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segunda-feira, agosto 26, 2024

No palco com Ingmar Bergman

Erland Josephson e Lena Olin em Depois do Ensaio: o teatro no coração do cinema

Até 2 de outubro, continua a decorrer em várias cidades do país o ciclo de 31 filmes de Ingmar Bergman. Depois do Ensaio (1984) é um dos títulos que nunca estreara no circuito comercial, uma obra-prima minimalista sobre o fascínio do palco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 agosto).

Sendo Ingmar Bergman (1918-2007) um nome tão universal, eis uma informação que pode parecer absurda, mas que não deixa de ser totalmente objectiva: no ciclo de 31 dos seus filmes que a Leopardo Filmes continua a apresentar em várias cidades do país, há quatro títulos inéditos no circuito comercial das salas de cinema. Cidade Portuária (1948) e A Sede (1949) surgiram logo no começo do ciclo, a 14 de julho; a partir de hoje começam a ser exibidos Mulheres que Esperam (1952) e Depois do Ensaio (1984) — o ciclo prolonga-se até 2 de outubro.
Embora Mulheres que Esperam seja um belo exemplo do modo como o cineasta sueco retratou as singularidades do feminino (20 anos antes de Lágrimas e Suspiros, vale a pena recordar), é o fascinante Depois do Ensaio que justifica um destaque muito especial. A começar por uma razão, de uma só vez artística e industrial, tantas vezes esquecida: o filme ilustra a disponibilidade de Bergman, a par de outros mestres europeus (Rossellini, Godard, Antonioni) para trabalhar no território televisivo. Estamos, de facto, perante uma produção que, na origem, é um telefilme, como tal tendo sido difundido, há cerca de 40 anos, nos mais diversos canais europeus, incluindo a RTP1.
Poderá perguntar-se: qual a diferença? Em boa verdade, nenhuma, a não ser no financiamento e no enquadramento prático da produção — o que, desde logo, é bem revelador de um conceito criativo de televisão em que as rotinas das novelas e seus derivados (ou, mais recentemente, os horrores da Reality TV) não são dominantes. Na prática, para Bergman, tratava-se de regressar a uma temática transversal a todo o seu trabalho — o lugar do teatro nos circuitos labirínticos das relações humanas —, agora num registo de imaculado minimalismo.
Tudo acontece entre o encenador Henrik Vogler e a actriz Anna Egerman, personagens interpretadas, respectivamente, por Erland Josephson, um dos actores da “família” bergmaniana, e Lena Olin, no papel que a projectou na cena internacional (surgiria, quatro anos mais tarde, em A Insustentável Leveza do Ser, sob a direcção de Philip Kaufman). O título é para ser tomado à letra: depois de um ensaio de Um Sonho, de August Strindberg, Vogler deixa-se ficar no palco, num misto de reflexão e sonolência, até que aparece Anna, à procura de uma pulseira que perdeu…
O que acontece durante pouco mais de uma hora (tudo é minimalista, até mesmo a duração do filme) decorre de uma visão em que Bergman relança o teatro, ou melhor, a teatralidade como componente vital do seu cinema. Não exactamente porque o cenário de Depois do Ensaio seja um palco; antes porque as personagens e o espectador oscilam entre as evidências do dia a dia e os sinais de um mundo alternativo de que a palavra (teatral, justamente) é um espelho perverso — descubra-se a breve participação de Ingrid Thulin. Ou como diz Vogler: “Os mortos não estão mortos, os vivos parecem fantasmas.”

domingo, abril 07, 2024

No centenário de Marlon Brando
— o rebelde relutante

Cinco Anos Depois (1961): Marlon Brando, actor e realizador

No dia 3 de abril, no Diário de Notícias, dois textos assinalaram a passagem do centenário do nascimento de Marlon Brando: 'Um homem chamado desejo', de Inês N. Lourenço, e este, de minha autoria, tendo como ponto de partida a sua autobiografia, publicada em 1994.

A autobiografia de Marlon Brando, escrita com a colaboração do jornalista e romancista Robert Lindsey, surgiu em 1994 (ed. Random House), com um título “roubado” a uma peça para voz e piano composta pelo checo Antonin Dvorak em 1880: Songs My Mother Taught Me, à letra, “Canções que a minha mãe me ensinou” [Ana Netrebko].
O facto de Brando ter decidido escrever sob o signo da mãe e dos seus ensinamentos constitui, por certo, uma dimensão essencial do livro e dos afectos que por ele perpassam. Em todo o caso, importa não esquecer que tudo isso se materializa em “canções”. Umas tristes, outras alegres, algumas deixando a sensação de uma pudica incompletude. Não são narrativas orientadas por uma qualquer moral determinista, antes revisitações de um passado tão singular quanto multifacetado que se exprime através do “canto” — entenda-se: obedecendo a uma musicalidade organizada para expor uma intimidade eivada de um realismo simples, próximo da candura infantil, alheio a qualquer facilidade espectacular.
O cruzamento de referências objectivas e múltiplas ambivalências surge expresso logo nas linhas de abertura: “Ao recuar, inseguro, nos anos da minha vida, tentando lembrar-me do que aconteceu, descubro que nada é claro. Creio que a primeira memória que tenho é de quando era demasiado criança para me recordar que idade tinha.”
Tais incertezas não são sustentadas por qualquer forma de lirismo redentor. Com palavras secas, estranhamente serenas, Brando considera mesmo que viveu num cenário errado: “Muitas vezes pensei que teria sido muito melhor se tivesse crescido num orfanato.” Porquê? Em boa verdade, confessa que não sabe explicar, mas identifica dois dados muito concretos do seu espaço familiar: “(…) creio que a minha mãe foi ficando cada vez mais desiludida e zangada com o comportamento de mulherengo do meu pai, enquanto ele ia ficando mas infeliz com o facto de ela beber.”
Daí a explorar uma imagem de auto-vitimação, à maneira das “vedetas” da televisão populista, seria um passo que, obviamente, é totalmente alheio às confissões de Brando. Com algumas surpresas, convém dizer, até mesmo nas referências ao Actors Studio, a “casa” da arte de representar de que ele foi (e é) um símbolo incontornável. Assim, se o víamos como um dos discípulos mais geniais de Lee Strasberg, figura central na história do Studio, somos levados a relativizar o retrato: “Depois de eu ter algum sucesso, Lee Strasberg quis fazer crer que isso se ficou a dever ao facto de ele me ter ensinado a representar. Ele nunca me ensinou nada. (…) Havia quem o reverenciasse, mas nunca percebi porquê. Para mim era uma pessoa sem gosto e sem talento de que nunca gostei muito.” Quem foram, então, os verdadeiros mestres de Brando? Stella Adler e Elia Kazan.

