De vez em quando, um jornal resiste à aceleração virtual do mundo e faz a doação da sua primeira página a... um escritor — eis um acontecimento, comme ça. O assunto é um livro de poesia: Michel Houellebecq acaba de lançar Configuration du Dernier Rivage. O Libération entrevistou-o e o mínimo que se pode dizer é que a manchete está para além da possível agressividade de uma frase; é uma genuína visão existencial e filosófica: "O mundo já não é digno da poesia" — um livro a descobrir; uma entrevista a ler.
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terça-feira, abril 02, 2013
quarta-feira, setembro 02, 2009
A possibilidade de um tropeção
Publicado em 2005, o romance La Possibilité d’une Ile (traduzido e publicado entre nós como A Possibilidade de Uma Ilha) juntou-se ao igualmente magnífico epílogo de As Partículas Elementares para definir na obra do escritor Michel Houellebecq um importante contributo para a definição de novos caminhos para a ficção científica. O livro seguia de certa forma um conjunto de ideias lançadas pelo clássico Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley para lhe acrescentar alguns temperos muito pessoais (nomeadamente um interesse pelo fenómeno dos pequenos grupos religiosos e uma visão algo misantropa da vida em sociedade) e uma série de reflexões sobre um dos assuntos com maior protagonismo no debate ético da ciência dos nossos dias: a clonagem.
Depois do livro (e muito bom de facto o texto é, sublinhe-se), o escritor francês resolveu transportá-lo para o cinema. Não o fez procurando quem o adaptasse a um argumento e guião para depois procurar produtor e realizador. Tomou a obra em suas mãos. Rodou ele mesmo o filme. E acabou com um absoluto disparate nas mãos.
Ver La Possibilité d’une Ile (agora disponível em DVD no mercado francês) ou ler o livro são experiências garantidamente distintas. E quase antagónicas. Sem falar na péssima direcção de actores nem numa direcção artística valentes furos abaixo da fasquia do “mau”, o filme peca essencialmente pela má gestão da relação entre o texto original e o guião. E não mostra uma única marca de identidade numa realização sem brilho algum. O resultado final merece uma reflexão sobre a consciência dos limites de cada um. Houellebecq é um dos grandes romancistas do nosso tempo. Pelo seu prisma muito peculiar reflecte sobre uma sociedade que critica e desmonta. Como realizador, contudo, não parece ter nada para nos dizer…
Depois do livro (e muito bom de facto o texto é, sublinhe-se), o escritor francês resolveu transportá-lo para o cinema. Não o fez procurando quem o adaptasse a um argumento e guião para depois procurar produtor e realizador. Tomou a obra em suas mãos. Rodou ele mesmo o filme. E acabou com um absoluto disparate nas mãos.
Ver La Possibilité d’une Ile (agora disponível em DVD no mercado francês) ou ler o livro são experiências garantidamente distintas. E quase antagónicas. Sem falar na péssima direcção de actores nem numa direcção artística valentes furos abaixo da fasquia do “mau”, o filme peca essencialmente pela má gestão da relação entre o texto original e o guião. E não mostra uma única marca de identidade numa realização sem brilho algum. O resultado final merece uma reflexão sobre a consciência dos limites de cada um. Houellebecq é um dos grandes romancistas do nosso tempo. Pelo seu prisma muito peculiar reflecte sobre uma sociedade que critica e desmonta. Como realizador, contudo, não parece ter nada para nos dizer…
sexta-feira, janeiro 19, 2007
As possibilidades de um agitador (3)
Publicado em 1994, Extensão do Domínio da Luta foi o primeiro romance de Michel Houellebecq, texto relativamente curto e directo que, ainda longe de ser ostensiva manifestação do “escritor incómodo” (rótulo que, com excessiva facilidade, lhe é hoje atribuído), já indiciava o aprendiz de misantropo que se manifestaria, sobretudo, nos magistrais As Partículas Elementares, Plataforma e A Possibilidade de Um Ilha . Extensão do Domínio da Luta é, acima de tudo, uma história de desistência. Claramente autobiográfico – “não gosto de gente (...) a sociedade na qual vivo deprime-me”, coloca na mente do protagonista, em evidente materialização de um pensamento seu –, o livro é um exorcismo discreto de um historial de depressão, projectando numa personagem ficcional um deambulatório de frustrações, solidão e consultas com psiquiatras e psicanalistas, estes últimos a conhecerem, em primeira mão, a acidez da crítica mordaz que com o tempo se tornaria recorrente nos livros de Houellebecq. Sobre os psicanalistas diz o escritor serem um grupo “regaladamente remunerado” que “sob o pretexto da reconstrução do eu (...) procedem na verdade a uma escandalosa destruição do ser humano. Inocência, generosidade, pureza... tudo isto é rapidamente triturado por entre essas mãos grosseiras”.
