Mostrar mensagens com a etiqueta Steven Soderbergh. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Steven Soderbergh. Mostrar todas as mensagens

domingo, fevereiro 23, 2025

Steven Soderbergh
— o cinema na companhia dos fantasmas

Callina Liang a olhar para a câmara: quem anda aí?...

Desde os tempos heróicos de Sexo, Mentiras e Video (1989), Steven Soderbergh é um hábil criador de filmes de pequena produção e grande energia criativa: o mais recente, A Presença, convoca alguns clichés do cinema terror para, por fim, propor uma experiência genuinamente criativa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 fevereiro).

Nos cânones da arte cinematográfica, deparamos muitas vezes com uma sugestiva “explicação” das suas raízes. Assim, liderando os primitivos, os irmãos Lumière ofereceram aos filmes o gosto pela contemplação do mundo à nossa volta, isto é, o realismo; por seu lado, Georges Méliès, ilusionista das imagens e, de facto, inventor dos primeiros efeitos especiais, contrapôs a celebração de alternativas mais ou menos fantasistas. Em boa verdade, é possível circular entre uma coisa e outra, sem ter de escolher uma contra a outra — o novo filme de Steven Soderbergh, A Presença, aí está para ilustrar as delícias dessa dinâmica.
O filme evoca de imediato o cliché mais gasto do cinema de terror das últimas décadas: uma família instala-se numa nova casa dos subúrbios e, claro, há um fantasma a pairar sobre as acções dos humanos... Enfim, mesmo evitando revelar peripécias para lá daquilo que é jornalisticamente razoável, digamos que o cliché começa a ser desfeito a partir da primeira imagem do filme — ao fim de um minuto, antes mesmo de começarmos a conhecer as atribulações internas daquela família, intuímos que o fantasma se está a revelar a cada um de nós, espectadores.


Como? Acontece que o fantasma é... a câmara! Através de um subtil tratamento de enquadramentos e movimentos, Soderbergh nem sequer necessita de “explicar” o que quer que seja. Estamos perante qualquer coisa de sensorial. Acompanhamos o dia a dia daquela família através do olhar da “presença” que o título anuncia e começamos a pressentir duas ou três coisas que estão longe de ser secundárias: a crise que existe entre a mãe, Rebekah (Lucy Liu), e o pai, Chris (Chris Sullivan), incluindo a pouca transparência dos negócios em que ela está envolvida; a arrogância do irmão mais velho, Tyler (Eddy Maday); a fragilidade da irmã, Chloe (Callina Liang), assombrada pelas memórias de uma amiga que morreu.
Tudo isto envolve uma elaborada teia de “suspense”. Não à maneira das vulgaridades do terror que enxameia o mercado, com monstros mais ou menos disformes a berrar na banda sonora. Nada disso: em primeiro lugar, porque, "coincidindo” com o olhar da própria câmara, o monstro é informe, quer dizer, especificamente cinematográfico; depois, porque retomando a lição do velho Hitchcock, Soderbergh sabe que o “suspense” não é a surpresa pela surpresa, nem a vulgaridade do susto, mas o pressentimento — algo de terrível pode sempre acontecer na imagem seguinte.
Há, assim, uma genuína poética do factor humano. Soderbergh encena o quotidiano familiar na sua mais cruel ilusão de harmonia, afinal carente de alguma energia (ou honestidade) capaz de lidar com os fantasmas que o habitam. No limite, Chloe pode mesmo olhar para a câmara à procura de uma verdade sobre-humana...

Cinema minimalista

A Presença aí está como um belo contraponto aos vícios de produção que têm pontuado muitas opções dos estúdios clássicos de Hollywood. E não apenas através da sua sofisticação criativa, também mostrando que é possível gastar infinitamente menos dinheiro e fazer grande cinema: o orçamento de 2 milhões de dólares (pouco mais de 1,9 milhões de euros) é mesmo ridiculamente baixo, até para o panorama europeu de produção.
Soderbergh, convém recordar, é um ágil criador das mais contrastadas matrizes de produção. Afinal de contas, ele é também o autor da notável série de aventuras iniciada com Ocean’s Eleven (2001), protagonizado por George Clooney e Brad Pitt. O certo é que, desde a sua estreia com Sexo, Mentiras e Video (Palma de Ouro de Cannes/1989), Soderbergh tem sabido montar os mais diversos projectos minimalistas. Lembremos apenas o exemplo de Distúrbio (2018), com Claire Foy, outra derivação brilhante a partir das regras do terror — com ele, as regras viram excepções.

domingo, janeiro 26, 2025

Soderbergh, Presence

Aventuras minimalistas? Assim se apresenta o novíssimo filme de Steven Soderbergh, Presence. Com argumento de David Koepp e música de Zack Ryan, chega a 6 de fevereiro às salas portuguesas — eis o trailer e o tema-título.
 


sexta-feira, setembro 10, 2021

"The Walking Dead"
— o pesadelo colectivo (2/3)

Poster da 1ª temporada

Começou como a adaptação de uma banda desenhada e transformou-se num fenómeno global: a série televisiva The Walking Dead resistiu mais de uma década: a 11ª temporada chegou a Portugal no dia 23 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 agosto), mantendo-se aqui a referência ao dia 23 como uma data "posterior".

