Este texto é a terceira parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do DN com o título ‘Partir dos filmes para achar o seu cinema’.
O livro The Wes Anderson Collection, de Matt Zoller Seitz, passa estranhamente ao largo dos elementos da banda sonora expressamente criados pelo brasileiro Seu Jorge, que tem um papel no filme em que, de guitarra na mão, interpreta versões, com letra em português, de canções célebres de David Bowie. O mesmo não acontece com a música que escutamos em Moonrise Kingdom (de 2012), sobre a qual o realizador revela que teve um papel determinante no filme. “Benjamin Britten é uma parte grande de todo o filme”, reconhece o realizador (4). Dele ouvem-se elementos de The Young Person’s Guide to the Orchestra (numa gravação dirigida e narrada por Bernstein), Noye’s Fludde, Simple Symphony, Friday Afternoons e ainda um excerto da ópera A Midsummer Night’s Dream. Wes Anderson aponta contudo Britten como uma das três figuras maiores que a música de Moonrise Kingdom respira, os outros sendo Henry Purcell (5) “cuja música Britten desmonta e rearranja de modo a criar algo de novo a partir dela” e Bernstein, “que dirige, ao mesmo tempo que faz da música a sua própria experiência narrada”. Isto sem esquecer a partitura original que Alexandre Desplat criou para o filme (e na qual colabora Mark Mothersbaugh, outro colaborador de Wes Anderson), assim como as canções de Hank Williams ou Françoise Hardy que surgem em alguns momentos da banda sonora.
Apesar das muitas ocasiões em que o livro coloca a música, fotografias ou livros como motores de inspiração de Wes Anderson, é na cinefilia que encontramos a alma das ideias centrais que desaguam nos seus filmes. Essa cinefilia é bem evidente entre as fundações de Os Tenembaums – Uma Comédia Genial, que tem O Quarto Mandamento (The Magnificent Ambersons, de 1942) de Orson Welles como uma das mais importantes fontes de inspiração.
'O Rio Sagrado', de Jean Renoir |
The Darjeeling Limited (2007) é também um bom exemplo de como um filme seu emergiu de uma experiência cinéfila. Era já anterior a Life Aquatic a sua vontade de criar uma narrativa com três irmãos a viajar num comboio. “Mas não sabia onde ia acontecer”, explica, lembrando que chegou mesmo a pensar num elenco antes mesmo de saber que ia filmar na Índia (6). A peça que faltava – e que faz do filme um espantoso eco do mundo de cores da cultura indiana – surgiu depois de a Film Foundation ter concluído o restauro do clássico O Rio Sagrado (Le Fleuve, de 1951) de Jean Renoir (sem dúvida um dos mais belos filmes alguma vez rodados na Índia). Martin Scorsese convidara-o para ver a nova cópia e Wes Anderson, ao sair da sala onde decorreu o visionamento, não tinha mais dúvidas: “Índia. Era ali que o comboio deveria estar. E é para lá que vamos.” pensar o filme Wes Anderson juntou ainda a sua enorme admiração pela obra de Satyajit Ray, os documentários de Louis Malle sobre a Índia e depois, juntamente com Jason Schwartzman e Roman Coppola, partiu para conhecer os lugares e escrever o filme (trabalho que na verdade decorreu entre Nova Iorque, França e, só depois, a Índia).
No prefácio do livro, Michael Chabon compara o cinema de Wes Anderson à caixas de Joseph Cornell. Tal como nesses conjuntos de peças, formas e cores, a diversidade das fontes acaba por encontrar uma arrumação que é definida pela linguagem do realizador e, por sua vez, a define agora em si mesma. Em 20 anos, o livro mostra-nos como o jovem promissor que se estreava em Dallas se transformou num esteta de personalidade única no mapa do cinema do nosso tempo.
(4) in The Wes Anderson Collection, de Matt Zoller Seitz (Abrams, 2013), pag. 313
(5) A obra The Young Person’s Guide To The Orchestra, de Britten, parte de uma variação sobre um tema de Purcell.
(6) in The Wes Anderson Collection, de Matt Zoller Seitz (Abrams, 2013), pag. 206