seu tempo. Com o fulgor de quem, a cada nova gravação, ajudava a inventar as bases da emergente pop, os Beatles celebravam então um dos seus mais luminosos hinos de juventude cantando “She Loves You, yeah yeah yeah”... Por essa altura já Portugal tinha entrado na era pop/rock, cabendo a um EP conjunto d’Os Conchas e Daniel Bacelar, editado em 1960, a honra de estrear discograficamente uma nova música que, deste lado da fronteira, teve as suas primeiras manifestações ainda em finais dos anos 50, em Coimbra, com os Babies (onde militava, entre outros, José Cid). Mesmo tendo chegado depois desse EP de 1960 – que nascera como consequência do concurso da Rádio Renascença Caloiros da Canção – assim como depois do célebre Tous Les Garçons et Les Filles, de Françoise Hardy (editado em 1962), o “ié ié” que os Beatles cantavam em She Loves You acabou retroativamente por dar nome a uma nova vaga musical que começava a ganhar expressão em vários territórios. Por ela nasceram e vibraram os primeiros pólos de agitação pop/rock em Portugal, assim como os primeiros discos e carreiras.

“O ié-ié nasceu na Grã Bretanha em 1963, com os Beatles, sob o nome de pop music, e que a França, pouco depois, assumiu como yé-yé (os brasileiros, sempre exagerados, foram para o ié-ié-ié)”, recorda Luís Pinheiro de Almeida, autor de Biografia do Ié-Ié livro que, mais que documentar apenas este movimento, propõe um retrato arrumado das primeiras aventuras pop/rock no Portugal dos sessentas. O ié-ié não foi um fenómeno exclusivamente português, mas antes o reflexo em várias geografias do impacte que os Shadows, os Beatles e os demais que então entravam em cena lançavam como a mais entusiasmante forma musical para o público jovem naquele tempo. “Em França o yé-yé foi claramente um movimento sério, editorial, cultural, profissional, um modo de ser e de viver que até ajudou ao Maio de 68”, acrescenta Luís Pinheiro de Almeida, lembrando “programas de rádio e revistas, Salut Les Copains, e até um boneco, o Chouchou, onde o Zip-Zip se foi inspirar. Levavam a coisa a sério. Nós éramos tão-só o País do Fado, do Futebol e de Fátima. Triste, muito triste”, comenta. De resto, sobre estes dias que o novo livro evoca, lembra que “José António Barreiros, escritor, editor e advogado”, escreveu há pouco no Facebook que, nos anos 60, “cada dia era um novo mundo”. Luís confessa que raramente tem lido uma “descrição tão bela e tão assertiva de como se viveram os anos 60… lá fora!” Em Portugal, “em ditadura, até 25 de Abril de 1974, com uma guerra colonial em três frentes, não era bem assim. Não se nega que no País também alguma coisa tenha mudado (até havia bikinis e camisas às flores), mas não ao ponto de haver um “novo mundo todos os dias”. Para si “os anos 60 foram, irrevogavelmente, um mundo novo, em todas as vertentes: música, moda, economia, lazer, sociedade, política, cultura”. Em Portugal, acrescenta, “o ié-ié não foi uma realidade exclusiva, longe disso, mas foi um movimento bem sui generis. Não se imagina – nem hoje – que o ié-ié português tivesse sido promovido pelo Estado Novo a favor das Forças Armadas, já em guerra, as mesmas Forças Armadas que o viriam felizmente a derrubar 8 anos depois. Que incoerência!”. E, de facto, o célebre Concurso Ié-Ié, realizado no Cinema Monumental entre 1965 e 66 foi organizado pelo jornal O Século (a favor das forças que então lutavam no Ultramar) através do Movimento Nacional Feminino.

Contextualizando, vale a pena lembrar que se estava então em Portugal “no auge das guerras coloniais em três teatros e no desenvolvimento da crise estudantil de 1962 que já então contestava o regime e a guerra”. Foi por essa altura “que um jovem estudante da Faculdade de Direito de Lisboa, Pedro Cabrita, da Acção Académica (direita radical)”, surgiu com a ideia “de fazer um Concurso Ié-Ié com os conjuntos emergentes e outros, mobilizando para a iniciativa o Movimento Nacional Feminino, O Século, a RTP, a EN, as “forças vivas”. Pedro Cabrita, que viria a ser director da revista do MNF, justificou-se que com a realização do Concurso “descia a taxa de delinquência juvenil” e que enquanto a “rapaziada” se entregava às guitarras “desconhecia o preenchimento do tempo com outras coisas”, ou seja, a política”.

(continua)