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terça-feira, janeiro 09, 2024

As músicas dos Globos de Ouro

A vaga mediática e populista de Barbie não encontrou eco na 81ª cerimónia dos Globos de Ouro da HFPA [Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood]. Oppenheimer foi o grande vencedor da noite, com prémios em cinco categorias, incluindo a de melhor filme/drama — as outras foram realizador (Christopher Nolan), actor/drama (Cillian Murphy), actor secundário (Robert Downey Jr.) e música (Ludwig Göransson).
O compositor sueco Ludwig Göransson ganhou, assim, o seu primeiro Globo, ele que já foi "oscarizado" uma vez, graças à banda sonora de Black Panther — vale a pena escutar um dos temas de Oppenheimer (What We Have Done). Acrescentando, já agora, o melhor de Barbie: a belíssima canção What Was I Made For?, de Billie Eilish, composta por ela e o seu irmão, Finneas O'Connell — ganhou o Globo de melhor canção.
 


quarta-feira, janeiro 03, 2024

Christopher Nolan
* 10 filmes de 2023 [6]

* CHRISTOPHER NOLAN
Oppenheimer

Maior que a vida — eis a dádiva do IMAX, metodicamente esbanjada pelas rotinas da Marvel & afins. Nolan fundamentou o seu retrato de J. Robert Oppenheimer, não exactamente no oposto, mas em algo bem diferente. A saber: mais próximo dos elementos vitais, incluindo os rostos das personagens. Daí a dimensão mais perturbante do espectáculo: seguir e compreender os passos que conduziram à construção da bomba atómica não significa sair do factor humano, antes mergulhar ainda mais, e mais intensamente, nas suas convulsões internas. Sem esquecer Cillian Murphy, génio da presença e da tragédia que a pode envolver.


* * * * *
Mark Cousins
Nanni Moretti
Nuri Bilge Ceylan
Jafar Panahi
Bradley Cooper

terça-feira, outubro 03, 2023

CinemaScope: maior que a vida...
...ou, pelo menos, mais largo

A Túnica (1953), primeiro filme em CinemaScope

O CinemaScope surgiu há 70 anos, mas os nossos olhares contemporâneos desconhecem a sua herança — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 setembro).

O prazer da monumentalidade, um dos valores fulcrais das imagens do século XX, está a ser todos os dias decomposto, em particular nos nossos ecrãs televisivos. É um processo tanto mais triste quanto a maior parte dos seus protagonistas nem sequer tem consciência de que está a acontecer. Falo de quê? Do martírio a que é sujeita a noção, não teórica, mas instintiva — e, nessa medida, genuinamente sensual — de que há nas imagens a capacidade de serem “maiores que a vida” (bigger than life, ensina a mitologia americana, nesse aspecto muito mais visceral do que a europeia). E que, de todos os ecrãs, só o ecrã cinematográfico é capaz de garantir e celebrar tal grandeza. Sem esquecer, paradoxalmente, que a grandeza fútil de muitos super-heróis reforça aquele processo.
Tal decomposição não é estranha à promiscuidade visual instalada pelos novos recursos tecnológicos. Bastará ver alguns segundos de Lawrence da Arábia (1962) ou Apocalypse Now (1979) num ecrã de telemóvel para observarmos, ali mesmo, no aconchego das nossas mãos, o suicídio tecnológico das nossas utopias iconográficas: se tudo é literalmente manipulável, a própria noção de património não passa de um efeito virtual.
Sintoma quotidiano deste outro apocalipse é o facto de, em nome da informação jornalística, se ter normalizado a amostragem de imagens de telemóvel obtidas com o aparelho colocado em posição vertical (de tal modo que as partes laterais do ecrã televisivo são “enchidas” com a duplicação da imagem original, mas desfocada). Que acontece, então? Pois bem, a demonstração prática de que a maioria dos utilizadores e difusores dessas imagens de telemóvel passou a desconhecer a verdade espectacular e, sobretudo, as especificidades das imagens de ecrã largo.
Exemplos? Assim, alguém pode ter usado um iPhone 13, tendo à sua disposição um ecrã de 146,7 mm / 71,5 mm, em que a primeira medida é 2,05 vezes maior que a segunda; ou um Samsung Galaxy S20, em que essa proporção passa a ser 2,19 (151,7 mm / 69,1 mm). Dito de outro modo, os utilizadores têm à sua disposição uma imagem cujas proporções são muito próximas do formato de CinemaScope, na origem com uma largura 2,55 vezes maior que a altura… E, apesar disso, sem dúvida contra isso, colocam o telemóvel em posição vertical. Tudo isto com um suplemento absurdo: nas últimas décadas, os ecrãs caseiros ficaram cada vez mais próximos das proporções do CinemaScope.
Convém, por isso, não cedermos à aceleração noticiosa em que vivemos, acumulando números e estatísticas, repetições e mais repetições. Esta não é, de facto, uma curiosidade anedótica da semana que passou, mas uma história com muitas décadas: 70 anos se quisermos ser mais precisos, já que o primeiro filme em formato CinemaScope — The Robe (título português: A Túnica), um épico bíblico realizado por Henry Koster — se estreou em Nova Iorque no dia 17 de setembro de 1953.
A ironia, algo macabra, de tudo isto decorre do facto de a história nos ensinar que o lançamento comercial do CinemaScope — cujas raízes técnicas se podem encontrar em experiências iniciadas ainda no período mudo, em meados da década de 1920 — se ficou a dever, no essencial, à tentativa de combater a concorrência da… televisão. O cartaz original de The Robe referia-se mesmo a um “milagre moderno” que podia ser visto “sem óculos”! Que é como quem diz: evitando os “apêndices” obrigatórios para os filmes em 3D (que tinham começado a ser comercializados em 1952).
A conjuntura de 1953 pode ser resumida de modo simples: havia cada vez mais pessoas a ficar em casa a ver televisão e o cinema propunha-se oferecer uma grandiosidade física, também simbólica, inacessível aos pequenos ecrãs. A sua significação não se esgota nos sucessos e insucessos registados nesse período: em boa verdade, essa vocação “maior que a vida” pontua o cinema até aos nossos dias, desembocando nas salas IMAX. É certo que o IMAX tem servido, sobretudo, para aventuras de super-heróis cuja formatação deve mais ao marketing do que à cinefilia, mas um filme prodigioso como Oppenheimer, de Christopher Nolan, serve também de prova muito real de que é possível pensar o IMAX em função de outras ideias narrativas e diferentes valores de espectáculo.
Vivemos, assim, num universo em que a “ideologia” dos telemóveis tende a favorecer uma concepção ligeira e, por fim, descartável das imagens — de qualquer imagem. Cada vez que um cidadão se “esquece” que o ecrã do seu telemóvel pode ser usado em posição horizontal morre um pouco mais dos valores cinéfilos que pontuaram o século XX, não por acaso apelidado o “século do cinema”. O vazio dos olhares que agora se propaga não é uma peripécia pitoresca, mas o triunfo de uma cultura que concebe, multiplica e reproduz as imagens como resíduos descartáveis. Acontece milhões de vezes por segundo.

terça-feira, agosto 15, 2023

“Barbenheimer”:
que fazer com esta palavra?