Sucesso & fama

Implacável com os defeitos que atribui a outros, Brando não o é menos consigo próprio, sobretudo quando se trata de recordar os tempos em que começou a experimentar o gosto do sucesso — em particular o período que passou em Paris depois do impacto de Um Eléctrico Chamado Desejo em palco (1947-49): “(…) sinto-me chocado por me ver coberto pela mesma sujeira que apontava nas pessoas que critiquei; a fama alimenta-se do esterco (“manure”) do sucesso e eu permiti que isso acontecesse.” Daí também o misto de desencanto e ironia com que Brando evoca os tempos de glória em que ele e James Dean, mais do que “embaixadores” do Actors Studio, foram transformados em cruzados de um novo conceito de juventude. Na legenda da foto de uma festa em que ambos estão presentes, escreve Brando: “Éramos ambos rapazes do campo, fomos promovidos como rebeldes. Dean imitava a minha maneira de representar e também aquilo que ele acreditava que era o meu estilo de vida.”
Dir-se-ia que a relutância em encarnar o seu próprio mito o levou a realizar Cinco Anos Depois (1961), “western” atípico que tem qualquer coisa de espelho de uma solidão sem remorso. Será também essa solidão que o leva a encarar a velhice como um tempo de culto do paradoxal minimalismo das memórias — recorde-se que Songs My Mother Taught Me foi lançado cerca de dez anos antes da morte de Brando. Assim, por exemplo, para “explicar” uma célebre fotografia em que o vemos ao lado de Marilyn, escreve: “Cruzei-me com Marilyn Monroe numa festa. Enquanto os outros bebiam e dançavam, via-a sentada num canto, quase sem se dar por ela, a tocar piano. Tivemos uma relação. Falámos pela última vez dois ou três dias antes de ela morrer.”

sexta-feira, dezembro 15, 2023

Leonard Bernstein
ou a felicidade da música

Bernstein gravou o seu West Side Story, de 1957, num álbum de 1984

Na história de Leonard Bernstein, a actividade de maestro cruza-se com o trabalho de compositor, sendo West Side Story uma referência central em que se ligam a experiência de palco e o espectáculo segundo Hollywood — este texto, a propósito da estreia de Maestro, foi publicado no Diário de Notícias (7 dezembro).

Leonard Bernstein (1918-1990) e Felicia Montealegre (1922-1978) tiveram três filhos: Jamie, Alexander e Nina. Não é, evidentemente, por acaso que, no final do genérico de Maestro, Bradley Cooper agradece o apoio que deles recebeu para a concretização do seu filme. Mais, muito mais, do que o reconhecimento de uma mera caução “factual”, tal agradecimento pode ser interpretado como um laço emocional que prolonga o misto de entrega e celebração com que Bernstein viveu a música — e para a música.
Os filhos de Bernstein fizeram questão em agradecer publicamente, através de uma carta, a “alegria de coração aberto” com que Cooper tratou as memórias do pai. Para Bernstein, compor ou dirigir uma orquestra nunca foi o resultado de um mero apuramento técnico (que, obviamente, nunca lhe faltou), antes a procura de um entendimento humano da música capaz de mobilizar o público para lá de qualquer clivagem simplista entre a sensibilidade “erudita” e a cultura “popular”.
Há um sinal de tudo isso no facto de, na sua vasta discografia, encontrarmos uma singularíssima revisitação daquela que continua a ser a sua obra mais conhecida: West Side Story, com letras de Stephen Sondheim — foi um musical da Broadway estreado em 1957, depois um filme de 1961 co-dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins (que tinha coreografado a produção do palco), e ainda uma nova versão cinematográfica, estreada há dois anos, com assinatura de Steven Spielberg. O certo é que, durante mais de duas décadas, Bernstein nunca dirigiu o seu West Side Story. Aconteceu em 1984, em estúdio, para a Deutsche Grammofon, numa gravação com um elenco de luxo, liderado por Kiri Te Kanawa e José Carreras, respectivamente como Maria e Tony — um verdadeiro clássico “instantâneo” que, além de filmado para um documentário da BBC (The Making of West Side Story), arrebatou um Grammy para Melhor Álbum de Teatro Musical [video do filme].