[ 1 ]

Esta seita de humanos [Whisperers] que resistem aos zombies disfarçando-se de zombies revelou-se, no plano dramatúrgico, uma frutuosa invenção. Desde logo, porque permitiu contornar alguma rotina em que a série corria o risco de estagnar; depois, porque potenciou uma viragem decisiva no próprio universo dramático de The Walking Dead.
Assim, a pouco e pouco, os zombies não desapareceram (longe disso, até porque os respectivos efeitos especiais foram sendo cada vez mais sofisticados), mas passaram a existir como uma espécie de assombramento global: a sua ameaça tornou-se o pesadelo colectivo que, em última instância, determina as relações de poder entre os diversos grupos humanos.
Tudo começou com os resistentes liderados pelo xerife Rick Grimes, papel que garantiu ao actor Andrew Lincoln o estatuto de estrela televisiva planetária. A sua “solidão” face aos zombies viria a ser transfigurada pelo aparecimento de novas comunidades. Primeiro, foi o grupo do “Governador” (David Morrissey) nas terceira e quarta temporadas; depois, veio o abalo de Negan, líder hiper-violento, afinal uma ameaça que “veio para ficar” — sabe-se que, de uma maneira ou de outra, estará presente na 11ª temporada, confirmando o seu intérprete, Jeffrey Dean Morgan, como outro dos rostos universais da saga. Aliás, Negan pode servir de eloquente ilustração de um célebre axioma cinematográfico que Alfred Hitchcock gostava de aplicar: “Quanto melhor for o vilão, melhor é o filme”.
Nos últimos tempos, não têm faltado as hipóteses de paralelismos “premonitórios” da série em relação ao Covid-19… Há uma evidente sedução nessa renovada ideia da ficção como algo que “antecipa” a realidade que vivemos, mas convenhamos que tal sugestão não é mais nem menos pertinente do que a evocação de muitos filmes sobre a humanidade face a ameaças virais, de A Ameaça de Andrómeda (1971), de Robert Wise, inspirado no romance de Michael Crichton, até Contágio (2011), de Steven Soderbergh.
Sem esquecer, claro, que a inspiração da série não é estranha a toda uma tradição do género de terror que pontua as mais diversas cinematografias, de Hollywood à produção asiática. Lembremos apenas dois títulos cujas matrizes têm sido infinitamente exploradas: I Walked with a Zombie (título português: Zombie), objecto típico da produção de série B, lançado em 1943, assinado por um dos seus mestres, Jacques Tourneur; e A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero, filme de 1968 que, por assim dizer, definiu o cânone da “era moderna” dos zombies (sendo Romero, precisamente, um dos seus mais empenhados criadores).
Que está, então, em jogo? Na prática, uma viragem simbólica que faz de The Walking Dead um objecto bem diferente dos clichés do terror (sobretudo cinematográfico) que, nas últimas décadas, têm saturado os ecrãs de todo o mundo. Estamos perante uma ficção apocalíptica enredada num sugestivo paradoxo: por um lado, os sinais quotidianos pertencem a um tempo vagamente futurista, mas em tudo e por tudo próximo do nosso presente; por outro lado, a lógica narrativa está marcada pelas tensões (individuais e colectivas) típicas de um “western”. Afinal de contas, Rick é mesmo um xerife. Um dos posters de lançamento da série propunha um magnífico arranjo simbólico: numa auto-estrada com uma grande metrópole em fundo (mais ou menos “novaiorquina”), estão parados centenas de veículos; do lado oposto da auto-estrada, sozinho, não num automóvel, mas no seu cavalo, Rick segue em relação à cidade.

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Clint Eastwood, cineasta realista (2/2)

O novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, não foi, estranhamente, mostrado à imprensa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'A implosão de Hollywood'.

[ 1 ]

Tempos estranhos na vida dos filmes. Em vários países — incluindo Portugal, França e Brasil —, o novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, não foi previamente mostrado à imprensa. O carácter excepcional desta medida (nas últimas décadas, há muito poucos exemplos semelhantes) justifica que expressemos, no mínimo, uma triste perplexidade. Quanto mais não seja porque a ela se cola uma pergunta incontornável: será que a indústria de Hollywood, cada vez mais marcada pelas formatações impostas pelos filmes de super-heróis, já se dá ao luxo de menosprezar o trabalho de alguém como Clint Eastwood?
Não se trata, entenda-se, de especular sobre as “culpas” dos distribuidores daqueles países: a decisão provém da origem, isto é, dos estúdios da Warner Bros. e nem sequer reflecte qualquer princípio de “globalização” (The New York Times e alguns outros jornais americanos publicaram críticas ao filme antes da respectiva data de estreia nos EUA). Acontece que há qualquer coisa de absurdo quando um tão poderoso sistema industrial opta por não divulgar o trabalho de uma personalidade que marca o último meio século de Hollywood e que, salvo melhor opinião, continua a ser um dos seus ícones mais universais (e também mais rentáveis, vale a pena acrescentar).
Será que um episódio deste género significa que estamos perante uma indústria que já nem sequer sabe valorizar a sua fascinante diversidade interna? Nos últimos anos, algumas vozes têm chamado a atenção para o facto de Hollywood, ao privilegiar os modelos dos “blockbusters” de super-heróis, correr riscos de implosão. Entre tais vozes estão Steven Spielberg, George Lucas, Steven Soderbergh e Jodie Foster. Posso estar enganado, mas não creio que sejam jornalistas ou críticos de cinema.

quinta-feira, fevereiro 08, 2018

Sharon Stone — ser ou não ser uma estrela

Através da série Mosaic, de Steven Soderbergh, Sharon Stone reaparece na linha da frente do audiovisual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Fevereiro), com o título 'Renasceu uma estrela'.