Margot Robbie (Barbie) e Cillian Murphy (Oppenheimer):
é preciso repensar a distribuição e exibição dos filmes

Os filmes Barbie e Oppenheimer são dois espantosos fenómenos de bilheteira: será que os números chegam para compreender tudo o que está a acontecer? — este texto foi publicado no site da SIC Notícias (31 julho / os números citados das bilheteiras são, obviamente, referentes a essa data).

Assim vai o mundo do cinema: o marketing norte-americano inventou uma palavra (“Barbenheimer”) para “cruzar” dois filmes com lançamento mundial simultâneo — Barbie, de Greta Gerwig, e Oppenheimer, de Christopher Nolan — e os efeitos nas bilheteiras são grandiosos. Nos EUA, o primeiro já arrecadou um pouco mais de 350 milhões de dólares, enquanto o segundo vai nos 174 milhões. Em Portugal, a afluência é também invulgar: 445 mil e 205 mil espectadores, respectivamente, ao fim de duas semanas de exibição (com um total de receitas superior a 4 milhões de euros).
Os resultados são tanto mais surpreendentes quanto estamos perante dois objectos radicalmente diferentes, porventura inconciliáveis. Barbie centra-se numa personagem (boneca, brinquedo da marca Mattel) sem qualquer historial cinematográfico, enquanto Oppenheimer aborda uma personalidade real pouco conhecida do grande público (J. Robert Oppenheimer, líder do Projecto Manhattan que, nos tempos finais da Segunda Guerra Mundial, fabricou as primeiras bombas atómicas), além de ser um filme com a duração de três horas.
Tudo isto me parece muito interessante e, ao mesmo tempo, francamente equívoco. Porquê? Para alinhavar duas ou três ideias, necessito de começar por esclarecer um ponto que considero fulcral (e que tenho repetido vezes sem conta, ao longo de décadas, sendo invariavelmente mal entendido). A saber: não confundo os meus juízos de valor sobre os filmes com as dinâmicas da sua vida comercial.


Ou ainda: Barbie parece-me uma brincadeira fútil, cinematograficamente feita de imitações e citações de filmes bem mais interessantes, enquanto considero Oppenheimer uma das obras mais complexas, impressionantes e perturbantes que vi nos últimos tempos. Mas… e este “mas” é fundamental: a defesa (também de muitas décadas) do cinema como fenómeno específico das salas escuras leva-me a saudar, sem hesitação, o simples facto de, afinal, existirem realmente pessoas que continuam disponíveis para conhecer os filmes (sejam eles quais forem) no lugar original para que foram concebidos — e bem sabemos que esse é um elemento crucial da crise de audiências que todos conhecem e reconhecem.
Daí, creio, a necessidade de lidar com a dimensão (que considero) equívoca do fenómeno. O que está em jogo não é o facto de Barbie ou Oppenheimer serem “melhores” ou “piores” (de acordo com os pontos vista naturalmente — e salutarmente — distintos que vão surgindo). Porquê? Porque o carácter excepcional do fenómeno nos permite perceber que a súbita eficácia desta manobra de marketing acontece depois de muito tempo (duas décadas, pelo menos) em que o marketing mais poderoso — entenda-se: o marketing dos grandes estúdios americanos e seus representantes internacionais — só investiu seriamente na promoção de super-heróis & afins, afunilando a oferta comercial e contribuindo para o desenvolvimento de mercados profundamente desequilibrados. E mais do que isso: mercados em que os filmes mais originais ou, pelo menos, menos típicos eram (e são) sistematicamente secundarizados.


Nesta perspectiva, o que se saúda não é que Barbie tenha estreado em 4243 salas (nos EUA) ou em 183 (em Portugal), como seria normal — ainda bem, é o investimento habitual quando a indústria aposta seriamente num determinado filme. O que realmente se saúda é que Oppenheimer, em vez de ter sido apressadamente rotulado de filme “difícil”, tenha surgido, não em 500 ou 600 ecrãs americanos, mas em 3610 — e que, em Portugal, os mesmos preconceitos não o tenham relegado para duas ou três dezenas de salas, antes acontecendo a sua estreia em 99 ecrãs, subindo para 103 na segunda semana.
Há outra maneira de resumir tudo isto: não basta inventar uma palavra sugestiva (francamente absurda, já agora) para pensar, programar e por em prática uma política coerente e diversificada de distribuição e exibição dos filmes. É preciso começar por avaliar que exposição pública se dá — ou não dá — a cada filme, sobretudo se esse mesmo filme não encaixar nos estereótipos de super-heróis e suas monótonas variações. Como se prova, os espectadores estão disponíveis… Quanto aos decisores da indústria, nos grandes e pequenos mercados, não lhes ficará mal parar um pouco para reflectir — no seu interesse, antes do mais.

* * * * *

>>> Greta Gerwig e Christopher Nolan falam sobre os seus filmes na televisão americana — respectivamente em Good Morning America e Today.



terça-feira, agosto 08, 2023

Oppenheimer:
um mar de enganos

J. Robert Oppenheimer, aliás, Cillian Murphy:
elogio do grande plano

A tragédia de Oppenheimer relança a herança de Fausto, redescobrindo o valor cinematográfico do rosto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 julho).