A sua afirmação como maestro, a começar pela inesperada estreia no Carnegie Hall no dia 14 de novembro de 1943 (momento emblemático que o filme encena), aconteceu em paralelo com o trabalho de compositor. No cinema, e não só. Assim, a par da composição de West Side Story, Bernstein foi escrevendo a opereta Candide, inspirada na obra de Voltaire (publicada em 1759) avaliando os êxtases e limites da ideia de felicidade. A ligação a Hollywood passaria também por On the Town (Um Dia em Nova Iorque), com Frank Sinatra e Gene Kelly (que repartia a realização com Stanley Donen), tendo como base o seu musical estreado, na Broadway, cinco anos antes. Tudo isto em esquecer, claro, a banda sonora de visceral dramatismo que compôs para Há Lodo no Cais (1954), de Elia Kazan, com Marlon Brando [video: On the Waterfront Suite, Orquestra da Televisão e da Rádio de Espanha, maestro Christian Lindberg].
Notável especialista de Gustav Mahler (a integral das sinfonias existe numa edição da Sony Music com data de 2020), foi também, no pequeno ecrã, um invulgar divulgador da música através dos lendários Concertos para Jovens, originalmente transmitidos pela CBS, entre 1958 e 1972. Tais programas envolvem a afirmação de um princípio democrático previamente enunciado por um criador do cinema, Roberto Rossellini (1906-1977): a obrigação de, no plano cultural, o espaço televisivo assumir a sua vocação eminentemente pedagógica.

sábado, setembro 16, 2023

Kevin Spacey nunca existiu

Kevin Spacey e Jeff Goldblum
Speed-the-Plow em Londres (2008), no palco do Old Vic

Nas redes a que chamam “sociais” reina a obscenidade: um acusado é automaticamente tratado como culpado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 setembro).

Revejo Kevin Spacey e Jeff Goldblum numa imagem tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante, a ponto de ter adquirido qualquer coisa de surreal. Para mim, começa por transportar uma memória de 2008, tecida de admiração e fascínio: a descoberta da representação, em Londres, no palco do Old Vic, de Speed-the-Plow, a peça de David Mamet, encenada por Matthew Warchus, sobre três personagens dos bastidores de Hollywood (na altura, Spacey era director artístico do Old Vic). A sua estreia acontecera em 1988, em Nova Iorque, com interpretações de Joe Mantegna, Ron Silver e Madonna.
Com esplendorosa ironia e crueldade, Kevin Spacey e Jeff Goldblum interpretavam dois produtores cinematográficos. Sagazes e oportunistas, discutem estratégias que reforçavam a implacável visão de Hollywood que, em diversos livros, ensaios e entrevistas, Mamet sempre exprimira, escalpelizando as zonas mais obscuras de uma indústria a que, para todos os efeitos, também pertence através de uma filmografia de invulgar brilhantismo — incluindo alguns títulos mais “ligeiros” que parecem existir apenas como projectos banalmente comerciais, como é o caso de Spartan - O Rapto (2004).
Ao lado das personagens de Spacey e Goldblum está uma secretária não tão estúpida como o cliché dramático que serve de motor ao seu aparecimento no interior da peça. Era interpretada pela talentosa Laura Michelle Kelly, actriz mais conhecida através do teatro musical (incluindo My Fair Lady, em 2003) que surgira, um ano antes, na versão cinematográfica de Sweeney Todd, realizada por Tim Burton. Na primeira representação londrina de Speed-the-Plow, em 1989, essa personagem fora interpretada por Rebecca Pidgeon, casada com Mamet desde 1991.
Na altura, Spacey era, por certo, um dos actores mais populares em todo o mundo, em particular através dos filmes que lhe tinham valido Oscars: Os Suspeitos do Costume (1995), de Bryan Singer, e Beleza Americana (1999), de Sam Mendes, respectivamente como intérprete secundário e principal. Nove anos mais tarde, isto é, a partir de 2017, seria alvo de várias acusações de abuso sexual, com consequências directas no seu trabalho, incluindo a decisão da Netflix de o afastar da temporada final da série House of Cards (2013-2018). Em dois julgamentos, viria a ser ilibado dessas acusações: primeiro em Nova Iorque, em 2022, depois em Londres, há pouco mais de um mês.
O surreal de tudo isto envolve a obscena desproporção entre os múltiplos julgamentos públicos a que Spacey foi sujeito na Internet (e também em alguns meios de comunicação, sobretudo de língua inglesa) e a virginal contenção com que, na maioria dos casos, foi noticiado o facto de os tribunais o terem reconhecido como inocente. São dados reveladores das nossas misérias civilizacionais, em grande parte geradas, consumadas e multiplicadas pela democracia da estupidez que comanda a lógica quotidiana das redes (ditas) sociais.
Como noutros exemplos de histeria purificadora, por vezes vergonhosamente empolada pela baixeza moral de algumas formas de jornalismo, a perversidade de tudo isto é clara no caso de Spacey. Assim, basta uma acusação pública (e publicitada) para que qualquer presunção de inocência (ou mesmo a simples avaliação da coerência ou da consistência das acusações) seja anulada. Com que consequências? O espaço mediático passa a ser dominado por discursos de difamação e ódio contra alguém inapelavelmente tratado como culpado, sem direito a qualquer tipo de recurso.
Perante o discreto peso de muitas notícias sobre a conclusão do mais recente julgamento, tudo se passa como se Kevin Spacey nunca tivesse existido, a não ser como marioneta de um conceito de justiça legitimado (entenda-se: que se auto-legitima) através do ruído “social” que consegue promover com assustadora facilidade. Por uma ironia muito amarga, a peça de Mamet é (também) um texto admirável sobre a violência moral do imaginário machista.
Convém, por isso, não reduzir a uma caricatura o facto de, agora, muitas vozes que se exprimem (?) nos canais “sociais” — ou em caixas de “opinião” de alguns jornais — encararem o encerramento legal do caso como uma impostura: afinal, proclamam esses cidadãos, quem tem dinheiro para advogados mais ou menos hábeis acaba sempre por “safar-se”… Não é uma citação; se fosse, seria ainda mais grosseiro.
Porque é que isto não é uma caricatura descartável? Porque tais reacções envolvem uma visão, não apenas anti-democrática, mas de total desumanização do espaço público: a execução da lei — com os seus valores, as suas exigências de prova, eventualmente a sua morosidade — acaba por ser considerada dispensável e, pior um pouco, irrelevante porque a única coisa que conta é o achincalhamento público do acusado (sempre tratado como culpado). Não será o fascismo enquanto sistema político, mas a impunidade da sua prática promove uma metódica fascização das mentalidades.