Sharon Stone é uma sobrevivente. Em Hollywood, entenda-se, no interior daquilo que, desde a idade de ouro do cinema clássico americano, nos habituámos a designar por “star system”. Tal como Tom Cruise entre os homens, ela continua a ser uma estrela que não simboliza mais nada a não ser o próprio cinema e o seu fascínio. E convenhamos que tais estrelas são uma raça em extinção.
Pensando em Gal Gadot, por exemplo, não será também uma estrela de cinema? Não conseguiu ela, em 2017, graças ao impacto de Wonder Woman, triunfar numa zona de espectáculo (as aventuras de super-heróis), tradicionalmente dominada pelo género masculino? Sim, sem dúvida, daí que Gadot seja, muito justamente, uma das estrelas do momento. Mas será que ainda é uma estrela... de cinema?
Ou apenas o símbolo de um combate que passa pelos filmes mas que, em boa verdade, os transcende?
A trajectória de Stone está toda ela marcada pelo impacto de Instinto Fatal (1992), um objecto capaz de relançar a velha máxima de Hollywood: “Nasceu uma estrela”. E convenhamos que não é fácil sobreviver à pressão, de uma só vez industrial e mediática, para “reproduzir” a imagem aí definida.
Encontramos na filmografia de Stone de tudo ou pouco, desde os filmes banalmente “instrumentais” da sua fama até experiências de genuíno fulgor criativo, sendo inevitável destacar o prodigioso Casino (1995), de Martin Scorsese. A sua participação em Mosaico, de Steven Soderbergh, é mais uma dessas experiências, não por acaso sob o olhar de um cineasta que gosta de experimentar as novidades tecnológicas, mas que nunca secundarizou o trabalho dos (e com os) actores. Mais do que isso: Soderbergh é dos que, mesmo quando se move num contexto televisivo, não abdica de trabalhar o cinema como uma linguagem específica, enraizada num património de mais de cem anos. Aguarda-se, por isso, com especial expectativa a sua nova realização, protagonizada por Claire Foy: chama-se Unsane, anuncia-se como um “thriller” e foi rodado com um iPhone.

sexta-feira, fevereiro 02, 2018

Soderbergh filma com iPhone

Claire Foy interpreta uma mulher que é internada numa instituição para doentes mentais, contra sua própria vontade... Ou será que ela é mesmo um espírito afectado por uma loucura sem solução? Velho dispositivo de terror que Steven Soderbergh se propõe reinventar com Unsane, aliás começando por experimentar um modo radical de produção: as filmagens foram feitas com um iPhone — a estreia americana está marcada para 23 de Março.

terça-feira, novembro 21, 2017

O sexo segundo Hollywood

Howard Hughes, aliás, Warren Beatty
Assim vai o mundo do cinema: o mais recente e prodigioso filme de Warren Beatty, Rules Don't Apply, não chegou às salas de cinema portuguesas... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Novembro).

Warren Beatty realizou um dos filmes mais extraordinários de 2017: chama-se Rules Don’t Apply e coloca em cena a figura verídica do bilionário Howard Hughes (1905-1976), interpretado pelo próprio Beatty. O essencial tem a ver com o romance entre uma candidata a actriz, Marla (Lily Collins), e um dos motoristas de Hughes, Frank (Alden Ehrenreich). Em várias entrevistas, o actor/realizador foi claro na caracterização do seu trabalho: “Não se trata de uma biografia de Howard Hughes — é antes um filme envolvido com aquilo que eu chamaria as consequências cómicas, por vezes tristes, do puritanismo sexual da América no final dos anos 50, princípios dos anos 60.”
Em boa verdade, quase ninguém deu atenção ao propósito de Beatty. Estreado sem qualquer pompa, Rules Don’t Apply foi um desastre comercial nos EUA, sendo de imediato “castigado” com a supressão do seu lançamento em quase todo o mundo, surgindo nas salas de apenas seis países (três na Europa: Espanha, Itália e Reino Unido). Entre nós, pelo menos, está a passar no canal TV Cine & Séries, com o título Excepção à Regra.
O caso envolve uma lição exemplar: filmar a sexualidade para além dos padrões dominantes num determinado momento histórico envolve um preço elevado, nem que seja a marginalização dos circuitos de distribuição/exibição. E, no entanto, encontramos na produção de Hollywood muitas e fascinantes abordagens do sexo, seus medos e fantasmas. Para nos ficarmos por apenas alguns exemplos, lembremos como a sexualidade se expõe nas tensões indivíduo/sociedade em filmes admiráveis como Um Lugar ao Sol (George Stevens, 1951), A Última Sessão (Peter Bogdanovich, 1971), Sexo, Mentiras e Vídeo (Steven Soderbergh, 1989), Estrada Perdida (David Lynch, 1997) ou Fur – Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (Steven Shainberg, 2006).
Com uma inteligência plena de ironia, Beatty retoma essa herança, expondo Hughes, lendário produtor de cinema e industrial de aviação, como rei e peão, patrão e escravo de um xadrez sexual dominado pelos discursos masculinos. E não é das menores maravilhas de Rules Don’t Apply o modo como é encenada a história de Marla, protagonizando uma saga pessoal de conquista do seu próprio discurso, em paralelo com a tocante decadência física de Hughes, assombrado pela dependência de drogas. Para Beatty, enfim, tratava-se de evocar a época em que ele próprio chegou a Hollywood. Tanto pior se o nosso tempo não quer lidar com o seu filme — o futuro tornará claro o génio criativo de Rules Don’t Apply.

domingo, setembro 17, 2017

Soderbergh ou o gosto da independência (2/2)

Steven Soderbergh está de volta com um filme que celebra a pura alegria do espectáculo, relançando o seu gosto da independência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o tíyulo 'Soderbergh celebra as aventuras dos "maus da fita"'.