Na introdução à sua tradução do Fausto, de Johann W. Goethe (Relógio D’Água Editores, 1999), João Barrento escreve que “a obra resulta, na versão definitiva, no milagre de um todo que não é um todo.” Creio que a observação justifica algum paralelismo com o filme Oppenheimer, de Christopher Nolan. Claro que a exuberância do trabalho científico de J. Robert Oppenheimer (1904-1967) e, por fim, a sua condição de “pai da bomba atómica” atraem a classificação de um moderno Fausto. O seu pacto com os Mefistófeles da política — que no filme alguém resume dizendo que “tu és o homem que lhes deu o poder de se auto-destruirem” — coloca-o no centro de uma encruzilhada sem solução: onde acaba a paixão científica do saber e começa a instrumentalização política desse saber?
Escusado será sublinhar que no filme de Nolan ecoam múltiplos e inquietantes cenários da geo-política do nosso século XXI. Ao mesmo tempo, e ao contrário de muitas ficções audiovisuais contemporâneas, a abordagem de uma conjuntura tão delicada — do Projecto Manhattan ao lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki — não se esgota numa qualquer lição unívoca, porventura redentora, que confunda a experiência cinematográfica com as certezas normativas de muitos talk-shows. Em diversas entrevistas, Nolan tem dito que não faz filmes “didácticos”, antes procura abarcar a complexidade dos temas e situações que aborda — na certeza de que tudo isso pressupõe um espectador não seguidista, capaz de enfrentar um filme que não quer confirmar aquilo que ele já sabe, antes aposta na discussão dos limites, históricos, ideológicos ou simbólicos, que cristalizaram o seu saber.
Daí a sensação de “um todo que não é um todo”. Ao contrário de muitas produções correntes, apostadas em “reconstituições” históricas que se definem apenas pelas suas “semelhanças” com os factos retratados — diversas séries sobre a família real britânica podem servir de modelo desse “naturalismo” sem imaginação —, Oppenheimer é um filme sobre a totalidade de uma experiência cujas derivações não estão esgotadas.
Para lá das muitas diferenças que possamos citar, se há filme recente cuja ambição narrativa envolve a mesma metódica humildade (neste caso, não “a” narrativa sobre Oppenheimer, mas “uma” narrativa sobre Oppenheimer), esse filme será Spencer, de Pablo Larraín, sobre a Princesa Diana. E talvez faça sentido considerar que os desafios enfrentados por Kristen Stewart e Cillian Murphy, respectivamente como Diana e Oppenheimer, são de natureza semelhante. A saber: como representar uma figura cuja identidade histórica parece, ao mesmo tempo, tão evidente e de tão problemática fixação narrativa?
Diz Fausto, a certa altura, respondendo a Wagner que o tenta libertar dos seus tormentos: “Bem feliz é aquele que inda espera / Poder sair deste mar de enganos! / Mas o mais útil é o que se ignora, / E o que se sabe o que nos serve menos. / Mas não deixemos que tal melancolia / Nos venha perturbar tão bela hora! / Repara como o sol ao fim do dia, / No verde e nas cabanas reverbera. / Nasce e apaga-se, mais um dia passou, / Noutros lugares vai nascer nova vida.”
Há uma dimensão contraditória na tragédia de Oppenheimer (enfim, a contradição é mesmo o motor de qualquer tragédia…) que se enraiza nessa tensão entre a utilidade do que ignoramos e a menor pertinência do que já sabemos. O que, em termos cinematográficos, arrasta uma dúvida metódica: até que ponto aquilo que vemos numa personagem — a começar, claro, pelo incrível Cillian Murphy como Oppenheimer — existe como expressão do seu ser ou não passa de uma alternativa mascarada?
Tal interrogação justifica que reavaliemos, por exemplo, a santificação de algumas personagens apropriadas pelas banalidades do politicamente correcto — lembremos o determinismo dramático de A Hora Mais Negra (2017), sobre Winston Churchill, interpretado por Gary Oldman (o mesmo Oldman que, curiosamente, surge em Oppenheimer como Harry Truman). Seja como for, vale a pena acrescentar que, no filme de Nolan, tal jogo entre o que é dito e o que não chega a ser ciciado, passa por uma surpreendente colecção de grandes planos dos actores (com destaque, claro, para Murphy).
O que, enfim, nos instala num belíssimo paradoxo narrativo. Se é verdade que a grandeza física dos ecrãs IMAX tem sido celebrada através da agitação visual de super-heróis & afins, não é menos verdade que o rectângulo do IMAX pode ser um novo modelo de exaltação do rosto humano, da sua transparência e enigmas. Como? Filmando cada rosto como uma paisagem. Ou como Nolan já disse, Oppenheimer é “3D sem óculos”.

quinta-feira, agosto 03, 2023

Gatsby, Oppenheimer e os outros

Cillian Murphy na personagem de J. Robert Oppenheimer:
da utopia à tragédia

Através da odisseia do “pai da bomba atómica”, filmada por Christopher Nolan, reencontramos a nobreza narrativa de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 julho).

Que é uma personagem? A pergunta está longe de ser banalmente teórica, em particular no interior da actual produção de Hollywood. A obscena proliferação de super-heróis é paradoxalmente reveladora: dispensando qualquer relação com o mundo em que vivem os seus espectadores, o super-herói é com frequência aquele que deixou de ser personagem — no plano técnico ou simbólico, basta-lhe ser um efeito especial.
Que personagem é, afinal, J. Robert Oppenheimer (1904-1967), o “pai da bomba atómica” que Christopher Nolan filma no seu prodigioso Oppenheimer?
Lembremos as palavras escritas por F. Scott Fitzgerald (1846-1940): “Não há segundos actos nas vidas americanas”. A interpretação piedosa (não é possível refazer uma vida falhada) esgota-se rapidamente, tornando necessária alguma reflexão sobre os mais nobres valores da narrativa. A saber: como contar de novo a história de alguém cuja existência como personagem parece ter ficado esgotada num radical primeiro acto?
Não é uma questão abstracta. Não o é, sobretudo, quando se trata de enfrentar um ser tão complexo como Oppenheimer. Até porque a condição inicial de génio das maravilhas da mecânica quântica e da física nuclear lhe confere o misto de ligeireza e sedução de um tradicional wonder boy americano. O filme de Nolan é também a história da transfiguração dessa imagem numa entidade trágica, indissociável da gestação de uma arma capaz, não apenas de vencer o inimigo, mas também de aniquilar a humanidade — sem esquecer que a composição de Cillian Murphy, expondo esse processo sem hipótese de reconversão ou redenção, é das coisas mais impressionantes que, em muitos anos, vimos num ecrã de cinema.
Ainda através de Fitzgerald, encontramos a origem de tudo isso em O Grande Gatsby, lançado em 1925 (ed. Presença, 2021), através das observações do narrador, Nick Carraway. A certa altura, contemplando o automatismo feliz com que Jay Gatsby se relaciona com o painel de instrumentos do seu automóvel, Nick fixa-se mesmo nessa “desenvoltura de movimentos tão peculiar nos americanos”.
Filmada por Nolan, a história de Oppenheimer existe como uma peça em dois actos em que tal desenvoltura vai dando lugar ao negrume irreversível da tragédia, bem explícito na possibilidade, aliás, no poder muito humano de destruir o seu semelhante. O que nos faz reencontrar as convulsões de um individualismo made in USA que pontua toda uma multifacetada cultura narrativa.
Esquematizando, e esquematizando muito, há um património cultural europeu que se enraiza num enquistamento individual que encontrou a sua expressão mitológica numa frase — “o inferno são os outros” — escrita por Jean-Paul Sartre (1905-1980) na peça Huis Clos, estreada em 1944. Que é como quem diz: o meu assombramento passa pela contaminação que provém do meu semelhante. Na ficção americana, deparamos com um conflito semelhante com os “outros”, mas a partir de uma vivência individual e interior, polvilhada pela evidência primordial do medo. Mesmo num romance que refaz a história, inventando novos factos, como é o caso de A Conspiração Contra a América, de Philip Roth (1933-2018), publicado em 2004 (ed. Dom Quixote, 2017), lemos logo a abrir: “O medo preside a estas memórias, um medo perpétuo”.
Nada disto é estranho a uma nostalgia do paraíso para sempre perdido. No autobiográfico Relatório do Interior (ed. Asa, 2013), Paul Auster (n. 1947) lança mesmo a narrativa através de memórias de um tempo anterior e utópico: “No início, tudo estava vivo. Os mais pequenos objectos eram dotados de corações pulsantes, e até as nuvens tinham nomes.” O que não exclui o reconhecimento de uma falsidade que pode envolver o próprio narrador. No também autobiográfico Born to Run (ed. Elsinore, 2016), Bruce Springsteen (n. 1949) inicia o prefácio com estas palavras: “Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu.”
Oppenheimer
, filme realizado por um cineasta de origem inglesa (Nolan nasceu em Londres, a 30 de julho de 1970), acrescenta um novo capítulo a esta imensa saga narrativa. O seu tratamento da personagem de J. Robert Oppenheimer não teme o risco narrativo e, por isso mesmo, ético de suscitar uma projecção contraditória do espectador: a possibilidade de sentirmos a tragédia íntima de J. Robert Oppenheimer coexiste com o reconhecimento básico do horror da bomba.
Nolan afirma-se, assim, como herdeiro de um modo de pensar o cinema cujas raízes estão no classicismo de Hollywood e num sistema de produção que o mesmo Fitzgerald retratou no romance inacabado The Last Tycoon, publicado em 1941 (O Último Magnate, ed. Relógio D’Água, 2011). Dele existe uma admirável versão cinematográfica, O Grande Magnate, realizada por Elia Kazan em 1976, numa adaptação de Harold Pinter, com um elenco que inclui, entre outros, Robert De Niro, Tony Curtis, Jack Nicholson, Jeanne Moreau e Theresa Russell. Se consultarmos o inefável IMDb, verificamos que, num máximo de 10 pontos, os frequentadores do site lhe atribuem uma classificação média de 6,3. Tendo em conta que, por exemplo, Vingadores: Guerra do Infinito (2018) atinge 8,4 pontos talvez seja tempo de reconhecermos que o amor das personagens, incluindo as suas insolúveis contradições, se tornou um valor escasso.