domingo, março 19, 2023

Eu Sou Clarice
— um grande acontecimento teatral

"Como me encontro, espelho, relaciono com o mundo que nos rodeia e qual a possibilidade de ser feliz nisso" — eis uma via de afirmação/interrogação que Rita Calçada Bastos relança a partir da obra de Clarice Lispector (1920-1977) em Eu Sou Clarice, um espectáculo contagiante. Entenda-se: capaz de nos fazer sentir o teatro como duplo e reinvenção, máscara e revelação da vida que vivemos (ou julgamos viver).
Com cenário da própria encenadora, Eu Sou Clarice centra-se numa luminosa composição de Carla Maciel. Mais do que "retratar" a escritora, a actriz celebra-a como personagem, ora transparente, ora indecifrável, de um universo habitado por uma pluralidade de personagens geradas pelo próprio acto de escrever.
Estreado no São Luiz em outubro de 2021, Eu Sou Clarice está agora no Teatro Aberto (até 2 de abril): um acontecimento singular, capaz de desafiar, de forma tão inteligente quanto delicada, as nossas certezas sobre o acto de representar a vida — ou de viver através da representação. 
 

sábado, fevereiro 04, 2023

Jessica Chastain na Broadway

É um dos acontecimentos mais aguardados do ano teatral: A Casa da Boneca, de Henrik Ibsen, vai regressar à Broadway — mais precisamente ao Hudson Theatre —, com Jessica Chastain no papel de Nora. A encenação é de Jamie Lloyd, a partir de uma nova adaptação de Amy Herzog. E porque nestas coisas a arte da promoção também conta, eis um video de 15 maravilhosos segundos.
 

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

Pentesileia, aqui e agora

Pentesileia: o presente visto a partir do século XIX

Os ecos da peça Pentesileia, de Henrich von Kleist, no nosso tempo são profundamente enigmáticos — o que, entenda-se, não impede que as suas palavras, escritas no começo do século XIX (embora só representadas em 1876, 65 anos passados sobre a morte do autor), se distingam por uma claridade envolvente. Encenada por António Pires, a partir de uma nova tradução de Luísa Costa Gomes, Pentesileia possui a sedução radical de um acontecimento cujas memórias de muitos passados não se deixam retirar do nosso presente. É o milagre do tempo que se expõe, assim, numa fantasia realista.
O trabalho do elenco — Alexandra Sargento, Carolina Serrão, Francisco Vistas, Graciano Dias, Iris Runa, Jaime Baeta, João Barbosa, Rita Durão (Pentesileia), Tiago Negrão e Vera Moura — é especialmente revelador: evolui numa ambivalência de tom cuja neutralidade (estranha e muito discutível palavra...) desnuda a carne da tragédia, distanciando-a também através de uma ironia que não necessita de sublinhados. Como se as atribulações mortais com que os humanos pontuam a sua existência encontrassem nas aventuras de Pentesileia e suas Amazonas um espelho difícil de contemplar, mas de que não é possível desviar o olhar.
Cito, por isso, as palavras cristalinas de Luísa Costa Gomes no programa do Teatro do Bairro: "Para Kleist, a verdadeira missão do dramaturgo é restaurar a grandeza da tragédia. A sua ambição de grandeza é insaciável e ela está presente em tudo o que escreveu. Não é da sua responsabilidade que a linha divisória entre a tragédia e a comédia seja tão fina. Kleist é o poeta das inseminações: o sonho insemina e infecta a realidade, que é, ela mesma, cheia de prodígios."
É dessa realidade infectada que aqui se trata. Gregos e troianos renascem num cenário de Alexandre Oliveira cuja dureza não exclui, antes reforça, a volubilidade da areia que nele se expõe e representa. No limite, talvez se possa dizer que Pentesileia desnuda o equívoco filosófico de qualquer noção de poder político — ou de qualquer noção política de poder. A dor que circula pelas palavras de Kleist atrai, afinal, o pressentimento de um riso suspenso. À sua maneira, será uma forma de suspense capaz de revelar a alegria e o sofrimento do factor humano.


* PENTESILEIA
Teatro do Bairro, Lisboa
> até dia 5 de fevereiro

terça-feira, janeiro 31, 2023

Nuno Artur Silva
ou a arte de dizer "eu"

Nuno Artur Silva e António Jorge Gonçalves
* Foto: Rita Carmo

1. Vivemos tempos de obscena saturação de individualismos. Não poucas vezes, as equívocas facilidades de expressão oferecidas em rede impuseram um novo espaço de (in)comunicação organizado e, sobretudo, desorganizado a partir da destruição de qualquer forma de responsabilidade e responsabilização. Dito de outro modo: proclamar um "eu" sem fronteiras nem respeito pelos outros "eus" passou a ser um desporto pueril, induzido e consagrado por muitas formas e dispositivos da nossa cultura virtual.

2. O espectáculo Onde É Que Eu Ia?..., de Nuno Artur Silva, corre o risco invulgar de começar por se "aproximar" dessa cultura de lamentáveis narcisismos, acabando, inteligentemente, por expô-la nos seus contrastes, contradições e mentiras — e não tenhamos dúvidas que tal cultura se sente sempre ameaçada por qualquer gesto ou discurso que não abdique do gosto da inteligência.