[ 1 ]

Descobrir um filme como Sorte à Logan é uma festa (enfim, descontando o título português...). Apetece dizer que Steven Soderbergh possui a audácia necessária e suficiente para merecer a sorte que tem. Quando surgiu no Festival de Cannes, em 1989, contava 26 anos, ninguém sabia de onde vinha aquele independente “made in USA” — o certo é que trazia um cartão de visita com um título de muitas ressonâncias simbólicas, Sexo, Mentiras e Vídeo, e... arrebatou a Palma de Ouro.
Depois, já o vimos a dirigir coisas magníficas como Erin Brockovich (2000), Traffic (2000) ou O Bom Alemão (2006) e o certo é que, mesmo quando teve à sua disposição orçamentos consideráveis (Ocean’s Eleven custou 85 milhões de dólares), continuámos a encará-lo como símbolo exemplar da mesma independência. Porquê? Porque a sua estratégia não consiste em demonizar os grandes estúdios, mas em trabalhar para que o seu sistema acolha a diversidade criativa que ele próprio personifica como poucos.
O caso de Sorte à Logan é duplamente exemplar: primeiro, porque não é todos os dias que descobrimos um cineasta com tão sofisticado talento narrativo a fazer um filme com verdadeiras personagens, sustentadas por talentosos actores, sem depender de confusões visuais fabricadas por departamentos de efeitos especiais; depois, porque, desta vez, Soderbergh apostou em distribuir o seu filme no mercado americano também de forma independente (tendo mesmo criado uma empresa, Fingerprint Releasing, para tal fim). Do ponto de vista financeiro, os resultados são, para já, interessantes, sem serem espectaculares. Seja como for, o gesto de Soderbergh envolve um desafio que, sendo comercial, é também visceralmente artístico: Hollywood pode não ser um rótulo, mas sim um modelo de criatividade.

domingo, setembro 10, 2017

Soderbergh ou o gosto da independência (1/2)

Steven Soderbergh está de volta com um filme que celebra a pura alegria do espectáculo, relançando o seu gosto da independência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o tíyulo 'Soderbergh celebra as aventuras dos "maus da fita"'.

Aventuras? Personagens que não sejam bonecos digitais, mas verdadeiros actores? Um roubo épico que se transforma num turbilhão de contagiante humor? Dir-se-ia que, nesse domínio, o Verão cinematográfico não tem sido muito compensador: a um “blockbuster” mais ou menos inter-galáctico segue-se outro, formatado e repetitivo, que mais parece um resto do primeiro... Tudo acompanhado por ruidosas campanhas televisivas e grande cartazes de rua. Ainda assim, nem tudo está perdido. O veterano Steven Soderbergh oferece-nos um espectáculo, limpo e inventivo, para salvar a estação: chama-se Logan Lucky. Apesar de ter recebido um título português de confusa sonoridade — Sorte à Logan —, ele aí está, celebrando o mais primitivo e contagiante gosto de artifício.
Quem viu Ocean’s Eleven (2001) e as suas sequelas, Ocean’s Twelve (2004) e Ocean’s Thirteen (2007), imediatamente reconhecerá o jogo proposto por Soderbergh: trata-se de contar a história de um golpe “impossível”. Logo no primeiro desses filmes, George Clooney e Brad Pitt roubavam, em simultâneo, três casinos de Las Vegas; agora, a quadrilha montada pelos irmãos Logan, interpretados por Channing Tatum e Adam Driver, aposta em roubar as receitas acumuladas durante uma das principais corridas de automóveis do circuito NASCAR (“A Sorte dos Irmãos Logan” teria sido um título francamente mais linear e apelativo).
As fontes de inspiração de Soderbergh têm menos a ver com a crueza trágica que desemboca em filmes como Cães Danados (1992), de Quentin Tarantino, e mais com um certa ironia, misto de distanciamento e elegância, que provém de produções dos anos 70 como O Grande Golpe (1972), de Peter Yates, ou A Golpada (1973), de George Roy Hill — ambos, curiosamente, com Robert Redford. Todas as peripécias, das mais inesperadas às mais surreais, decorrem da acção de um grupo, nem sempre muito brilhante na execução dos seus planos, mas movido por uma solidariedade sem mácula. Velho paradoxo da parábola policial: o espectador é levado a experimentar o prazer ambíguo de se sentir cúmplice dos “maus da fita”.


Tudo isto resulta também de um sentido de paródia e, sobretudo, auto-paródia que passa pelo trabalho dos actores — depois de Magic Mike (2012) e Efeitos Secundários (2013), Channing Tatum tornou-se um excelente emblema desse trabalho. Agora, o caso de Daniel Craig será o mais insólito e também o mais divertido. Para interpretar um especialista em arrombar cofres (que dá pelo nome eloquente de Joe Bang), o actual intérprete de James Bond surge com o cabelo muito curto, pintado de branco, distanciando-se de qualquer “imagem de marca”. Para acentuar a sua reconversão figurativa, no genérico Soderbergh identifica-o mesmo como o “estreante” Daniel Craig.
Enfim, convém não esquecer que, como sempre, Soderbergh é um metódico encenador das figuras femininas, sabendo apresentá-las contra os próprios clichés que, eventualmente, possam convocar. Observem-se as composições Riley Keough, a irmã “kitsch” do clã Logan, ou Hilary Swank, assumindo uma agente do FBI, cinzenta e implacável, ma non troppo. Isto sem esquecer a pequena Farrah Mackenzie, interpretando a filha de Channing Tatum: a abertura do filme, em que ela filosofa com o pai enquanto lhe vai passando as ferramentas para arranjar o carro, é uma cena de antologia.