sábado, julho 29, 2023

Oppenheimer:
maior que a vida, maior que a morte

Cillian Murphy no papel de J. Robert Oppenheimer:
um actor prodigioso, uma proeza cinematográfica

Depois da ficção científica de Tenet, Christopher Nolan revisita a herança trágica da Segunda Guerra Mundial: o filme Oppenheimer faz um retrato do “pai da bomba atómica” em que a infinita complexidade da história é tratada através de uma genuína paixão pelos valores espectaculares do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 julho), com o título 'O cientista, o inferno, a sua bomba e o fogo dela'.

Tom Cruise e vários elementos da produção e do elenco do mais recente título de Missão Impossível (estreado a 13 de julho) têm insistido nas singularidades da respectiva projecção. Não se trata apenas, nem sobretudo, de contar uma aventura que se quer invulgar, mas de convocar o espectador para um acontecimento especial: uma experiência (em sala, acrescente-se). A palavra tem reaparecido a propósito da nova epopeia de Christopher Nolan, Oppenheimer, dita pelo realizador e também por vários actores.
O caso não é para menos, sobretudo se nos lembrarmos que os valores específicos da “experiência” cinematográfica têm sido pirateados por discursos e valores de marketing que só sabem papaguear a dimensão “imersiva” dos ecrãs IMAX e a surpresa (?) de vermos algum herói da Marvel a destruir pela milésima vez um qualquer planeta…
Assim como os efeitos especiais podem ser um instrumento, mas não são uma garantia, dos resultados espectaculares de um filme, assim também importa reavaliar, eventualmente discutir, o que entendemos por “imersão” num filme. Ora, justamente, a resposta de Oppenheimer decorre de uma crença inabalável no cinema, não como acumulação de “acções” mais ou menos vistosas, mas sim como um companheiro das certezas e incertezas que definem essa outra experiência que acompanha, e pode transfigurar, todas as outras: a experiência humana.
Neste caso, tudo isso se torna tanto mais complexo e envolvente quanto J. Robert Oppenheimer (1904-1967), tradicionalmente rotulado de “o pai da bomba atómica”, existe como uma memória muito viva, recheada de contrastes e contradições — e não apenas na comunidade científica. Afinal de contas, o seu génio está associado ao nascimento da mais devastadora arma de destruição que os seres humanos já conceberam.

Sob o signo de Prometeu

Podemos descrever o filme de Nolan através do admirável trabalho do seu elenco. Desde logo, claro, celebrando a composição de Oppenheimer por Cillian Murphy, nunca simplificando as convulsões que o habitam: a sua personagem existe, de uma só vez, como arauto da ciência e um peão da política. Emily Blunt é um caso invulgar, talvez inesperado, de superação de uma certa imagem de marca, de dramatismo algo estereotipado: a sua interpretação de Katherine, mulher de Oppenheimer, consegue evoluir da função quase decorativa que lhe é atribuída no início até uma afirmação ideológica e emocional de inusitada intensidade.
E que dizer de Robert Downey Jr. no papel de Lewis Strauss, oficial da marinha e filantropo que presidiu à Comissão de Energia Atómica, acabando por explorar as atribulações da época “maccartista” para se vingar da humilhação pública a que Oppenheimer o sujeitara? Aqui está uma personagem em que dedicação e traição se enredam de forma perversa, conferindo-lhe a vertigem de uma figura genuinamente “shakespeareana”. Aqui está, sobretudo, um verdadeiro resgate de Robert Downey Jr.: depois de anos “perdido” dentro do fato do Homem de Ferro, reencontramo-lo, finalmente, na sua verdade artística, ou seja, como um dos maiores actores do cinema contemporâneo.
A celebração dos actores, a par, por exemplo, da admirável direcção fotográfica de Hoyte van Hoytema (colaborador frequente de Nolan, nomeadamente no seu filme anterior, Tenet) está longe de se esgotar na redução do cinema a uma mera acumulação de contribuições “técnicas e artísticas”. O que importa sublinhar é o modo como Nolan sabe aplicar todos os meios específicos da sua linguagem — incluindo um espantoso tratamento do som que só adquire a devida intensidade numa sala IMAX — para criar uma narrativa em que, como coordenador do Projecto Manhattan que fabricou as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaqui, Oppenheimer reencarna, de início de forma incauta, depois enfrentando o inferno da culpas, o mito de Prometeu. A saber: uma figura da mitologia grega que se atreveu a partilhar o fogo com os mortais, sendo castigado por Zeus a ficar, para a eternidade, atado a uma rocha.