No centro da história está um homem absolutamente comum. Tem 30 anos, um emprego relativamente estável numa empresa de informática a quem o Ministério da Agricultura comprou software e solicitou serviços de formação. Eis-nos, então, perante um dos dois membros da equipa de formadores, o colega sendo um jovem ainda mais soturno, de 28 anos, virgem, e absolutamente incapaz de triunfar em qualquer tentativa de conquista junto do sexo oposto. Solitários. O não-herói protagonista não tem companhia feminina desde que se afastou de Veronique, há dois anos, depois desta passar por uma psicanálise. Conhecemo-los em Paris, de casa para o escritório, vazio idêntico no complementar movimento pendular ao fim do dia. O contrato com o Ministério leva-os a pequenas cidades que acentuam as suas frustrações. Um internamento hospitalar de emergência em cidade de província, uma morte acidental, um amigo padre que perde a vocação, umas jovens de roupas justas dançando numa discoteca na noite de Natal e a consciência do mergulho na depressão, psiquiatra pouco interessado pelo caso visitado logo que compreendidos os sintomas, são cenas e figuras que se sucedem num mundo que é o nosso, actual, agressivo e alheado. Cenas e figuras que disparam, por vezes, sintéticas e claras reflexões que passam pela dissecação do capitalismo “como o sistema mais natural (...) o que indica também que deve ser o pior dos sistemas”. Pela simbólica evocação da morte de Robespierre, pela eutanásia, pela sexualidade... Longe do vigor de textos posteriores, já uma clara manifestação de um espírito inquieto, magoado, nunca desistente. E, aqui, a demarcação entre o ficcional e o real que resolve a relação do escritor com esta sua personagem.
PS. Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias
quinta-feira, janeiro 18, 2007
As possbilidades de um agitador (2)
A Possibilidade de Uma Ilha, de Michel Houellebecq, exibe ligações directas com teses e visões ensaiadas no soberbo Partículas Elementares e mostra, à sua maneira, heranças, naturalmente depuradas, de quadros futuristas com familiaridade com a distopia que Huxley projectou no seu fulcral Admirável Mundo Novo. O livro não é mais que a leitura, dois milénios no futuro, da “narrativa de vida” de Daniel, um humorista dos nossos dias que fez fortuna com sketches de mau gosto e enorme potencial de choque sobre palestinianos, israelitas, a Opus Dei, a pornografia ou o mundo árabe… (auto-ironia?). Daniel é um provocador solitário de grande apetite sexual por mulheres que sabe amar. Uma ocasional visita a um retiro de uma seita religiosa (os Eloimitas), que o atrai pelo modo de vida de promiscuidade sexual que parece sugerir, começará aos poucos a mudar a sua vida. Estes defendem a busca da vida eterna por modelos opostos aos das fés “tradicionais”, a clonagem e replicação das narrativas de vida do ser original sendo os veículos da nova imortalidade. A história de Daniel1 (porque é ele o ser original), lidas e reflectidas pelos seus clones Daniel24 e Daniel25 mostra-nos como a seita, que dá a entender como casa de charlatanice e boa queda para o negócio, cresce e ganha adesões. Sobretudo depois da morte do Profeta, cuja “reaparição” maquinada desencadeia marés de conversões, cada qual legando à seita os seus bens após suicídio (que só tem lugar depois de armazenado o catálogo genético de cada novo crente).
Vista do futuro, a “narrativa de vida” de Daniel1 mostra um mundo que, mesmo decadente, vicioso, eventualmente desumano, é todavia mais vivo e verdadeiro que o dos neo-humanos, comunidade asséptica, assexuada, desprovida de sensações, que vive sob as regras da Irmã Suprema, em enclaves de segurança num mundo que, ao lado, foi alvo de cataclismos vários (a Primeira Diminuição, a Grande Seca), de guerras nucleares a gigantescas alterações climatéricas. Houellebecq não priveligia a descrição da história futura, antes sugere episódios num puzzle de acontecimentos que transformam Madrid num monte de cacos, a Península Ibérica num declive uniforme cinzento, o oceano num painel de charcos salinos. Nem procura reflectir sobre a natureza primitiva dos raros humanos que sobreviveram às catástrofes, devolvidos à natureza selvagem dos nossos antepassados.