segunda-feira, agosto 18, 2014

Soderbergh na televisão

Steven Soderbergh volta a trabalhar com Cliff Martinez, o compositor que para ele já assinou uma dezena de bandas sonoras, de Sexo, Mentiras e Video (1989) a Contágio (2011). Desta vez, com uma diferença importante: Martinez é autor da banda sonora de The Knick, série televisiva que Soderbergh realiza a 100% — dez episódios, o primeiro dos quais emitido a 8 de Agosto no canal americano Cinemax.
The Knick é a designação corrente do Knickerbocker Hospital, instituição (fictícia) de Nova Iorque, onde no princípio do século XX se realizam experiências anestésicas com os novos opiáceos, sob a liderança do Dr. John Thackery, interpretado por Clive Owen e parcialmente inspirado na figura histórica de William Stewart Halsted — o trailer é, no mínimo, sugestivo [video]; e a banda sonora de Martinez [som de um dos temas] mostra a sua fidelidade às mais sofisticadas electrónicas.



quinta-feira, setembro 26, 2013

E a televisão deu uma bofetada no cinema


Hoje, na minha coluna semanal no site Dinheiro Vivo falo do filme ‘Por Detrás do Candelabro’ e da recente premiação dos Emmys que fez deste um caso digno de alguma reflexão.

Ali digo: “Steven Soderbergh, Michael Douglas, David Fincher, Jeff Daniels, Claire Danes... Todos eles de prémios na mão... Pois, estamos em setembro e os Oscares são no inverno... Todos foram, na verdade, vencedores de categorias distintas na edição deste ano dos Emmys, os “óscares da TV americana”. E numa só noite a ficção televisiva deu uma bofetada a Hollywood.”

Podem ler aqui o texto completo.

quarta-feira, setembro 25, 2013

Por detrás da exuberância: a solidão


Este texto integrou um trabalho maior sobre a estreia do filme 'Por Detrás do Candelabro', de Steven Sooderbergh', publicado originalmente nas páginas do DN. 

Foi projetado pela televisão e fez carreira de sucesso nos palcos de Las Vegas, mas na verdade o pianista que chegou a ser o entertainer mais bem pago do mundo não era senão um solitário assombrado pelo peso que a sua própria fama havia criado em torno da sua imagem. Ele era aquela figura exuberante que se mostrava com longos casacos de peles, camisas de folhos, transportado num Rolls Royce especialmente decorado ou atuando com um candelabro, ao jeito de um palácio dos tempos do Antigo Regime, sobre o seu piano. Mas, tal e qual nos mostra agora o filme Por Detrás do Candelabro, de Steven Sodrebergh, Liberace era afinal um homem amargurado e perdido entre sucessivas relações com finais infelizes, sempre escondendo de tudo e todos a natureza da sua sexualidade.

Com o argumento de que era um projeto “demasiado gay” alguns estúdios de Hollywood declinaram produzir o filme que hoje chega às salas de cinema portuguesas. Numa altura em que os Estados Unidos têm um presidente que defende inclusivamente a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo, esse “argumento” parece coisa dos dias em que Liberace era o paradigma do excesso visual do showbusiness abalado pelas alegações de homossexualidade que chegaram a passar pela imprensa (gerando até processos em tribunal) e respondendo com artigos cor-de-rosa onde falava da sua mulher ideal. Uma delas sendo, como o filme evoca, a patinadora-superstar norueguesa Sonja Henie.

Produzido sob a égide do canal de televisão HBO, mas curiosamente apresentado em competição no Festival de Cannes, Por Detrás do Candelabro não corre o era uma vez da história pessoal e artística de Liberace. Opta antes, e tomando como referência a memória biográfica Behind the Candelabra: My Life with Liberace, por mergulhar nos espaços da sua vida privada. Escrito por Alex Thorleifson e Scott Thorson (que teve uma relação amorosa com o pianista), o livro conduz assim o filme para um tempo específico (finais dos anos 70) em que a vida de Liberace se transformara numa rotina de espetáculos em Las Vegas para plateias que ali reconheciam o homem que, quando tocava na televisão, parecia que falava mesmo para cada um dos espectadores.

Com um cuidado extremo na criação do guarda-roupa (que segue à risca modelos que Liberace usou) e recriando os espaços de luxo barroco nas salas da sua mansão, o filme assinala os jogos de contrastes entre estes cenários sumptuosos tantas vezes fotografados e o modo escondido como o músico respirava a sua instável vida sentimental. A figura de Scott Thorson é aqui recriada por Matt Damon, ator que esteve a bordo deste projeto de Steven Soderbergh desde que o realizador pensou em partir das memórias pessoais do antigo companheiro de Liberace para dali fazer nascer o argumento do filme. Michael Douglas, que veste a pele do protagonista, juntou-se ao elenco um ano depois. E, como os demais envolvidos no projeto, esperaram anos a fio até que chegasse a bom porto.

Figura única na história do showbiz americano, artista que dividiu opiniões, Liberace é hoje um ícone de culto algo distante da estrela mainstream que em tempos foi. Nos últimos 25 anos saíram vários livros sobre a sua vida e obra, em alguns deles sublinhando-se o facto de se ter transformado numa figura de referência da história da cultura queer. Por Detrás do Candelabro reforça, com um filme em tudo notável, a celebração dessa face outrora escondida de um artista que teve tanto de estranho como de único.

terça-feira, abril 09, 2013

Liberace por Soderbergh

Entertainment Weekly
A história agitou as águas de Hollywood: depois de considerado "demasiado gay" por alguns estúdios, o filme de Steven Soderbergh sobre Liberace (1919-1987) acabou por "cair" na... televisão: Behind the Candelabra, baseado no livro Behind the Candelabra: My Life With Liberace, de Scott Thorson, tem chancela da HBO e terá a sua primeira emissão nos EUA a 26 de Maio (algumas especulações sugerem que a primeira apresentação europeia poderá acontecer no Festival de Cannes). Com Michael Douglas e Matt Damon, respectivamente nos papéis de Liberace e Thorson, Behind the Candelabra surge, desde já, num magnífico trailer.

segunda-feira, março 11, 2013

O mundo segundo Soderbergh

Rooney Mara
Com o seu novo filme, Efeitos Secundários, Steven Soderbergh volta a mostrar como é, e porque é, o mais independente dos cineastas da grande indústria americana — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Um independente no coração de Hollywood'.