A tragédia da verdade

Foi o próprio Nolan que escreveu o argumento de Oppenheimer, tendo como base o livro American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer (ed. Alfred A. Knopf, 2005), da autoria de Kai Bird e Martin J. Sherwin — o primeiro um estudioso de momentos definidores da história do século XX, com destaque para os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaqui; o segundo um professor universitário que se tem dedicado, em particular, à investigação da proliferação das armas nucleares. O livro foi distinguido com o Prémio Pulitzer de 2006, referente ao domínio das biografias ou autobiografias.
O filme segue uma estrutura em ziguezague que não corresponde exactamente a uma lógica de flashbacks, mesmo se as cenas do interrogatório oficial a que Oppenheimer é sujeito depois da guerra (procurando acusá-lo de traição aos EUA motivada pelas suas “simpatias” comunistas) funcionam como pólo de ligação, e também de lançamento, dos vários tempos da acção, antes e depois da guerra. Nesta perspectiva, Nolan parece apresentar-se como herdeiro directo da sofisticação clássica (temporal, justamente) de uma autor como Joseph L. Mankiewicz e, em particular, de títulos como All About Eve (1950) ou A Condessa Descalça (1954).
No limite, a odisseia de Oppenheimer confunde-se com a ancestral tragédia da verdade. Quem a detém? Ou melhor, quem a diz, pode ou sabe dizer? Daí a opção por uma alternância de imagens a cores e preto e branco que nunca se confunde com uma simples dicotomia passado/presente. Aliás, o próprio Nolan já explicou que tal alternância serve para sustentar um vai-vém entre objectividade e subjectividade que, no limite, sugere a ambivalência em que se desenvolve qualquer procura de algum efeito de verdade. Os contrastes das imagens justificam a evocação de outra referência clássica de Hollywood: JFK (1991), de Oliver Stone, sobre a investigação do assassinato de John F. Kennedy.
Raras vezes temos visto um tão fascinante colectivo de personagens representados desta maneira, ao mesmo tempo tão precisa e tão aberta à disseminação simbólica das suas componentes — será preciso sublinhar que o desencanto do filme face à gestão humana (sem dúvida desumana) dos nossos meios de destruição ecoa, ponto por ponto, no presente?
Porventura o mais espantoso do labor de realização de Nolan decorre do facto de fazer passar essa angústia colectiva sem nunca encerrar a personagem de Oppenheimer (ou qualquer outra, em boa verdade) num cliché dramático ou ideológico que possa satisfazer os fundamentalismos “históricos” dos nossos dias, em especial os que alimentam as formas mais antigas de anti-americanismo primário. O Oppenheimer encarnado por Cillian Murphy é uma personagem maior que a vida. E ainda, se tal é possível, maior que a morte. A perturbação que tudo isso arrasta é também um hino ao cinema.

segunda-feira, julho 24, 2023

Oppenheimer & Barbie:
— “É o marketing, estúpido!”

Christopher Nolan na rodagem de Oppenheimer:
a pensar na grandeza do IMAX

Oppenheimer é um notável objecto de cinema. Mas é mais do que isso: é também um espectacular acontecimento de mercado capaz de desafiar as rotinas de um marketing apenas orientado para a promoção de super-heróis e afins — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 julho).

Subitamente, o mundo do cinema de Hollywood sente-se abalado naquela que seria a sua conjuntura ideal: os meses de verão. A estação de todos os sucessos — incluindo o proverbial blockbuster com selo da Marvel ou da DC Comics — surge agora assombrada pela dúvida mais ancestral da indústria e do comércio dos filmes: como levar o cidadão comum a tomar a decisão de comprar um bilhete e assistir a um determinado filme numa sala escura?
Há dados que esbatem um pouco a angústia que circula. Assim, é um facto que a ubiquidade das plataformas de streaming alterou todas as componentes do negócio cinematográfico, promovendo a mitologia de um conforto básico: ficar em casa… Além de, como bem sabemos, a pandemia ter dinamitado os hábitos de consumo do cinema.
Em qualquer caso, mesmo correndo o risco de simplificar o labiríntico mapa internacional da distribuição e exibição dos filmes, talvez valha a pena reconhecer um dado que, neste panorama, está longe de ser secundário. A saber: os métodos e valores dominantes do marketing cinematográfico não sabem o que fazer (e, sobretudo, como fazer) face a filmes com a ambição temática e o fulgor espectacular de Oppenheimer.
Aviso à navegação: não estamos a falar de futebol, pelo que convém não nos imaginarmos no centro do mundo — este não é um problema banalmente português. Como os bonequinhos de água da nova produção da Pixar, Elemental, observamos agora, impotentes, o fogo posto por uma estratégia de produção/difusão, nascida na indústria dos EUA (concebida para um mercado realmente global), que já não sabe como controlar a devastação que provocou ao longo, pelo menos, das últimas duas décadas. O facto de o fogo ser uma componente trágica da história de J. Robert Oppenheimer não passa de uma coincidência bizarra que, perversamente, intensifica a perturbação de tudo isto.
No seu desespero criativo, o marketing americano está mesmo a tentar rentabilizar na ribalta mediática uma palavra —“Barbenheimer” — para classificar a concorrência, que se deseja produtiva, de Oppenheimer e a nova produção/interpretação de Margot Robbie, Barbie, inspirado na boneca da Mattel. São dois filmes lançados no mesmo dia (20 julho), cujas diferenças de matéria e tom são, à partida, evidentes.
Semelhante sugestão serve de sintoma de uma dramática falta de ideias para, comercialmente, tratar os filmes como entidades especificamente cinematográficas, não como produtos que, à semelhança dos detergentes, discutem entre si quem “lava mais branco”… Claro que as atribulações do marketing não esgotam a problemática contemporânea dos mercados de cinema, mas talvez fosse útil começar por responder a uma interrogação muito cândida: como é que os agentes (e as múltiplas) agências de marketing analisam os filmes que promovem? E ainda: que ideias têm (ou não têm) sobre a diversidade dos espectadores?
Eis um facto fulcral: mesmo não esquecendo as honrosas excepções, o marketing reconverteu-se na promoção (unívoca e unilateral) de super-heróis e afins, criando uma nova geração (se não etária, pelo menos ideológica) que gasta as suas energias a organizar alianças com marcas de telemóveis ou piedosas influencers, para não falarmos das ante-estreias com “famosos” a posar para fotografias de infinita tristeza iconográfica. Menospreza-se o simples facto de ser necessário — vital de um ponto de vista económico — vender os filmes como… objectos de cinema. O senhor de La Palice não diria melhor, porventura acrescentando que Oppenheimer é essa “coisa” maravilhosa que o marketing tende a ignorar: um filme concebido por um pensamento adulto, sério, empenhado e, sobretudo, apaixonado pela mais nobre vocação narrativa do cinema.
Há uma estupidez agressiva que sempre tentou fazer crer que “a culpa de tudo isto” é dos críticos de cinema, essas figurinhas hiper-minoritárias que, melhor ou pior, não desistem de celebrar os filmes e as suas singularidades. Aos mais distraídos, vale a pena lembrar que os gestores da indústria e os profissionais do marketing foram devidamente avisados para estes perigos (financeiros, entenda-se) por alguém que, salvo melhor opinião, sabe alguma coisa do assunto. O seu nome: Steven Spielberg.
Numa conversa na Escola de Artes Cinematográficas da Universidade da Califórnia, Spielberg comentou a evolução dos grandes estúdios, alertando para a possibilidade de decomposição de todo um sistema de produção: “O grande perigo é a implosão [do sistema]. Quando três ou quatro, talvez meia dúzia, de mega-produções forem um desastre, o paradigma vai ter de mudar”. E não foi a propósito de Oppenheimer que ele o disse: aconteceu há dez anos, no dia 12 de junho de 2013.