3.
De que se trata, então? De uma performance que começa por ter o seu quê de confessional. Num tempo pré-histórico (entenda-se: anterior às histórias que tem para nos contar), Nuno Artur Silva criou a empresa Produções Fictícias, aí contribuindo para uma espectacular reconversão de alguns padrões da ficção audiovisual, com especial destaque para o registo de comédia no pequeno ecrã televisivo. Depois, foi administrador (RTP) e membro de governo (Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media)...

4. Digamos, para simplificar, que nem tudo foi fácil. Ou ainda: as experiências saldaram-se por uma lição de vida amarga e doce. Para usarmos a linguagem do velho e incontornável Godard, diremos que Nuno Artur Silva foi sujeito — e objecto, hélas! — de uma metódica lição de coisas.

5. O facto de o espectáculo ser pontuado pelos desenhos que António Jorge Gonçalves vai improvisando, ao mesmo tempo que informa o espectador das várias alíneas da performance, conferem a Onde É Que Eu Ia?... a respiração insólita, subtilmente envolvente, de uma memória que apetece dar a ver através de novas imagens, ao mesmo tempo que o distanciamento decorrentes das próprias imagens apela a mais palavras — e à contundência sem equivalente do verbo.

6. O resultado é um belo e sofisticado exercício de contemplação das grandezas e misérias do nosso mundo português, das convulsões próprias da cena política, incluindo os bastidores fornecidos pelas casas de banho (nada de impróprio ou chocante, podem crer), até às vergonhas e desvergonhas da expressão virtual de alguns cidadãos, cada vez mais banal e menos expressiva, tendencialmente (e orgulhosamente) medíocre.

7. A mensagem do espectáculo é... não haver mensagem. Fica, em qualquer caso, um conselho sábio: cada vez que decidirmos retomar a palavra, convém perguntar "onde é que eu ia" — a humildade é, afinal, uma virtude humana que vale a pena reabilitar.

* ONDE É QUE EU IA?...
> até dia 5 de fevereiro

>>> Instagram.

quinta-feira, dezembro 22, 2022

O cinema e o seu teatro

Pierre Léon e Rita Durão:
um filme que é um jogo de espelhos

O cineasta francês Eric Rohmer escreveu uma única peça de teatro: O Trio em Mi Bemol. Rita Azevedo Gomes transforma-a numa pequena maravilha cinematográfica, percorrendo as memórias partilhadas de um homem e uma mulher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 dezembro).

Como lidar com um filme tão cristalino e, ao mesmo tempo, tão distante dos lugares-comuns que assombram o cinema e os seus mercados? O Trio em Mi Bemol, de Rita Azevedo Gomes, desafia-nos para o reencontro com um nobre conceito de cinema: não se trata de “reproduzir” o mundo, antes de o envolver na magia primitiva que as imagens e os sons podem criar, de algum modo ampliando o próprio mundo [Berlinale].
Logo de entrada, contemplamos o rigor, de uma só vez geométrico e sensual, das imagens assinadas por Jorge Quintela, um dos grandes directores de fotografia do actual cinema português. O que, entenda-se, não quer dizer que Rita Azevedo Gomes ceda a qualquer facilidade “decorativa” ou “ilustrativa”. Nada disso: as imagens são parte essencial de toda a dramaturgia. O certo é que a matéria primordial na organização de O Trio em Mi Bemol é a palavra. Mais concretamente: a palavra teatral.
Na origem do filme está, justamente, a adaptação de uma raridade: O Trio em Mi Bemol, a única peça de teatro escrita por Eric Rohmer (1920-2010), por ele encenada em 1987, com Jessica Forde e Pascal Greggory. Trata-se de “Uma comédia breve em 7 quadros”, centrada num homem e uma mulher que já viveram juntos: os seus (sete) reencontros são pequenos bailados afectivos em que, através da proliferação dos diálogos, e alguns silêncios, ora irónicos, ora indecifráveis, as memórias comuns vão elaborando um puzzle de certezas e incertezas em que a música — o Trio para Clarinete, Violeta e Piano, K. 498, de Mozart — desempenha um papel fundamental.
Escusado será sublinhar que o texto de Rohmer leva-nos a evocar alguns títulos emblemáticos do seu cinema, em particular a série “Seis Contos Morais”, com destaque para A Minha Noite em Casa de Maud (1969) e O Joelho de Claire (1970). Aí encontramos inusitadas redes de relações (e pares homem/mulher) em que o insondável desejo de cada um vacila face à verdade oculta do desejo do outro.
Agora, através das magníficas interpretações de Rita Durão e Pierre Léon, descobrimos um desses “puzzles” em que as personagens são impelidas, de modo não necessariamente consciente, a reavaliar o que deram um ao outro ou, no limite, perderam através da própria relação que estabeleceram — dir-se-ia que qualquer amor coabita sempre com a sua própria perdição. O que, entenda-se também, não quer dizer que O Trio em Mi Bemol seja um drama angustiado e angustiante, já que, em última instância, circula por estes encontros e desencontros um humor tão contido quanto contagiante.
Rita Azevedo Gomes “acrescenta” ao labirinto criado por Rohmer um elemento de insólita distanciação: as duas personagens centrais são, afinal, intérpretes de um filme que está a ser rodado, sob a direção de um realizador que se exprime em espanhol (Ado Arrieta). Tudo acontece, então, como um milagroso jogo de espelhos e janelas. Literalmente, apetece dizer, já que a casa que serve de cenário ao filme — em Moledo do Minho, desenhada por Álvaro Siza Vieira, em 1964 — é, à sua maneira, um belíssimo teatro.

sábado, novembro 12, 2022

De Fassbinder a Ozon [2/2]

Denis Ménochet pega fogo à imagem de Khalil Gharbia

Através do magnífico Peter von Kant, o francês François Ozon reencontra a herança da obra do alemão Rainer Werner Fassbinder: este é um filme capaz de celebrar o artifício do cinema a partir de uma herança visceralmente teatral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 outubro), com o título 'Recriando a herança das lágrimas amargas'.