Assim rezam as crónicas: aos 50 anos, Steven Soderbergh está a pensar encerrar a sua actividade como cineasta. Ou, pelo menos, como realizador de filmes para cinema: Efeitos Secundários será o seu derradeiro trabalho para exibição nas salas escuras, já que ele se diz mais interessado em dedicar-se à ficção televisiva (tem, aliás, em fase de acabamento o telefilme Behind the Candelabra, sobre o cantor Liberace) ou a outras actividades criativas como a pintura.
Em boa verdade, nos últimos anos, Soderbergh tem evocado esta hipótese com regularidade. Seja como for, Efeitos Secundários não exibe, nem de longe nem de perto, o tom de uma obra terminal, muito menos de um testamento. Estamos perante um dos domínios em que o cineasta tem revelado um peculiar requinte narrativo: o thriller com componentes mais um menos românticas que, a pouco e pouco, se vai transfigurando em crónica implacável sobre os bastidores da política ou da economia.
Por isso mesmo, não é fácil resumir as peripécias do filme sem correr o risco de revelar alguma das elaboradas surpresas que o argumento nos reserva. Simplificando, digamos que se trata da história de uma mulher (Rooney Mara) cujo marido (Channing Tatum) acaba de cumprir uma pena de prisão; na sequência de uma tentativa de suicídio da protagonista, o psiquiatra (Jude Law) que a acompanha receita-lhe medicamentos para a depressão que, como o título sugere, começam a gerar inquietantes efeitos secundários...
Pela sua teia de personagens, e também pelo labirinto de verdades e mentiras que condiciona os respectivos comportamentos, Efeitos Secundários é um parente próximo de outros títulos do autor, incluindo The Limey/O Falcão Inglês (1999), centrado na vingança de um inglês nos bastidores do crime em Los Angeles, Traffic/Ninguém Sai Ileso (2000), tendo por pano de fundo o circuito das drogas na fronteira EUA/México, e Contágio (2011), sobre uma epidemia que nenhuma fronteira, geográfica ou política, parece poder estancar. Tal como na sua célebre longa-metragem de estreia, Sexo, Mentiras e Video (1989), pode dizer-se que Soderbergh filma grupos humanos confrontados com a ameaça de desmoronamento dos valores e regras que os sustentam ou legitimam. Mesmo nos seus trabalhos habitualmente considerados mais “comerciais”, como é o caso da sofisticada série iniciada com Ocean’s Eleven/Façam as Vossas Apostas (2001), o seu cinema pode ser definido como uma galeria paradoxal do género humano, dos seus muitos rostos e fantasmas.
A capacidade de adaptação às mais diversas plataformas de produção constitui, afinal, um dos traços distintivos da trajectória de Soderbergh. Por um lado, ele é um símbolo exemplar da produção independente made in USA, tendo conseguido fazer Sexo, Mentiras e Video pelo orçamento minimalista de 1,2 milhões de dólares; por outro lado, nunca abandonado o coração de Hollywood, tem trabalhado também com valores de produção muitíssimo mais elevados, não poucas vezes dirigindo grandes estrelas como Brad Pitt, George Clooney ou Julia Roberts (que ganhou mesmo o Oscar de melhor actriz, em 2001, com Erin Brockovich, uma realização de Soderbergh).
O espírito independente do cineasta reflecte-se, enfim, na sua lendária versatilidade. Assim, por exemplo, Efeitos Secundários é a sua 16ª longa-metragem com direcção fotográfica de Peter Andrews e a 7ª cuja montagem surge assinada por Mary Ann Bernard. Quem são Peter Andrews e Mary Ann Bernard?... Pois bem, apenas pseudónimos de um senhor chamado Steven Soderbergh.

terça-feira, fevereiro 12, 2013

Berlinale 2013 (dia 6)

Dia fortíssimo hoje em Berlim, com a passagem de Pardé, o novo filme do realizador iraniano Jafar Panahi, co-assinado por Kamboziya Partovi. O dia de hoje será ainda assinalado pelas passagens de Camille Claudel 1915, o novo filme de Bruno Dumond e por Side Effects, um dos dois novos filmes que Steven Soderbergh vai apresentar este ano (o outro, sobre a figura de Liberace, estando com estreia apontada ao canal televisivo HBO).

Entretanto podem ler aqui o que o Guardian publicou sobre Maladies, de Carter, e aqui sobre The Spirt of 45, de Ken Loach, filmes que passaram já por esta edição da Berlinale.

quarta-feira, janeiro 16, 2013

Liberace: o filme (aliás, telefilme)

Parece Liberace, mas é Michael Douglas a interpretar... Liberace [ver foto mais pequena]. A imagem pertence a Behind the Candelabra, filme de Steven Soderbergh que, depois de sucessivas recusas dos estúdios de cinema, se transformou numa produção da HBO — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'O filme gay de Steven Soderbergh'.