* * * * *

P.S. - Hoje mesmo, dia 24, os números oficiais do ICA indicam que Oppenheimer e Barbie conseguiram, nas salas portuguesas, uma proeza assinalável: desde 2017 não havia um fim de semana com tão grande frequência.
Como estas questões são quase sempre mediatizadas das formas mais estúpidas (incluindo a "ideia", propriamente ofensiva, segundo a qual os "críticos" menosprezam os filmes de sucesso), permito-me lembrar que aquilo que se discute no texto aqui reproduzido não é o "maior" ou "menor" número de bilhetes vendidos — aliás, como está escrito no quinto parágrafo, trata-se de analisar uma concorrência que se deseja produtiva.
O que está em jogo é bem diferente — e é, sobretudo, de outra natureza. A saber: quais os efeitos comerciais (e, nessa medida, absolutamente culturais) de um marketing que, como se escreve no quarto parágrafo, ao longo de pelo menos duas décadas, afunilou a oferta e a procura dos produtos de natureza cinematográfica. Com ou sem "Barbenheimer", a questão permanece e justifica toda a atenção das entidades directa ou indirectamente envolvidas nas respectivas dinâmicas.

segunda-feira, janeiro 04, 2021

Mulher Maravilha repete rotinas
de super-heróis masculinos

Eis um acontecimento que ficará para a história cinematográfica do ano de 2020: apesar de todos os condicionalismos impostos pela pandemia, Mulher Maravilha 1984 acabou por estrear-se nas salas escuras. Pena é que, em termos cinematográficos, os resultados sejam tão rotineiros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 dezembro). 

Sequelas? Podemos defini-las como um cruzamento perverso do cinema contemporâneo, sobretudo da grande máquina industrial de Hollywood: a estratégia de marketing tenta associar-se à reinvenção artística para continuar a alimentar o mercado global. Simples, não é? Infelizmente, como se prova pelo novo Mulher Maravilha 1984, de uma simplicidade cada vez mais rotineira e monótona.
E, no entanto, há que dizer que Mulher Maravilha 1984 vai ficar na história deste atribulado ano de 2020 como uma referência incontornável. Entre os muitos e dramáticos problemas enfrentados pelos mercados cinematográficos — com especificidades nacionais que não podem ser dissolvidas num qualquer resumo “global” —, a ausência de “blockbusters” americanos fica como um dado fulcral. Desde logo, por uma perversa razão que, escusado será lembrá-lo, não decorre do facto de cada filme ser “melhor” ou “pior”: acontece que muitos sistemas de distribuição e exibição (nacionais, precisamente) foram em grande parte construídos de forma unívoca, comercialmente pouco ágil, dependendo por completo desse tipo de produtos. 
Mulher Maravilha 1984
fica como a excepção que confirma a regra, cerca de quatro meses passados sobre o lançamento de Tenet, de Christopher Nolan (esse, sim, um belo exercício cinematográfico). Assim, os estúdios Warner não quiseram desistir de colocar o filme nas salas escuras — em particular na grandiosidade física dos ecrãs IMAX —, fazendo valer um princípio, também simples, mas essencial, segundo o qual a verdade espectacular e emocional de um espectáculo cinematográfico não pode prescindir das singularidades dessas clássicas salas escuras. 
É pena que os resultados reflictam um aproveitamento tão banal dos imensos recursos postos à disposição de uma produção deste género. A lógica de sequela enraíza-se, aliás, num entendimento estritamente financeiro das potencialidades de tais recursos. Dito de outro modo: Mulher Maravilha 1984 nasce do sucesso de Mulher Maravilha (2017), repetindo a colaboração entre a realizadora Patty Jenkins e a actriz Gal Gadot. 
É bem verdade que o filme arranca com uma sequência sugestiva, ainda que repetindo o modelo do filme anterior. Nela reencontramos Diana Prince, futura Mulher Maravilha, ainda criança, apostada em concorrer com as proezas das outras mulheres do seu reino de amazonas. São momentos visualmente curiosos, em particular pelo modo como conciliam as paisagens naturais com os efeitos digitais. São também pistas para uma possível abordagem lendária de uma figura pertencente a um universo divino, em tudo e por tudo ligada a matrizes mitológicas
[ DC Comics ]
Infelizmente, o filme rapidamente se satisfaz com a triste imitação das produções mais medíocres que têm sido feitas em torno de figuras masculinas dotadas de super-poderes. A própria colocação da acção no ano de 1984 (tempos de Guerra Fria, como lembra alguma promoção…) acaba por ser um dado irrevelavante, a não ser para alguma utilização pitoresca do guarda-roupa. E não parece ser grande proeza feminina (ainda menos feminista) fabricar espectáculos com mulheres que se vão esgotando na cópia do pior que se vai fazendo com homens. 
As consequências de tudo isto são, também elas, “tradicionais”. Por um lado, assistimos a uma saturação de efeitos digitais mais ou menos estereotipados e previsíveis, dir-se-ia reciclados de um filme para o outro (o que, provavelmente, acontece…). Por outro lado, a concepção das personagens é de tal modo esquemática que chega a ser penoso assistir aos desastres de interpretação que isso provoca; nesta perspectiva, a composição de Pedro Pascal como Maxwell Lord (o vilão que quer tomar conta do mundo através de uma “máquina” de satisfação de desejos…) tem qualquer coisa de patético, de tal modo o actor se entrega a um delírio histriónico de equivocado amador.
Há em tudo isto um claro desentendimento do que sejam as maravilhas possíveis do cinema. Por alguma razão, há alguns anos, Steven Spielberg chamava a atenção para as ameaças de “implosão” que o cinema americano estava (e está) a enfrentar. Não por causa do gosto da aventura ou dos prazeres do espectáculo — será necessário lembrar que Spielberg pertence, de alma e coração, a esse mesmo cinema? Acontece que face a uma produção de 200 milhões de dólares como este Mulher Maravilha 1984 fica a pergunta mais básica: para quê?

quinta-feira, setembro 03, 2020

18 minutos com Christopher Nolan

Eis uma derivação filosófica a propósito de Tenet, de Christopher Nolan. Disponível no YouTube, em Eyes On Cinema, trata-se um fascinante registo de 18 minutos em que Nolan comenta a estrutura do seu admirável Memento (2000). Embora sem informação cronológica, deduz-se que será uma gravação não muito posterior ao lançamento daquela que foi a segunda longa-metragem de Nolan — uma verdadeira lição narrativa capaz de nos ajudar, não apenas a lidar com os ziguezagues da montagem de Memento, mas também com os cruzamentos de subjectividade e objectividade, memória e imaginação. 

segunda-feira, agosto 31, 2020

"Tenet", de Christopher Nolan
— as aventuras de um novo realismo

Com o seu filme Tenet, Christopher Nolan convoca-nos para uma história em que o tempo se tornou reversível: este é um mundo semelhante a um jogo de video, assombrado por “factos alternativos” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Agosto).