[ 1 ]

Ozon está também a evocar a própria filmografia, já que uma das suas primeiras longas-metragens, Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes (2000), se baseia numa peça de Fassbinder, igualmente construída em torno da relação de dois homens com grande diferença de idades. Tal proximidade está longe de ser apenas “temática”, sendo sobretudo conceptual e figurativa. Num caso como noutro, a assumida teatralidade do cenário acaba por se confundir com um ambíguo gesto nostálgico: Peter von Kant é um filme apostado em redescobrir as delícias de um cinema enraizado nos artifícios do estúdio — tudo, mas mesmo tudo, do impecável rigor geométrico do espaço até às mais simples manifestações naturais (a neve a cair lá fora…), é tratado através da sensualidade de tais artifícios.
Como sempre em Ozon, a vibração do drama (ou da comédia) envolve um minucioso trabalho com os actores, a começar, claro, no papel de Peter, por esse gigante do cinema francês que é Denis Ménochet (vimo-lo, por exemplo, em Custódia Partilhada, produção de 2017 assinada por Xavier Legrand) e Khalil Gharbia, representando o misto de ironia e insolência que define o “fantasma” romântico que é Amir. Sem esquecer, claro, Stefan Crepon, interpretando com minuciosa contenção o silêncio e a mágoa do abusado Karl.
O contraponto das actrizes é tanto mais importante quanto, para lá do seu talento, “transportam” memórias vitais. Hanna Schygulla, no papel da mãe de Peter, é uma “mensageira” de muitas emoções cinéfilas — participou em mais de duas dezenas de títulos de Fassbinder, incluindo As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Interpretando Sidonie, Isabelle Adjani reencontra algo da dimensão mitológica do seu lugar na história do cinema francês — a sua composição em A História de Adèle H. (1975), de François Truffaut, poderá servir de memória simbólica, até porque Ozon é um legítimo herdeiro do gosto romanesco de Truffaut.
Para que as memórias reencontrem a sua utópica harmonia, vale a pena recordar que a canção que Peter escuta nos momentos iniciais do filme — Jeder tötet was er liebt, interpretada por Sidonie/Adjani — foi composta por Peer Raben, a partir de um poema Oscar Wilde, para a banda sonora do título final de Fassbinder, Querelle (1982), onde é cantada por Jeanne Moreau. E também que o quadro Midas e Baco (c. 1630), de Nicolas Poussin, que domina o espaço em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, reaparece numa parede do apartamento de Peter von Kant.
NICOLAS POUSSIN
Midas e Baco
(c.1630)

sexta-feira, novembro 11, 2022

O Rei Leão, 25 anos na Broadway

O Rei Leão, dirigido por Roger Allers e Rob Minkoff, foi o grande sucesso do verão cinematográfico de 1994, ficou como um marco na evolução dos desenhos animados e transformou-se numa das referências mais universais dos estúdios Disney. De tal modo que, em 1997, chegou à Broadway... e lá continua! Para assinalar os 25 anos da vida teatral de O Rei Leão, dirigido por Julie Taymor, cantores e músicos do espectáculo estiveram nos estúdios da NPR, em Washington, interpretando temas clássicos do filme (e da peça), e outros criados especificamente para o palco — quase 20 minutos de puro e glorioso entertainment.

quinta-feira, novembro 10, 2022

De Fassbinder a Ozon [1/2]

Denis Ménochet e Isabelle Adjani filmados por François Ozon:
o cinema através do teatro

Através do magnífico Peter von Kant, o francês François Ozon reencontra a herança da obra do alemão Rainer Werner Fassbinder: este é um filme capaz de celebrar o artifício do cinema a partir de uma herança visceralmente teatral — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 outubro), com o título 'Recriando a herança das lágrimas amargas'.

Apesar do poder do marketing dos filmes de super-heróis e, em muitas salas, do afunilamento da oferta, não se pode dizer que o mercado português viva alheado do trabalho de alguns dos mais importantes cineastas contemporâneos, sobretudo europeus. É o caso do francês François Ozon (nascido em Paris, em 1967) que continua a ser uma presença regular no nosso circuito comercial — agora com o magnífico, insólito e sedutor Peter von Kant, filme que, em fevereiro, integrou a secção competitiva do Festival de Berlim.
O título remete para As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972), realizado pelo alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) a partir da sua peça homónima. Aí encontrávamos como figura central, interpretada por Margit Carstensen, uma criadora de moda a viver as convulsões de uma teia de paixões desencontradas em que todas as personagens são mulheres.
Ozon “transforma” Petra em Peter, não exactamente para fazer a versão “masculina” do drama de Fassbinder, antes para propor um jogo de revisão e reinvenção em que, para todos os efeitos, persistem duas fundamentais linhas de força: Peter experimenta também os movimentos passionais como um jogo (teatral, sem dúvida) que implica, transporta e desafia a verdade do amor; mais do que isso, as peripécias das suas “lágrimas amargas” levam-no a avaliar até que ponto o amor é (ou talvez não seja…) uma forma de possuir o ser amado.
A acção tem lugar em Colónia, em 1972, portanto no ano do filme de Fassbinder. Peter é também um artista, mas do mundo do cinema. Realizador de sucesso, vive no seu apartamento entre angústias existenciais e delírios de grandeza. Duas figuras paradoxais pontuam o seu quotidiano: o silencioso Karl, assistente que Peter trata de modo grosseiro e humilhante, mesmo se é ele que lhe escreve os argumentos dos filmes, e Sidonie, musa que protagonizou diversos momentos da sua obra e, agora, o visita regularmente. Numa dessas visitas, Sidonie apresenta-lhe o jovem Amir — Peter apaixona-se loucamente por Amir, com ele começando a viver uma relação que parece ser a realização de uma utopia tão carnal como romântica…
Se é possível superar o esquematismo da sinopse, talvez seja importante chamar a atenção do leitor para a ambivalência em que tudo isto acontece. Por um lado, Peter von Kant está longe de ser uma homenagem “copista” do filme de 1972; por outro lado, aquilo que em Fassbinder nos surgia como drama enredado em desejos enigmáticos e êxtases suspensos “renasce”, com Ozon, num registo de metódico distanciamento, dir-se-ia uma tragédia sempre evitada pelos sobressaltos de uma sofisticada comédia.