Notícia da última semana: Behind the Candelabra, o projecto biográfico de Steven Soderbergh sobre o pianista e cantor Liberace (1919-1987), adaptado do livro do seu companheiro Scott Thorson (n. 1958), não terá apoio financeiro de qualquer estúdio de Hollywood. Segundo o próprio Soderbergh (ver, por exemplo, a edição de 7 de Janeiro de The Guardian), a produção tentou todas as hipóteses mas, apesar do valor baixíssimo do orçamento (5 milhões de dólares, menos que muitos filmes independentes), os estúdios recusaram sempre, evocando a dificuldade que representaria promover um filme “demasiado gay”... Entretanto, Behind the Candelabra está a ser feito para televisão, com chancela da HBO, e deverá ser emitido nos EUA no mês de Fevereiro.
Reparem: não pretendo, nem de longe nem de perto, alimentar o discurso anti-Hollywood, automático e ressentido, que sempre andou por aí. Primeiro, porque considero o cinema americano como um dos mais plurais e fascinantes de todo o planeta; segundo, porque a sua diversidade passa (e passa de forma decisiva) pelos estúdios de Hollywood. O que está em causa é uma forma de encarar a abordagem da homossexualidade a partir de uma bizarra métrica temática. Assim, para os pontos de vista que rejeitaram o filme de Soderbergh, a representação de personagens ou relações homossexuais deve obedecer a uma espécie de “razoabilidade” narrativa: há os filmes gay, mas há também os filmes “demasiado” gay...
Prevalece o mesmo primarismo que, ciclicamente, se renova a propósito dos filmes “violentos”. Podemos, aliás, observar tal fenómeno em torno do notável Django Libertado, de Quentin Tarantino (estreia: 24 Janeiro): para algumas vozes americanas, há “demasiada violência” na representação do tema envolvido (a escravatura na América de finais do século XIX). Entre nós, por exemplo, valeria a pena discutir o facto de a representação das relações heterossexuais no espaço das telenovelas ser todos os dias demasiado primária, demasiado moralista, demasiado estúpida... Mas que, algures, haja um homossexual em cena, eis o que atrai logo os polícias dos bons costumes narrativos: não se estará a ir longe demais, perguntam eles?
Não simplifiquemos ainda mais. E, sobretudo, não desliguemos a questão de uma postura eminentemente cinematográfica. Na verdade, Soderbergh continua a ser um admirável cineasta “não-alinhado”, trabalhando com o mesmo talento e a mesma serenidade no coração de Hollywood (veja-se a brilhante série de filmes iniciada, em 2001, com Ocean’s Eleven) ou nos espaços mais singulares dos independentes. Foi daí, aliás, que surgiram os seus dois títulos lançados em 2012: Haywire, um notável policial “feminista”, e Magic Mike, retrato desconcertante dos bastidores dos espectáculos masculinos de striptease. Sintomaticamente, nenhum deles está na corrida para os Oscars. São, por certo, demasiado... qualquer coisa.

terça-feira, julho 17, 2012

Channing Tatum & Steven Soderbergh

Channing Tatum é uma das forças emergentes no actual cinema americano, sendo o seu trabalho com Steven Soderberg, em Magic Mike, um momento decisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Julho), com o título 'Channing tatum revisita o seu passado de "stripper"'.

Channing Tatum é um dos mais desconcertantes fenómenos do recente cinema americano. Nascido em Cullman, Alabama, em 1980, transformou-se em poucos anos num misto de vedeta e figura de culto, movendo-se com agilidade entre o típico “filme de acção” e algumas aventuras mais ou menos românticas. O seu maior sucesso, G.I. Joe: O Ataque dos Cobra (2009) é o retrato delirante, recheado de efeitos especiais, de um grupo de soldados de elite. Mas vimo-lo também nos cenários suburbanos do musical Step Up (2006), ou ainda nas paisagens líricas de Juntos ao Luar (2010), adaptado de um “best-seller” de Nicholas Sparks. Até agora, o seu título de maior prestígio foi Inimigos Públicos, um retrato do gangster John Dillinger, com assinatura de Michael Mann e um elenco de luxo, incluindo Johnny Depp, Christian Bale e Marion Cotillard (Tatum interpretava a personagem do lendário assaltante de bancos Pretty Boy Floyd).
Entretanto, Channing Tatum parece ter encontrado no realizador Steven Soderbergh um aliado de peso. Primeiro, Soderbergh integrou-o no elenco de Haywire (2011), um sofisticado policial com Gina Carano e Michael Fassbender, entre nós estreado com o título Uma Traição Fatal. Já em 2012, os nomes de Soderbergh e Tatum surgiram de novo associados em Magic Mike, para já um dos mais desconcertantes sucessos de bilheteira da produção americana do corrente ano: tendo custado apenas 7 milhões de dólares (cerca de 5,7 milhões de euros), o filme já rendeu perto de 80 milhões nas salas dos EUA.
A novidade de Magic Mike é a sua dimensão autobiográfica. O filme faz a crónica do quotidiano de Mike Lane, um empregado da construção civil em Tampa, Florida, que à noite se transfigura no exuberante “Magic Mike”, estrela de um clube de strippers masculinos. De facto, trata-se de uma personagem directamente inspirada nas experiências de Tatum que, aos 19 anos, trabalhou num espaço semelhante, também na cidade de Tampa.
Desde o anúncio do projecto, em 2010, muitos terão pensado que se tratava de uma visão mais ou menos burlesca de um universo tantas vezes descrito como exclusivamente feminino. Na verdade, os resultados são bem diferentes, já que a visão de Soderbergh, visceralmente dramática, recusa qualquer tipo de caricatura: há nele um continuado empenho em retratar uma América insólita e “esquecida”, distante dos estereótipos ideológicos ou morais. Entretanto, Tatum está a trabalhar de novo sob a direcção de Soderbergh em The Bitter Pill, um thriller psicológico com estreia agendada para Fevereiro de 2013.

"Magic Mike": o sexo, aliás, o dinheiro

Com Magic Mike, Steven Soderbergh aborda um ambiente, no mínimo, insólito: um espectáculo de strippers masculinos para um público feminino... Nada a ver com as monstruosidades correntes das especulações (tele)mediáticas. Em boa verdade, o motor da acção é a circulação do dinheiro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Julho), com o título 'Os novos "proletários" do sexo'.