Encontro no YouTube um fragmento de uma conversa com Christopher Nolan, registada por altura do lançamento de Interstellar (2014). Referindo-se ao “ecrã verde” que permite inserir um determinado cenário virtual por trás dos actores e, de um modo geral, aos poderes figurativos dos modernos efeitos especiais, Nolan reconhece a sua utilidade para “intensificar” algumas situações. O que não exclui um fundamental princípio de trabalho: a opção, sempre que possível, por cenários físicos, fabricados para serem registados na própria rodagem (“in camera”, como ele diz).
A meu ver, a mais significativa contribuição de Nolan para o cinema dos últimos vinte anos — a sua primeira longa-metragem, Following, tem data de 1998 — não estará tanto nos artifícios associados ao universo dos super-heróis (com a trilogia de Batman, protagonizada por Christian Bale), mas sim nessa obstinação realista.
O que nos conduz a um curioso impasse, motivador e sedutor: como falar de realismo a propósito de filmes que nos projectam em dimensões mais ou menos “fantásticas”, porventura “transcendentais”? Interstellar não será uma aventura galáctica de humanos confrontados com os poderes indizíveis de um buraco negro?
Com uma inteligência plena de didactismo, o novo filme de Nolan, Tenet, recoloca-nos perante tal impasse, valendo a pena aceitar o desafio protagonizado pelo excelente John David Washington. O que está em jogo é, no limite, um drama profundamente social. A saber: a nossa capacidade de pensar os realismos (no plural, precisamente) para lá da utilização das imagens como instrumentos de policiamento descritivo do real.
Lembremos a ideologia “purificadora” que se consagrou na tecnologia do video-árbitro do futebol. Segundo o realismo do VAR, as imagens servem apenas para reduzir os acontecimentos a uma dicotomia sem alternativa (“legal” ou “ilegal”). Nolan é um resistente: as imagens não encerram definitivamente os sentidos do real, antes o fazem explodir, literal ou simbolicamente, num labirinto de significações cuja dimensão, em grande parte, nos escapa. Nesta perspectiva, Tenet parece-me ser um parente próximo de Ready Player One (2018), o filme de Steven Spielberg sobre um mundo “futuro” em que o real passou a ser vivido e, por assim dizer, habitado como um jogo de video.
Como tem sido amplamente divulgado, o título de Tenet provém do célebre e ancestral Quadrado Sator, uma espécie de “palavras cruzadas”, com cinco palavras latinas que, em conjunto, formam um palíndromo: estão dispostas de modo a poderem ser lidas da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. “Tenet” é o palíndromo perfeito: uma palavra-espelho.
Com calculada ironia, as palavras desse quadrado surgem integradas na acção (por exemplo, Sator serve de apelido à personagem do oligarca russo interpretado por Kenneth Branagh). Mas a herança do latim não funciona como “chave” de leitura do que quer que seja. O que interessa Nolan é sugerir ao espectador que está a assistir a uma narrativa em que o tempo, além de não ser linear, existe num regime de total reversibilidade.
Há um sofisticado humor em tudo isto, até porque o filme não se limita a repetir a lógica das tradicionais viagens no tempo, à maneira de Regresso ao Futuro (1985), de Robert Zemeckis. Aí, Michael J. Fox recuava e avançava no calendário para “emendar” incidentes passados que podiam alterar o futuro, isto é, o presente que servira como ponto de partida. Agora, o futuro já está inscrito no presente — como alguém diz, um e-mail que se envia é algo que fica automaticamente no futuro, podendo regressar a qualquer momento ao presente. De tal modo que o passado a que se regressa pode coexistir com o futuro que já aconteceu.
Confuso? Em boa verdade, trata-se apenas de contar uma fábula contemporânea, tão labiríntica como um jogo de video, tão assombrada pela ameaça dos “factos alternativos” como a nossa frágil existência quotidiana. Tenet não é uma história imaginária sobre o futuro, mas um conto sobre o imaginário do nosso presente. Está lá tudo: a vertigem do espectáculo e o realismo do medo.

sábado, agosto 29, 2020

Que cultura cinematográfica?

Cartaz italiano de Blow-up (1966):
os clássicos também fazem parte das leis da oferta e da procura
As salas de cinema estão a enfrentar uma dramática crise de frequência. De qualquer modo, a pandemia não explica tudo: há factores de fragilização do mercado que têm várias décadas — este texto, anterior ao lançamento de Tenet, foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto).