sábado, março 26, 2022

Do teatro para o cinema

Annette Bening e Josh O'Connor:
saudades do paraíso perdido

Tendo como base uma peça de sua autoria, William Nicholson realizou Uma Réstia de Esperança, filme capaz de nos devolver o valor das palavras e a importância dos actores — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 março).

Como todos sabemos (a começar pelos distribuidores e exibidores de filmes), a nossa actualidade cinematográfica está perversamente inflacionada — esta semana [17 março], entre salas e plataformas de streaming, surgem 17 novos títulos. A avalanche de estreias faz com que haja uma percentagem mínima de filmes protegidos por grandes campanhas promocionais. Os outros, silenciosamente, batalham pela atenção dos espectadores.
Entenda-se: esta é uma observação objectiva, não uma fútil atribuição de “culpas” seja a quem for. Acontece que, por vezes, entre essas estreias há pequenas pérolas que merecem ser descobertas. É o caso de Uma Réstia de Esperança (Hope Gap no original), produção britânica revelada em setembro de 2019, no Festival de Toronto, com William Nicholson, argumentista e realizador, a adaptar uma peça de sua autoria, intitulada The Retreat from Moscow.
Na conjuntura actual, as raízes teatrais deste drama acabam por adquirir uma importante dimensão cinematográfica. Dito de outro modo: nada do que aqui acontece tem que ver com o novo-riquismo de efeitos (pouco) especiais, muito menos com seres vindos de outras galáxias para atormentar os pobres humanos — são as palavras que comandam.
Em cena estão Grace e Edward, habitantes de Seaford, cidade costeira do sul da Inglaterra. Casados há 29 anos, vivem num ambiente de solidões desencontradas: ele professor de liceu, obcecado pelas suas intervenções na Wikipedia, ela envolvida na organização de antologias poéticas. Subitamente, ou talvez não (trata-se, afinal, de uma crise que se foi insinuando em todos os detalhes do quotidiano), Edward confessa que tem uma relação com outra mulher e vai partir… As convulsões afectivas enredam-se com o facto de o primeiro ouvinte da sua confissão ser o filho que vive em Londres, visitando Seaford de forma irregular…
O que mais conta são, de facto, as palavras que circulam por este labirinto privado. Aliás, se pelo meio o filme se “perde” um pouco, isso parece resultar da tentativa criar uma alternância de espaços algo supérflua. Porquê supérflua? Porque se há “tema” que pontua os momentos vitais de Um Réstia de Esperança é, justamente, a dificuldade de verbalização do que está a acontecer. Por alguma razão, a demanda de Grace dirgida a Edward envolve o desejo de que ele fale, não pare de falar.
Annette Bening e Bill Nighy são magníficos na representação dessa relação conjugal cuja ilusória naturalidade vai ser drasticamente posta à prova. No papel do filho, Josh O’Connor (mais conhecido pela interpretação da personagem do Príncipe Carlos na série The Crown) consegue encarnar a ambivalência de sentimentos que o faz viver num ziguezague moral, também ele habitado por muitas palavras por dizer, entre o pai e a mãe. Sem esquecer que William Nicholson sabe tirar o melhor partido da paisagem costeira, afinal transformando Seaford numa verdadeira personagem da história de Grace e Edward — dir-se-ia um pequeno paraíso perdido, desencantado com as tragédias íntimas dos humanos.

segunda-feira, março 07, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [10/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]
[ Macbeth ] [ À Procura de Ricardo III ]  [ Romeu + Julieta ]  [ A Paixão de Shakespeare ]


Na década de 1980, Kenneth Branagh surgiu como herdeiro “natural” de Laurence Olivier — curiosamente, também se estreou na realização com Hamlet (1989). Esta sua versão de As You Like It é especialmente significativa pelo modo como celebra a obra de Shakespeare enquanto território sempre aberto às mais insólitas transfigurações. Neste caso, a aventura centrada na demanda do amor pela personagem de Rosalind, passa do domínio de Arden, algures na Europa do século XVI, para uma colónia europeia no Japão do século XIX. Desta vez, Branagh não representa, estando a personagem de Rosalind entregue a Bryce Dallas Howard, à frente de um elenco que inclui David Oyelowo, Romola Garai e Kevin Kline. É, além do mais, um esclarecedor exemplo do humor que circula por muitos textos de Shakespeare.

quinta-feira, março 03, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [9/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]
[ Macbeth ] [ À Procura de Ricardo III ]  [ Romeu + Julieta ]