O imaginário sexual está ferido por duas poderosas entidades: por um lado, a televisão que alimenta programas em que qualquer centímetro de nudez da coxa de um famoso (não estou, sequer, a inventar...) pode ser pretexto para questionar a estabilidade do sistema solar; por outro lado, uma imprensa dita “cor-de-rosa” (mas de muito baço respeito pela dignidade humana) que descreve as relações sexuais como se fossem narrativas intermutáveis de um estúpido reality show.
Dito isto, que não é banal nem inconsequente (porque ocupa gigantescas zonas do espaço social), seria talvez inevitável que nos questionássemos sobre o modo de abordagem da sexualidade num filme como Magic Mike. Estamos perante um universo de strippers masculinos que representam para um público feminino. Não se trata apenas de um “desvio” em relação ao estereótipo (mulheres que se despem, dançando, para uma plateia de homens), mas também de um desconcertante enigma: afinal de contas, quando aqueles homens estão em palco, quais as conotações sexuais de tudo aquilo?
Simplifiquemos, já que o brilhantismo de Steven Soderbergh provém da capacidade de chamar as coisas pelo seu nome. Qual era a moral da sua primeira longa-metragem, Sexo, Mentiras e Vídeo (1989)? Pois bem, que o vídeo transfigurava a percepção do sexo, gerando mentiras. No caso de Magic Mike, assistimos ao metódico esvaziamento da sexualidade: exuberantemente teatral, é um facto, mas também afectivamente nula.
Soderbergh filma o trabalho em série das personagens à procura da sua sobrevivência económica, quer dizer, a gélida circulação do dinheiro – se ainda existe um cinema “proletário”, é aqui que o podemos encontrar. Apetece parafrasear o mestre Lacan: “A relação sexual não existe”.

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

BERLIM 2012: Soderbergh, com nostalgia

Quem seria capaz de contar uma história de raptos e vinganças, numa teia que ultrapassa as "tradicionais" agências secretas, para mais dando o papel central a uma mulher, Gina Carano, uma estrela das... artes marciais made in USA? E ainda: quem saberia cozinhar tudo isso preservando um militante gosto cinéfilo pelas delícias estilísticas da mais clássica "série B"? No actual contexto de Hollywood, a resposta talvez só possa ser uma: Steven Soderbergh. Extra-competição na Berlinale, o novo filme de Soderbergh, Haywire, é uma magnífica peça nostálgica que, contra os meninos irresponsáveis que julgam que fazer cinema é filmar "à telemóvel", revaloriza o espaço, o tempo e a imaculada duração de cada plano. Tudo temperado pelo mais sarcástico feminismo, friamente assumido pela impecável Carano.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Realismo, realismos

O realismo continua a manifestar-se na sua magnífica pluralidade: neste caso vindo de terras americanas e britânicas – este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Outubro), com o título 'O realismo de Soderbergh e Loach'.

Pensar o realismo das imagens (e dos sons) é coisa que não está na moda. Todos os dias massacrados pela informação televisiva “em tempo real”, somos impelidos a não pensar, a não olhar, a não questionar o simples facto de qualquer imagem (ou som) pressupor um ponto de vista, quer dizer, uma forma específica de apropriação do mundo à nossa volta.
Aliás, o que é isso de “tempo real”? Como supor que há uma espécie de verdade intrínseca que se reproduz ad infinitum apenas porque estamos a assistir a um directo televisivo? Porque é que, todos os dias, se mascara o facto de uma imagem envolver algum tipo de responsabilidade? E por que se quer fazer crer que um ser humano de microfone na mão, a olhar para uma câmara, existe como um indiscutível dispositivo de verdade?
Felizmente, ainda temos cinema para nos ajudar a lidar com tais questões. Sobretudo para nos permitir alguma distanciação face ao alarmismo militante que tomou conta da informação televisiva. Esta semana estrearam-se mesmo dois filmes que, para além de todas as suas diferenças temáticas e estruturais, reflectem uma mesma exigência realista. São eles o americano Contágio, de Steven Soderbergh, e o britânico Route Irish/A Outra Verdade, de Ken Loach. O primeiro, retomando um modelo de thriller enraizado na tradição da ficção científica da década de 50, encena uma situação de pânico planetário provocado pela proliferação de um vírus desconhecido e letal; o segundo segue a trajectória de dois homens de Liverpool, combatentes contratados na guerra do Iraque.
De que falamos, então, quando falamos de realismo? Exactamente do contrário do pueril naturalismo televisivo. O efeito de real nasce, não de qualquer “transcrição” neutra, mas de um elaborado trabalho narrativo que começa no visível (da vibração dos corpos à especificidade dramática dos objectos mais secundários) e passa por todas as nuances dramáticas (as relações entre personagens recusam qualquer espartilho moralista típico de telenovela). Soderbergh consegue, assim, filmar os circuitos tecnológicos do nosso presente como algo que não pode ser separado dos valores sociais e do nosso entendimento da politica, enquanto Loach nos confronta com os sintomas da geopolítica muito para alem de qualquer visão maniqueísta.
Não deixa de ser curioso referir que, no caso de Soderbergh, o impulso realista se tornou inseparável de um continuado interesse pela utilização das mais modernas câmaras digitais: lembremos Bubble (2005), insólito retrato de uma cidadezinha esquecida da América profunda, ou ainda o espantoso Che (2008), uma saga intimista sobre Che Guevara. Loach, por sua vez, limita-se a manter uma obstinada fidelidade aos pressupostos do realismo britânico que, desde finais da década de 60 (Poor Cow, Kes), o mantém como um dos autores emblemáticos de uma das mais sólidas tradições da produção cinematográfica europeia.