Através dos números oficiais do Instituto do Cinema e do Audiovisual, sabemos que, com a pandemia, a frequência das salas de cinema baixou de forma drástica. E sabemos também que, ironicamente, alguns dos clássicos que têm sido repostos estão a conseguir performances muito acima da média.
Eis um exemplo, dos dados referentes ao fim de semana de 13/16 Agosto: Sonic - o Filme, adaptação de um conhecido jogo de video, com Jim Carrey, foi projectado em 13 sessões, tendo sido visto por 63 espectadores; Blow-up, o clássico de 1966 que o italiano Michelangelo Antonioni rodou em Londres, teve apenas uma sessão para a qual foram vendidos 68 bilhetes.
Escusado será dizer que tais números não legitimam nenhuma generalização sobre o carácter mais ou menos “popular” de um filme ou outro (aliás, importa lembrar que Sonic se estreou ainda antes da situação de pandemia, tendo acumulado quase 150 mil espectadores). Vale a pena, isso sim, atentar no valor sintomático da situação global do mercado.
Assim, mesmo com naturais dificuldades, as chamadas salas independentes, directa ou indirectamente ligadas a distribuidores que trabalham com produtos que não provêm dos grandes estúdios dos EUA, têm conseguido manter uma frequência interessante. Ao mesmo tempo, em termos proporcionais, as outras salas (genericamente, as que existem em multiplexes de grandes superfícies comerciais) têm tido frequências muito menores.
Como é óbvio, o problema está longe de ser exclusivamente português. Sabemos, aliás, que o novo filme de Christopher Nolan, Tenet, tem servido de ponto de fuga de todos estes dramas, sendo apontado como um lançamento que poderá impulsionar o regresso de muitos espectadores às salas (a estreia em vários países da Ásia e Europa, incluindo Portugal, ocorrerá na quinta-feira, dia 26). Sem esquecer que esse lançamento tem estado a ser preparado através da reposição de outro filme de Nolan, Inception/A Origem (2010), que entre nós, também no último fim de semana, apenas conseguiu 2413 espectadores em 304 sessões (contas redondas: oito espectadores por sessão).
Espero que o leitor não leia de modo precipitado estas notas: sou também dos espectadores ansiosos por descobrir Tenet e, para lá dos resultados concretos de cada um dos seus filmes, considero Nolan um dos mais ousados experimentadores do cinema contemporâneo (americano ou não). Creio, aliás, que chegou a altura de reconhecermos que nenhuma destas questões se pode descrever — ainda menos compreender — através dos “gostos” seja de quem for. Importa perguntar, isso sim, que cultura cinematográfica dominante se consolidou no mercado das salas ao longo dos últimos anos. Na certeza de que tal pergunta é também (é mesmo sobretudo) comercial: não são os críticos de cinema que definem os parâmetros do consumo cinematográfico, mas sim os distribuidores e exibidores, aplicando os seus legítimos poderes de programação, fazendo as suas escolhas, definindo destaques e omissões.
Digamo-lo, por isso, com todas as letras: ao longo das últimas décadas — repito: não anos, mas décadas —, o mercado tem sido comandado por uma lógica de distribuição/exibição que, no essencial, depende dos chamados “blockbusters”, directa ou indirectamente ligados aos grandes estúdios americanos (alguns absolutamente prodigiosos, não é isso que está em causa).
Acontece que, mesmo com grandes sucessos pelo meio, o comércio, isto é, a cultura dos “blockbusters” não criou uma relação estável com os espectadores. Gerou, isso sim, um laço frágil que decorre apenas das práticas dominantes do “marketing”: investir muito (cada vez mais) nas campanhas para lançar um pequeno número de filmes por ano, secundarizando a promoção de quase todos os outros.
Esperemos que Tenet possa ser um grande sucesso — além do mais, estão em jogo os empregos de muitas pessoas. Em todo o caso, o mais rudimentar bom senso justifica que lembremos que, por mais esmagador que seja esse sucesso, não resolverá, por si só, os desequilíbrios de um mercado que nem sempre tem sabido favorecer a pluralidade de oferta, rentabilizando a diversidade da procura.

quarta-feira, agosto 26, 2020

"Tenet" na China

Tenet está a chegar aos ecrãs de todo o mundo, incluindo a China (hoje, 26 de Agosto, em Portugal). A sua aposta na aventura decorre, afinal, de uma insubstituível conjugação de valores: o gosto da sala escura, o prazer do grande ecrã, o fundamental envolvimento dos sons. É isso mesmo que Christopher Nolan diz aos espectadores chineses neste video que, de alguma maneira, resume a dimensão cultural e comercial de tudo aquilo que está em jogo. A saber: a reconquista da dimensão mais primitiva do espectáculo cinematográfico — por uma vez, graças a Nolan, o marketing convoca-nos para o essencial.

sexta-feira, junho 26, 2020

"Tenet", de Christopher Nolan
— estreia com (mais uma) nova data

A data de estreia inscrita neste poster de Tenet já tinha sido alterada. O lançamento do novo filme de Christopher Nolan — uma aventura "para-além-do-tempo-real" protagonizada por John David Washington e Robert Pattinson —, inicialmente anunciado para 17 de Julho, tinha sido deslocado para 31 do mesmo mês (data ainda citada no site oficial no momento de redacção deste post), ou para a véspera, dia 30, em muitos mercados internacionais. Agora, a Warner Bros. voltou a alterar o seu calendário: Tenet passou a estar agendado para 12 de Agosto.
De acordo com notícia publicada no site The Wrap, a decisão resulta da conjugação de dois factores fundamentais: por um lado, os dados alarmantes da pandemia nas regiões de Nova Iorque e Los Angeles, essenciais do ponto de vista comercial e sem datas seguras para a reabertura das salas; por outro lado, o empenho de Nolan e da Warner em manter Tenet como um objecto de cinema, para ser descoberto num grande ecrã ["coming to theaters", garante o mais recente trailer].
O lançamento de Tenet será precedido da reposição global de alguns títulos de Nolan. No mercado português, o novo calendário é este:

2 Julho – Dunkirk
9 Julho – Interstellar
30 Julho – A Origem
12 Agosto – Tenet


>>> Lista das novas datas de estreia de produções americanas — The Wrap.

quarta-feira, novembro 05, 2014

Debate sobre "Interstellar" [em directo]

Esta é uma imagem do Smithsonian National Air and Space Museum, em Washington. É nas respectivas instalações que se vai realizar um debate sobre Interstellar, de Christopher Nolan, com a participação do realizador e dos actores Matthew McConaughey, Jessica Chastain e Anne Hathaway, além de vários especialistas de ciência do espaço — será hoje, a partir das 22h30 (hora portuguesa), sendo possível seguir o evento através deste link do YouTube.

domingo, agosto 05, 2012

Batman no fim do mundo

Com O Cavaleiro das Trevas Renasce, Christopher Nolan encerra a sua trilogia de Batman circulando por um mundo assombrado pelas suas próprias máscaras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Agosto), com o título 'Máscaras para o fim do mundo'.

Perpassa uma ironia paradoxal na conclusão da trilogia de Christopher Nolan sobre Batman. O herói (Christian Bale) abandonou a máscara, optando pela solidão amarga da sua identidade civil, Bruce Wayne; Bane (Tom Hardy), o vilão que quer destruir Gotham, reconhece o valor simbólico da ocultação: “Ninguém se interessava por mim, até que comecei a usar uma máscara...”. Há uma dimensão dramática nestas palavras, já que a impressionante máscara de Bane (que não impede Hardy de um elaborado trabalho de representação) remete para um passado habitado pela dor. Mas o seu enunciado envolve também uma curiosa lição narrativa: as personagens mais interessantes resistem sempre à sua própria clarificação (velha máxima de Hitchcock: um boa fita precisa de um grande “mau”).
Nolan consegue, assim, um desfecho épico para a sua convivência com o “homem-morcego”: O Cavaleiro das Trevas Renasce garante-nos a vibração própria de uma saga que, mais do que nunca, se assume como espelho barroco dos temas apocalípticos da nossa época, incluindo as convulsões do mundo da finança (a ponto de o filme ousar encenar a ocupação de Wall Street pelo exército de Bane). Mas falta-lhe agilidade para ligar as muitas pontas soltas das suas várias histórias cruzadas. Na prática, deparamos com um drama típico deste tipo de franchises: mesmo quando integram cineastas de indiscutível talento, há nelas um “caderno de encargos” que contraria a fruição das emoções que colocam em jogo.
Afinal de contas, o trabalho de Nolan está todo ele marcado por este pressentimento, estranhamente sensual, de que o mundo se pode desagregar a qualquer momento. O símbolo notável disso mesmo chama-se Memento (2000) e custou 9 milhões de dólares, 27 vezes menos que O Cavaleiro das Trevas Renasce.