Entre os filmes que já representaram o próprio poeta, este Shakespeare in Love, produzido pela Miramax de Harvey Weinstein, continua a ser um dos mais conhecidos. Num registo assumidamente ficcionado, acompanhamos Shakespeare no Rose Theatre, em Londres, quando escrevia Romeu e Julieta, apaixonado pela também fictícia Viola de Lesseps. Sob a direcção de John Madden, com Joseph Fiennes e Gwyneth Paltrow a interpretar o par amoroso, o filme aposta numa “reconstituição” vistosa, abrilhantada por um elenco em que coexistem ingleses e americanos: Colin Firth, Ben Affleck, Judi Dench, Imelda Staunton, Tom Wilkinson, etc. Venceu os Oscars do ano, com sete distinções, incluindo melhor filme, mas a estatueta dourada de melhor realização foi para Steven Spielberg (O Resgate do Soldado Ryan).

segunda-feira, fevereiro 28, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [8/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]
[ Macbeth ] [ À Procura de Ricardo III ]


O que é que a música rock tem a ver com o teatro "shakespeariano”? Para o australiano Baz Luhrmann, são dois modos diferentes, mas cúmplices, de conjugar a mesma vertigem romântica. Sem prejuízo de, para mais, tudo acontecer entre duas famílias rivais, não de Verona, mas de Verona Beach, cujos gangs, armas de fogo e automóveis parecem saídos de um policial da década de 1970. De tal modo que esta versão da peça mais universal de Shakespeare se mantém obsessivamente fiel ao texto, ao mesmo tempo que preenche a sua banda sonora com temas de grupos como os Garbage, The Cardigans ou The Wannadies. Escusado será dizer que os resultados são bem diferentes das mais célebres versões anteriores, incluindo as de 1936 e 1968, assinadas, respectivamente, por George Cukor e Franco Zeffirelli. Consagrando os seus intérpretes principais — Leonardo DiCaprio e Claire Danes —, Luhrmann transfigurou Shakespeare em arauto da cultura pop.

quarta-feira, fevereiro 23, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [7/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]
[ Macbeth ]


Não exactamente uma adaptação de Shakespeare, antes uma reflexão sobre o desafio de encenar Ricardo III. Na dupla condição de actor e realizador, Al Pacino assina um filme a meio caminho entre as exigências do palco e o documentário cinematográfico. Cruzam-se, assim, o registo de uma representação da peça e diversas conversas do próprio Pacino com uma impressionante galeria de actores: Penelope Allen, Alec Baldwin, Vanessa Redgrave, Winona Ryder e Kevin Spacey são alguns dos convocados para esta aventura que tem tanto de pedagogia teatral como de reflexão filosófica sobre a herança “shakespeariana”. No limite, trata-se de avaliar a presença dessa herança na cultura popular, a ponto de Pacino combinar os depoimentos dos seus pares com breves entrevistas de rua a cidadãos anónimos.

segunda-feira, fevereiro 21, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [6/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]  [ As Badaladas da Meia-Noite ]

1971. MACBETH

Este é o primeiro filme que Roman Polanski realizou depois do assassinato de sua mulher, a actriz Sharon Tate, pelo gang de Charles Manson: daí que a sua encenação muito crua da violência física tenha sido frequentemente descrita como um processo catártico do realizador. Em qualquer caso, encontramos aqui o rigor de uma visão contundente dos fantasmas da dimensão humana, obviamente já presente em Repulsa (1965) ou A Semente do Diabo (1968). Daí também o jogo calculado entre a teatralidade dos diálogos e o realismo das situações, num ziguezague de emoções que encontra a sua expressão exemplar no trabalho de Jon Finch e Francesca Annis, intérpretes do casal Macbeth — um ano mais tarde, Finch seria o protagonista de Frenzy-Perigo na Noite, penúltimo filme de Alfred Hitchcock.

domingo, fevereiro 20, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [5/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]  [ Trono de Sangue ]


Este filme de Orson Welles é, por certo, uma dos mais prodigiosas versões da herança teatral de Shakespeare. Não se trata da adaptação de uma peça, mas sim da celebração de uma personagem presente ou citada em várias peças — Sir John Falstaff (que Welles compõe com exuberante comoção) —, amigo muito próximo do Príncipe Hal, futuro rei de Inglaterra; foram utilizados textos provenientes de Henrique IV (Partes 1 e 2), Ricardo II, Henrique V e As Alegres Comadres de Windsor. Das várias incursões “shakespearianas” de Welles (incluindo um Macbeth de 1948), esta era a sua preferida, desde logo porque surgiu como prolongamento de uma experiência teatral, Five Kings (1939), já resultante de um elaborado cruzamento daqueles textos. Financiado por Emiliano Piedra, um produtor espanhol, o filme pertence ao período em que Welles só ia conseguindo montar os seus projectos na Europa — cronologicamente, surgiu entre O Processo (1962), produção franco-italo-germânica, e História Imortal (1968), telefilme francês também difundido nas salas.

sexta-feira, fevereiro 18, 2022

Shakespeare, teatro e cinema [4/10]

[ A Tragédia de Macbeth ]  [ Henrique V ]  [ Júlio César ]


Figura central na internacionalização do cinema japonês, Akira Kurosawa foi também um criador seduzido por diversas componentes da cultura ocidental — um dos seus filmes mais premiados, Ran-Os Senhores da Guerra (1985), tem como base O Rei Lear. Quando dirigiu Trono de Sangue (cujo título original se poderá traduzir por “O Castelo Teia de Aranha”) tinha já assinado Os Sete Samurais (1954), um dos títulos míticos do cinema clássico japonês. Deslocando a acção de Macbeth da Escócia para o Japão medieval, o filme distingue-se por uma majestosa encenação dos círculos íntimos do poder, sua sedução, violência e vulnerabilidade. No papel central está um dos actores também mais internacionais de toda a história do cinema japonês: Toshiro Mifune.