Como n’O Admirável Mundo Novo, os nossos sucessores geneticamente manipulados procuram, nas profundezas da sua biologia, ecos de humanidade, de comportamentos perdidos, de esperanças antigas, demanda que os obriga a partir do espaço de conforto físico das redomas em que sempre viveram. O desfecho, contudo, não é semelhante, a “possibilidade de uma ilha” sendo sonhada, mas nunca plenamente atingida em Houellebecq.Polémico? Talvez, antes, provocador. A Possibilidade de Uma Ilha, na verdade, acrescenta ao universo de Michel Houellebecq apenas uma novidade: a das seitas religiosas (e, talvez, uma mais discreta abordagem ao Islão, apesar de pequenas ou médias provocações, a mais bem elaborada das quais uma visão de futuro onde, através da revelação das “verdades do mundo real” pela Internet decretarão a morte, por implosão, dos governos dominados pela conduta religiosa). O escritor viveu algum tempo entre os Raelitas, seita criada por um antigo jornalista francês que serve claramente de inspiração aos Eloimitas de Houellebecq. Como eles vêem o homem como descendentes de extra-terrestres, e visam a imortalidade pela clonagem. Curiosamente, o líder dos raelitas comentou, sem sinais de desagrado, antes pelo contrário, este livro. E, logo, a teoria da conspiração: “será Houellebecq um raelita”?...
(conclui amanhã)
quarta-feira, janeiro 17, 2007
As possibilidades de um agitador (1)
Esgotar Michel Houellebecq no rótulo fácil (e mediático) de “polémico” não só é visão redutora como complexada sobre uma obra que, apesar de relativamente curta, denuncia já uma identidade, como poucas, profundamente descrente no homem e no seu futuro enquanto espécie dominante sobre a Terra. As visões de Houellebecq não revelam a dimensão filosófica da obra de um Aldous Huxley, nem na sua escrita se reconhece o carácter visionário desse autor fundamental na definição de uma ideia de contracultura popular nos anos 60. Mas, com Partículas Elementares e, mais recentemente, A Possibilidade de Uma Ilha, o escritor francês constrói dois romances, numa modalidade algo próxima da ficção científica, nos quais levanta uma eventual necessidade do homem dar lugar a uma outra espécie dominante (tese naturalmente desconfortável para quem “vive bem” neste canto do universo). Desempenhando a engenharia genética e a noção de clonagem um papel fundamental no quadro científico que permite essa troca.
E, aqui, onde mora então a “polémica”? Por um lado, talvez, na epiderme de narrativas altamente sexualizadas e claramente misantropas. Por outro, na frequente crítica, assumida, a figuras do presente e pela ostensiva dose de ofensas ao politicamente correcto. Mais ainda, os comentários às grandes religiões monoteístas, nomeadamente o Islão (que lhe valeu já um processo em tribunal). Isto sem esquecer soundbytes assassinos para apetites de jornal (como quando se afirma um “anarca de direita”). E, claro, todo um conjunto de visões negativas de uma sociedade decadente. A sua, que critica na mediocridade de gentes e instituições, hábitos e modas.
A esmagadora maioria dos textos publicados sobre Michel Houellebecq mostra como este é um autor de paixões e ódios (e medos). A comichão ideológica de certas críticas cépticas ou o entusiasmo apaixonado no sentido inverso são apenas pólos opostos de uma abordagem a um nome que, aos poucos, se afirma todavia como incontornável figura na nova literatura francesa (afinal a sua transferência para a Fayard foi notícia quase ao jeito dos dinheiros dos futebóis). Mais um comentador que um pensador, mais um designer de histórias que um criador de personagens profundas (com as quais nos possamos identificar), Houellebecq é um filho da mesma sociedade que critica. Uma alma magoada que grita ao mundo a sua falta de amor-próprio enquanto espécie, a sua potencial pulsão marginal, a sua absoluta falta de fé no futuro… Ou será, antes, este todo um apelo a uma nova noção de fé, recorrendo à negação como estímulo à futura adesão?
Michel Houellebecq escreve sempre, e exclusiva e exaustivamente, sobre si. Todas as suas personagens são extensões ou materializações da sua história e das suas ideias. As suas personagens revelam desejos (talvez mais reprimidos que praticados). Os seus romances são projecções de uma atitude de desencanto, manifestos de uma “história de vida” de rejeição e inadequação.
(continua amanhã)
PS. Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias
PS. Texto originalmente publicado na revista '6ª', do Diário de Notícias
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